quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Libertação em Movimento

Hoje gostaria de falar sobre outro aspecto das críticas dos defensores da exploração animal: a suposta impossibilidade de se alcançar a abolição da exploração animal, o irrealismo e o ridículo de nossos objetivos.

Geralmente esse raciocínio se desdobra nos seguintes argumentos:

1. A imensa maioria das pessoas não está disposta a se tornar vegana.

2. O que nós fazemos não passa de ilusão - nunca poderemos alcançar um estágio de abolição porque simplesmente é "impossível" acabar com a exploração animal: ela está em todos os lugares.

3. Sendo impossível, inviável e utópico alcançar a abolição, o mais lógico, o mais prático e mais "coerente" (na visão deles) para os defensores dos animais seria defender medidas de bem-estar: prover conforto e saúde, administrar anestésicos, abater "humanitariamente", etc.

Daí faz-se um adendo para salientar a impressionante convergência de raciocínio entre exploradores e bem-estaristas: a linha de argumentação é praticamente idêntica. A única diferença é que os bem-estaristas substituiriam o "eternamente impossível" pelo "momentaneamente impossível" para, a partir daí, defender absolutamente os mesmos preceitos: se não há como abolir, vamos torná-la menos cruel.

Os "exemplos" da impraticabilidade do veganismo são inúmeros: a carne e outros alimentos de origem animal são essenciais e apreciados pela imensa maioria dos seres humanos; a abolição dos testes em animais impediria o avanço da ciência médica; todas as empresas testam produtos em animais e as que alegam não fazê-lo apenas estão usando de uma estratégia de marketing para atrair um determinado público; os diversos ramos da exploração animal geram renda e emprego e seu abandono resultaria numa catástrofe para a economia e o bem-estar da humanidade; animais domesticados ou mantidos em zoológicos precisam de carne de outros animais abatidos para sobreviver. Conclusão: libertação animal não passa de um delírio de mentes adolescentes, mimadas, rebeldes e doentias.

Daí, claro, podemos passar à realidade dos fatos.

Em primeiro lugar, como já argumentei em parte na postagem "Questão de Coerência" , certo está que muitos aspectos da exploração animal são difíceis, senão impossíveis, de evitar no mundo contemporâneo. É preciso, porém, uma boa dose de ignorância histórica para assumir que necessariamente será assim para sempre (e de cretinismo para supor que a impossibilidade da plenitude neutraliza e desmerece a importância de fazer o máximo possível). A humanidade, suas sociedades, suas tradições, estão em permanente transformação, e uma após a outra as pretensões de imutabilidade se fizeram em pó, a despeito da arrogância dos portadores de diversos impérios, regimes, práticas e ideologias que se supunham eternos. Os veganos contemporâneos são, neste sentido, desbravadores, abrindo caminhos, mostrando novas formas de ver e fazer, certamente incompletos no contexto geral, mas em progresso constante - e eu diria, inclusive, rápido - para viabilizar que, no espaço de algumas gerações, o estilo de vida 100% vegano seja uma realidade ao alcance de boa parte da população humana, ao menos aquela com acesso à educação e informação, e com razoável controle sobre seus meios de vida - seja no espaço urbano, seja no espaço rural. Vejam bem, eu disse "ao alcance", não disse que todas as pessoas nessas condições serão veganas - quando chegarmos no hipotético estágio de universalização do veganismo entre esse grupo social, certamente estaremos em condições de dar um passo adiante para a eliminação total da exploração animal - o que, para dissipar quaisquer dúvidas, sempre afirmo que precisa ocorrer de forma não-violenta, pois de qualquer outra forma será eticamente condenável e incoerente.

Podemos fazer uma refutação ponto a ponto: a carne e outros alimentos de origem animal NÃO são essenciais, e muitos dos que antes tanto os apreciavam foram capazes de racionalmente se dar conta da irracionalidade de infligir sofrimento desnecessário por uma dose de prazer fugaz - além de tudo tão facilmente substituído, pois a culinária vegetariana estrita está longe de restringir-se à salada e ser desprovida de sabor. A abolição dos testes em animais não só não impediria o progresso da ciência, como o estimularia, como qualquer desafio que se interpõe ao espírito criativo e inquisidor do ser humano; além do mais, são grandes as objeções de caráter estritamente científico à vivissecção, contando a luta antivivissecionista com o respaldo de um número ainda restrito, mas respeitável de cientistas. Os testes em animais na indústria JÁ ESTÃO EM FASE DE ABOLIÇÃO e é apenas uma questão de tempo até que sejam totalmente abandonados, quiçá sem mesmo sequer dependermos de legislação para tanto; da mesma forma que a ciência, a economia humana apenas tem a ganhar com a abolição de uma prática ineficiente, concentradora de renda e poluente; o ser humano, inteligente e adaptável como é, certamente encontrará formas de viabilizar-se e reinventar-se; da mesma forma que a tecnologia, a abolição da exploração animal pode tornar-se uma oportunidade para impulsionar uma nova abordagem das relações sócio-econômicas, e - também da mesma forma que a tecnologia - só não o fará se as próprias relações humanas mantiverem-se assimétricas, desiguais, iníquas e injustas. No caso dos animais domesticados ou mantidos em zoológicos, a ciência da nutrição já avançou bastante, e certamente dispomos, hoje, de conhecimento, tecnologia e recursos para desenvolver rações veganas; isso apenas ainda não é feito porque a mentalidade dominante não se questiona sobre as implicações éticas da alimentação de animais domésticos - afinal, eles mal se questionam sobre as implicações éticas da própria alimentação e do próprio estatuto de "animal doméstico", fatores que NECESSARIAMENTE vêm antes de se obter consciência sobre o absurdo moral de matar alguns animais para alimentar outros. Mesmo muitos vegetarianos não fizeram essa transição - alguns acham que é uma "violação da natureza" de certos animais, esquecendo que enclausurá-los também é.

Em suma, à medida que o número de veganos cresce, e eles se tornam mais visíveis, mais unidos e mais ativos, fatalmente as mudanças virão, seja por meio do mercado, seja por meio das mudanças na legislação.

O que nos leva, aliás, ao segundo ponto: as evidências muito atuais dos progressos da luta pela abolição da exploração animal, a despeito da afirmação assoberdada de quem acha que não passa de mero delírio juvenil. Talvez alguém achasse em um tempo remoto que era impossível que negros, índios, estrangeiros ou mulheres pudessem ter os mesmos direitos que homens brancos. Aliás, na Europa querem tirar os direitos mais básicos dos imigrantes, e uma das desculpas é justamente dizer que "não é possível" uma Europa que garanta direitos a todos, prospere e seja pacífica ao mesmo tempo.

Trata-se de uma típica chantagem de exploradores e detentores do poder, portadores da ideologia dominante, tentando afetar psicologicamente os adversários, desqualificá-los e à sua luta. Enquanto isso, nós pressionamos, ganhamos espaço, forçamos o debate, conseguimos pequenas concessões, e num futuro próximo teremos adeptos e poder para emplacar mudanças.

Basta mencionar alguns exemplos. Casos como a proibição de animais em circos e da vivissecção são emblemáticos: quem imaginaria que poderíamos avançar nessa matéria, 50 anos atrás? E ainda assim, o debate avança. Mesmo que não tenhamos vencido, leis antivivissecção foram aprovadas no Rio de Janeiro e Florianópolis, antes de serem desfiguradas e vetadas. O simples fato de estarmos pondo as questões na agenda já indica uma auspiciosa mudança de ventos. A reação dos exploradores também não tardou - como se era de esperar - e os vivisseccionistas criam eventos, mesas redondas, publicam artigos, fazem lobby e canalizam recursos para defender seus interesses, seu meio de vida, sua visão de mundo e seu poder constituído - afinal, esta também é, principalmente, uma disputa por PODER. Estranho seria se não fosse assim! No entanto, a própria reação em si já significa uma vitória para nós: eles que antes tinham sua posição legitimada a priori, agora têm que se esforçar em convencer a sociedade de que seu ofício é legítimo, e que não pode ser de outro modo. Claro está que a pressão irá aumentar nos próximos anos, inclusive de dentro das universidades: o uso de animais vivos já está sendo abolido no ensino, e como mencionei, existem cientistas de respeito que se opõem ao modelo animal também na pesquisa. Também entre os estudantes o questionamento ético do uso de animais é crescente. Nesse mesmo perído, a União Européia já proibiu testes da indústria de cosméticos a partir de 2009, e na UE e América do Norte já existem selos que atestam que determinados produtos não foram testados em animais - um tipo de certificação que estamos tentando implementar aqui no Brasil.

E é questão de tempo até chegarmos na pecuária. Esta semana já tivemos, num veículo de comunicação de massas de grande circulação, pela primeira vez, uma matéria tratando da controvérsia do abate humanitário e o embate entre abolicionistas e bem-estaristas:

http://vista-se.com.br/arquivos/revistafolha.htm

Pode levar anos, e deverá levar MUITOS anos, mas chegaremos ao ponto de veicularmos seriamente nossa oposição à criação de animais para a alimentação e nos fazermos ouvir. Quando isto acontecer, os pecuaristas estarão na defensiva, como estão hoje os vivisseccionistas.

Claro, foram apenas pequenos passos dados até agora. E absolutamente não está garantido que seremos vitoriosos, nem quando. A história é feita de progressos e retrocessos, contradições e conflitos. Mas é com pequenos passos que se começa uma longa jornada, e eu acredito que a história humana tende a caminhar para sistemas mais livres: sempre que surge a tirania, onde quer que se imponha, ela sempre é desafiada, e acaba sucumbindo. A liberdade e sua busca são condições sine qua non da existência. A causa abolicionista se move, e progride: lenta, mas continuamente.

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PREVISÃO PARA A PRÓXIMA POSTAGEM: 16 de Setembro de 2008

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