terça-feira, 28 de outubro de 2008

Contra a Pena de Morte


Bruno Müller

Causou-me espanto recente testemunhar uma discussão acerca da pena de morte entre vegetarianos, motivado pelo caso do seqüestrador que matou a ex-namorada, há cerca de duas semanas. Não vou tratar de nada específico a este caso, a despeito da mediocridade geral com o qual tem sido abordado. Vou tratar do tema geral – infelizmente recorrente em nosso país – da aceitabilidade da pena capital, que permeia também o círculo dos auto-proclamados defensores dos animais. Tal fato apenas confirma a falta de reflexão detida e rigorosa, por parte destes, sobre em que consistem os Direitos Animais.

Mas para tratar desse assunto, como de costume, temos que antes retroceder a outro conceito, o de Direitos Humanos. Na definição de um jurista norte-americano:

Os direitos humanos são universais: pertencem a todo ser humano em toda sociedade. Eles não se diferem pela geografia ou história, cultura ou ideologia, sistema político ou econômico, ou estágio de desenvolvimento societal. Chamá-los de ‘humanos’ implica que todos os seres humanos os possuem, igualmente e em igual medida, em virtude de sua humanidade – independente de sexo, raça, idade; independente de alta ou baixa origem social, origem nacional, ligação étnica ou tribal; independente de riqueza ou pobreza, ocupação, talento, mérito, religião, ideologia ou outro tipo de comprometimento. Inferido da humanidade de alguém, os direitos humanos são inalienáveis e imprescritíveis; não podem ser transferidos, retirados ou renunciados; não podem ser perdidos por terem sido usurpados, ou pela falha de alguém em garanti-los. (HENKIN, Louis. The Age of Rights. New York-NY: Columbia University Press, 1990, pp. 2-3)

Em resumo: Direitos Humanos são direitos que se referem a TODOS os humanos, independente de qualquer distinção. São Direitos possuídos em respeito a algo inerente à condição humana. Thomas Hobbes, o primeiro contratualista, diz que o contrato social surge para prevenir a guerra de todos contra todos e proteger o homem da morte violenta. John Locke fala que a primeira propriedade de um indivíduo é seu próprio corpo. Jean-Jacques Rousseau e Thomas Paine acusam a escravidão como contrária à natureza – ou seja, é errado transformar um ser humano em instrumento dos interesses de outro ser. Todos estes autores, exceto Paine, defendem a pena de morte; mas seus argumentos vão contra si mesmos, neste ponto, como pretendemos demonstrar – pois sua premissa é da universalidade dos direitos humanos. Quanto a Paine, este notável revolucionário inglês participou da Independência dos Estados Unidos, inspirou os famosos termos de sua Declaração que afirmavam o direito à liberdade e à busca da felicidade. Opôs-se à manutenção da escravidão e, depois, participou da Revolução Francesa, sendo eleito deputado da Assembléia Nacional Constituinte – apesar de ser estrangeiro; opôs-se também à condenação à morte do rei Luís XVI – oposição pela qual ele mesmo quase pagou com a vida. Paine, aliás, também escreveu sobre os direitos dos animais.

Daí se segue, em decorrência lógica, a pergunta: o que os seres humanos possuem de comum entre si (e de distinto aos demais seres) para serem merecedores desses tais direitos? E então percebe-se que sequer precisamos recorrer aos teóricos dos Direitos Animais para notar que que este elemento comum é a SENCIÊNCIA. Todos estes autores fazem referência indireta a ela. Ela aparece na questão do “medo da morte violenta”; na rejeição à escravidão como “contrária à natureza”; na afirmação de que todo indivíduo é senhor de si mesmo.

Desta breve análise fica claro que o argumento em defesa dos Direitos Animais caminha lado a lado com o argumento em defesa dos Direitos Humanos. Um defensor dos Direitos Animais tem obrigação moral e intelectual de ser um defensor dos Direitos Humanos. Por coerência, mas também para dar validade ao seu próprio argumento. Um defensor dos Direitos Animais que se coloque a favor da tortura, da pena de morte, da injustiça extrema (e, diria eu, inclusive de qualquer forma de exploração humana, e não apenas aquela manifesta na forma de escravidão) está adotando a mesma postura preconceituosa – especista – que critica na conduta humana com os demais animais.

Dentro desse universo, o que o debate da pena de morte comporta de específico? Os argumentos em favor da pena de morte são tão vagos que servem para qualquer discurso político ou religioso – não obstante seu evidente substrato conservador – por mais distintos que estes sejam entre si. Os conservadores em geral apóiam a pena de morte para casos de crimes violentos. Os “progressistas” radicais tendem a defender a pena de morte para o que chamam de “crimes contra o povo” – as revoluções sociais do século XX foram recheadas de processos e execuções contra grandes proprietários, líderes conservadores tirânicos, insurgentes “contra-revolucionários”, ladrões de dinheiro público. Regimes autoritários de todos os matizes costumam aplicar a pena de morte contra “traidores”, sejam eles espiões, dissidentes políticos, opositores ou apenas indivíduos que não adotam a ideologia oficial do Estado. Mas, geralmente, se trata apenas de uma forma de livrar-se de figuras indesejadas ou politicamente perigosas – afinal, Cuba e China têm pena de morte para crimes de corrupção, mas perdoem-me o ceticismo se eu me recusar a acreditar que não existe corrupção nas altas esferas de poder desses países. Em outras partes do mundo o adultério ainda pode ser o motivo para uma sentença de morte. O convívio social com uma adúltera pode ser tão insuportável e nocivo para certas culturas quanto é, para a nossa, o de um assassino violento. Para cada um desses casos, existe todo tipo de justificativa para tornar a medida justificável. Seria instrutivo pesquisar, por exemplo, o que disseram o regime cubano e seus defensores sobre a execução de três fugitivos no ano de 2003: um caso que aparece tão flagrantemente aberrante para os padrões liberais surge como uma medida necessária para proteger a Revolução Cubana, dado o estado de sítio em que ela vive diante do bloqueio econômico que enfrenta.

Daí, então, podemos nos perguntar: o que faz de um argumento em favor da pena de morte melhor que o outro? Porque seria aceitável executar um assassino, mas não uma adúltera? É, portanto, a pena de morte que mergulhar no terreno do relativismo, querendo criar situações hipotéticas para a aceitação do assassinato institucional – situações que violam as premissas básicas da proteção à vida como direito básico, e que não se enquadram nas – poucas – exceções lógicas à regra. Mas tal opinião vai além do relativismo – trata-se de instrumentalismo, de atribuir respeito ao indivíduo apenas enquanto ele está enquadrado às regras da sociedade – enquanto ele é ÚTIL. Um criminoso ou é inútil – pode ser descartado – ou é nocivo – deve ser eliminado. Trata-se de uma visão tipicamente fascista e bastante afeita à forma como nossa sociedade especista trata animas “inúteis” ou “nocivos”.

No Brasil este debate vem em função do problema da violência urbana, aliado a uma tradicional tendência política conservadora da população, o que mantém acesa a arcaica chama da pena capital, que felizmente tende a se extinguir em todo o mundo. No Ocidente, apenas dois países ainda não encerraram esse debate: Brasil e Estados Unidos. Não é de surpreender que seja a Europa, região onde mais se avançou na filosofia dos Direitos Humanos e das garantias sociais – embora também lá ambos sejam violados, especialmente no caso dos imigrantes – aquela que tenha os menores índices de violência do Ocidente. E também não é de surpreender que esses direitos só não sejam plenamente protegidos exatamente no caso dos imigrantes – justamente as maiores vítimas de exclusão naquele continente, e os mais expostos à violência.

A defesa da pena de morte como medida para a contenção da violência urbana certamente erra o alvo – de longe. Não vou me alongar muito nesse aspecto, pois como opositor da pena capital por princípio, seria contra ela mesmo que ela fosse comprovadamente eficiente – o que não é – e mesmo que ela fosse comprovadamente justa – o que jamais será.

A pena capital é injusta porque viola o princípio básico da proporcionalidade. Mesmo que o crime em julgamento seja um crime de morte, não é justo aplicar uma pena na mesma medida, tirando a vida do assassino. Em primeiro lugar, a morte certa, e patrocinada pelo Estado, é certamente uma atitude mais radical que a morte promovida pelo assassino, pois esta não tem respaldo legal, e pode ser prevenida, enquanto a segunda não pode ser revogada após pronúncia final da justiça, a não ser por perdão do mandatário (no caso dos Estados Unidos, o governador do estado e, depois, o presidente da República). Nesse caso, o governador ou presidente encontra-se claramente na mesma posição que teve antes o assassino sobre a vítima: poder de vida ou morte, por mero capricho de vontade. A diferença é que o aparelho de Estado está com um, e não com outro. O governador pode matar impunemente: uma clara situação de injustiça. Essa questão já foi brilhantemente abordada pelo romancista Fyodor Dostoievsky, há mais de um século:

Matar quem matou é um castigo desproporcionalmente maior que o próprio crime. A morte por sentença é desproporcionalmente mais terrível que a morte cometida por bandidos. Aquele que os bandidos matam (...) ainda espera sem falta que se salvará, até o último instante. (...) Mas, no caso de que estou falando, essa última esperança, com a qual é dez vezes mais fácil morrer, é abolida com certeza; aqui existe a sentença, e no fato de que, com a certeza, não se vai fugir a ela, reside todo o terrível suplício, e mais forte do que esse suplício não existe nada no mundo. (...) Quem disse que a natureza humana é capaz de suportar isso sem enlouquecer? Para quê esse ultraje hediondo, desnecessário, inútil? (...) Não, não se pode fazer isso com o homem. (DOSTOIEVSKY, Fyodor. O Idiota. São Paulo: Editora 34, 2002 [1868])

Em segundo lugar, a pena de morte não é justa pela afirmação que carrega consigo: é impossível a sociedade subsistir ao lado de tal indivíduo, razão pela qual devemos nos livrar dele. Além de todo o substrato tirânico impresso nessa frase, que nos remete ao absolutismo do Antigo Regime, podemos simplesmente nos questionar o grau de verdade existente nela. Quantos são os indivíduos que realmente não têm condição de convívio social? E o que os leva a tamanho grau de sociopatia que nos torna imperativo excluí-los deste convívio?

É aqui que a questão social se impõe. E com ela, explicita-se ainda mais a condição intrinsecamente injusta da pena capital. Antes da violência gerar exclusão, por meio do aprisionamento ou extermínio, é a exclusão que gera violência, na grande maioria dos casos. A violência é um problema, antes de tudo, social, e como tal deve ser tratada. Social não apenas por fatores econômicos de exclusão, mas também por fatores culturais, políticos, éticos, psicológicos – famílias com caso de abuso físico e sexual, abandono, dentre outros males, são comprovadamente, formadoras de cidadãos passíveis de responder com violência no futuro – pois foi esta a linguagem que aprenderam desde cedo. Uma rápida avaliação sobre as populações carcerárias de qualquer parte do mundo explicita esse ponto: a sua imensa maioria é formada pelos estratos mais baixos da sociedade. São os indivíduos mais privados aqueles que mais recorrem à criminalidade e à violência. E, por “privados”, não me refiro apenas a bens materiais. Me refiro igualmente a proteção familiar, rede social, afeto, e outros elementos fundamentais para a saúde emocional de um indivíduo. É muito comum que assassinos em série, por exemplo, tenham sido eles mesmos vítimas de diferentes tipos de violência, na infância. Ou seja: uma vez a sociedade falhou em proteger este indivíduo. No momento em que ele, emocionalmente perturbado, reage de forma violenta, a sociedade reclama a vida que antes ela falhou em proteger. Daí, claro, os defensores da pena de morte vão alegar: estarei eu defendendo o “carinho” contra assassinos? Claro que não. Por acaso não me compadeço das suas vítimas? Claro que sim. O meu raciocínio quanto a isso é muito claro: não há justificativa razoável para o recurso a tamanha violência. Se a reação violenta do indivíduo é injustificável, mesmo diante dos males anteriormente sofridos, o mesmo vale para a reação do Estado. O Estado não pode se comportar como psicopata cujos rompantes ele quer evitar. Freqüentemente, porém, é justamente como psicopata que o Estado se comporta, razão pela qual não acredito nessa instituição; mas essa é outra discussão, e não precisamos esperar pelo fim do Estado para eliminar algumas das suas manifestações mais arcaicas, injustas, e abjetas – como é a pena capital. Uma das coisas que devemos aprender, como veganos, é isso: não esperar uma revolução social para mudarmos o que é possível.

Por outro lado, o caso do psicopata, do assassino em série, embora brandido com tanta esperteza pelos defensores da pena capital, é a minoria ínfima dos casos de crimes violentos. A maioria dos mesmos é praticada por pessoas que, com uma política inteligente de reinserção social, que inclua: atendimento psicológico, provisão de oportunidades de trabalho e estudo e educação humanista, poderia, em vez de mofar na cadeia ou jazer inerte na vala, retornar ao convívio social. Mais que isso: esses indivíduos, se tivessem acesso a tudo isso desde a infância, quase certamente não iriam recorrer ao crime. Utópico? No mundo de hoje, sim. Pois grande parte das atitudes violentas que testemunhamos são resultado das doenças e injustiças da sociedade. Isso não equivale a dizer, em outra jogada de esperteza dos reacionários, que todo pobre é um criminoso em potencial. Afinal, também existem os criminosos nascidos em berço de ouro – e estes, em geral, são mais perigosos, embora suas vítimas sejam anônimas, e por isso a comoção por eles causada é menor. Me refiro não apenas a crimes bárbaros, como o de queimar indivíduos vivos, por serem confundidos com moradores de rua - como aconteceu com o índio Galdino na cidade de Brasília. Os bem-nascidos cometem crimes talvez piores, sem serem perturbados: abuso de poder econômico, corrupção, exploração da mão-de-obra, negligência com a segurança no trabalho, dentre outros fatores que tiram mais vidas do que psicopatas ensandecidos, sem causar indignação nem levemente parecida. Quase todos estes crimes são subproduto da mesma disputa por poder e riqueza, que por sua vez geram injustiça e desigualdade, estimulando mais violência, num círculo vicioso – as exceções a isso são a minoria dos casos.

A solução verdadeira para a violência, portanto, está unicamente na transformação social que minimize ao máximo esse círculo vicioso. No caminho até lá, uma reforma penal também é fundamental. Se os criminosos forem concebidos como párias a serem retirados do convívio social, e não indivíduos portadores de direitos, naturalmente voltarão ao seu comportamento anti-social tão logo tenham a oportunidade - o índice de reincidência nos Estados Unidos e Brasil comprovam a falência do sistema carcerário. A reclusão deveria ser uma opção apenas em casos de crimes violentos – só a redução da superpopulação dos presídios já seria um passo fundamental, possibilitando disponibilizar mais recursos e concentrar profissionais no propósito da reinserção social, que deve ser o objetivo final da reclusão. O recluso não deve ser privado de seus interesses básicos, só por ter perdido – temporariamente – a liberdade. A cadeia deveria ser um intervalo para o retorno à sociedade, dentro de período pré-determinado, ao longo do qual deve-se tentar romper os condicionamentos que levaram à violência. A progressão da pena deveria, entretanto, ser mais rigorosa do que a legislação brasileira atual – e só acontecer quando houver genuíno fundamento para crer que não haverá reincidência - ou seja, atacando a raiz (social, psicológica, ou outra qualquer) do problema. Deve-se trabalhar para minimizar cada vez mais o risco da reincidência, mas também não se pode usá-la para a manutenção indefinida do encarceramento, ou para defender a pena de morte para o indivíduo que se supõe irrecuperável. Supor que o indivíduo é irrecuperável é adivinhar um crime que ainda não foi cometido (violando a presunção da inocência e o direito à segunda chance) e, portanto, punir com antecipação (algo muito parecido com a guerra preventiva de Bush): outra razão pela qual esta é intrinsecamente injusta e inaceitável. A razão final para isso é que ela é irrevogável – uma vez aplicada, não há retorno. E nenhum ser humano deveria ter esse direito de vida ou morte, poder divino pois, creia-se ou não em Deus, é este tipo de poder que as culturas atribuem aos seus deuses.

A defesa da pena capital nada tem a ver com Direitos Humanos. E, conseqüentemente, nada tem a ver com Direitos Animais. Pois ambos são direitos que devemos a algum indivíduo devido a algo inerente à sua condição – ou seja, que existe independente de qualquer ação externa. A leitura mais coerente do que concede direitos a TODOS os seres humanos opta pela única coisa que é comum a todos eles, e que, portanto, pode ser genuinamente classificada como “inerente”: a SENCIÊNCIA. Desse modo, todos os Direitos Humanos fundados na seciência – o direito à vida, à liberdade, à integridade física e psíquica – devem ser extendidos a todos os seres que possuem esses mesmos interesses – ou seja, todos os seres do mundo animal. O respeito a esses interesses básicos dos seres sencientes não é uma questão de mérito, é uma questão de direito inerente. Portanto, o debate sobre a pena de morte não pode ter lugar nos círculos abolicionistas. Aplicar o critério do mérito para o direito à vida humana seria, para nós, defensores dos Direitos Animais, mais uma vez bifurcar a aplicação de critérios: senciência, para animais não-humanos; mérito, para animais humanos. Trata-se de esquizofrenia moral digna de onívoros e ovo-lacto-vegetarianos. Além da clara incoerência e absoluta arbitrariedade dessa decisão, trata-se de restaurar o especismo no sistema. Uma jogada não só eticamente condenável, mas estrategicamente equivocada: repor o mérito na centralidade da atribuição de direitos, além de nocivo para os próprios seres humanos, é nocivo para os animais não-humanos, de quem tantos dizem não possuírem direitos por não poderem assinar contratos, fazer acordos de paz, aceitar preceitos morais ou compor belas sinfonias.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Da inevitabilidade dos danos incidentais como desculpa para continuar explorando os animais

Por Cláudio de Godoy

Ao examinar as opções de sobremesas em um restaurante vegetariano, uma conhecida minha vegana se deparou com a ubiqüidade do mel em sua preparação. Ao sugerir aumentar o número de sobremesas veganas ao dono do estabelecimento e, subliminarmente, questionar o uso do mel em praticamente todas elas, ela se defrontou com o seguinte argumento: o número de animais mortos incidentalmente na produção de açúcar supera de longe o de abelhas mortas para a produção de mel. Ou seja, seria legítimo explorar seres sencientes caso a opção vegana fosse mais danosa em termos globais.

Por trás deste aparente dilema existem duas abordagens éticas distintas. Se nos preocupamos mais com o resultado global das ações dos agentes morais do que com as suas intenções e não reconhecemos a existência de direitos morais, adotamos uma ética conseqüencialista, onde o que importa é o resultado global dessas ações, independentemente dos meios pelos quais eles foram alcançados. Já em uma ética deôntica ou do dever, as ações dos agentes morais devem se basear na observância estrita de algumas normas, independentemente de suas conseqüências globais.

Voltando à justificativa levantada no primeiro parágrafo, as mortes causadas pela agricultura nada mais são do que uma velha desculpa de quem não quer abrir mão de produtos advindos da exploração animal. Se nossas fontes de alimento são atacadas, é óbvio que podemos agir em legítima defesa. Ou melhor, seria mais uma questão de conflito de interesses básicos, pois as “pragas” também estão legitimamente à procura de alimento. Como não podemos persuadi-las racionalmente a não "roubar" os nossos alimentos, temos que tomar alguma medida, de preferência a que cause o menor dano possível a elas. Há métodos melhores do que o uso de agrotóxicos para proteger as nossas plantações do ponto de vista destes animais, como o da agricultura orgânica, que inclusive reduziriam consideravelmente os danos incidentais, mas, em uma sociedade que usa deliberadamente seres sencientes como recursos, a sorte das "pragas" seria uma de suas últimas preocupações. Mas uma coisa é certa: violar deliberadamente os interesses de indivíduos sencientes em uma situação de conflito de interesses básicos é bem diferente de aprisioná-los, explorá-los e matá-los para usar os seu corpos como objeto.

E quanto às mortes colaterais de seres sencientes resultantes de nossas atividades cotidianas? Existe uma grande diferença entre causar um dano deliberadamente e causar um dano incidentalmente. No primeiro caso, temos a intenção explícita de violar um interesse alheio. No segundo caso, não temos a menor intenção de causar danos a ninguém, mas estamos cientes de que há uma grande probabilidade de que eles ocorram e de que é praticamente impossível evitá-los, pois, a não ser que nós moremos na estratosfera e nos alimentemos apenas de ar, a maior parte do espaço que ocupamos necessariamente é fruto da expulsão de outras criaturas de seu território e tudo aquilo que nós consumimos e descartamos na maioria das vezes causa danos a terceiros. Temos o dever de minimizar estes danos, mas, pelo menos com a atual tecnologia, é humanamente impossível reduzí-los a zero.

Na grande maioria das vezes, a pecuária é responsável por um número bem maior de mortes indiretas, pois, se for intensiva, implica na produção de grãos para alimentar os animais que poderiam ser consumidos diretamente por muito mais pessoas, e, se for extensiva, exige uma superfície bem maior de pastagens para gerar a mesma quantidade de nutrientes que poderia ser produzida em uma superfície bem menor com o cultivo de vegetais. Mas mesmo se a criação de animais causasse menos danos colaterais do que a agricultura, ainda assim teríamos o dever de não usar nenhum indivíduo senciente como recurso, pois os deveres diretos sempre se sobrepõem aos deveres indiretos em uma ética baseada no dever. É o que se verifica no caso das abelhas: teríamos que preferir consumir uma quantidade de melado de cana cuja produção causou a morte de milhares de indivíduos ao invés de explorar deliberadamente as abelhas para a obtenção de seu mel.

terça-feira, 7 de outubro de 2008

O Poder que o Individuo Tem de Mudar o Mundo

Bruno Müller

Essa é uma velha discussão: qual o papel do indivíduo na história? Em uma de suas mais célebres frases, Karl Marx afirma, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Tal afirmação geralmente é percebida como a acepção de que os indivíduos estão submetidos a estruturas e relações pré-existentes, das quais não podem escapar. Levado ao extremo do estruturalismo, tal concepção nega ao indivíduo toda e qualquer possibilidade de interferir sobre a realidade e libertar-se dos condicionamentos, tese que ganhou força no século XX sob a denominação de “morte do indivíduo”.

Por outro lado, existem aqueles que vêm o exemplo de indivíduos como Napoleão Bonaparte, Vladimir Lenin, Adolf Hitler ou Mohandas Gandhi, e proclamam que indivíduos “extraordinários” podem mudar os rumos da história (seja qual for a conseqüência desse extraordinário).

Na verdade, uma análise da excepcionalidade de certos indivíduos apenas reforça a tese de que “uma andorinha não faz verão”. Qual seria a capacidade de Adolf Hitler liderar um extermínio em massa de judeus se não houvesse um anti-semitismo amplamente disseminado na sociedade alemã, combinado com a percepção de que os judeus eram uma minoria privilegiada? Como Napoleão poderia liderar os exércitos da França, sendo ele um humilde plebeu, nativo da ilha da Córsega, apenas 10 anos antes, em 1789, quando apenas aristocratas poderiam ser oficiais do exército? Como Lenin poderia ter liderado uma revolução social na Rússia, se o czarismo não tivesse mergulhado esse país na miséria e numa guerra imperialista inútil para a maioria da população? Qual teria sido o sucesso da pregação de Gandhi por resistência pacífica e desobediência civil se, em vez de indiano, ele fosse alemão ou inglês? A habilidade desses homens, indiscutivelmente talentosos, consistiu em captar com precisão o espírito da época, e usá-lo em seu próprio proveito, ou das teses que defendiam. Naturalmente, esses exemplos mostram que o indivíduo pode sim, fazer diferença, mas num nível sutil e dentro dos limites impostos pela cultura, pelas estruturais sociais, pelo contexto histórico e geográfico.

No entanto, se verificarmos o tanto que estes e outros indivíduos conseguiram operar nas suas sociedades, veremos que as mudanças promovidas por grandes líderes são, via de regra, superficiais. As estruturas apenas mudam por um processo histórico longo. Nenhum deles transformou a estrutura de poder, a forma de pensar das sociedades que lideravam – mesmo aqueles que assim desejavam. O máximo que os líderes políticos conseguem fazer é agir como artífices de uma mudança que já se delineava no horizonte.

Isso implica dizer que, de fato, nenhum indivíduo tem o poder de mudar a realidade? Não. Geralmente limita-se o debate sobre o papel do indivíduo na história à ação dos “grandes homens”, dos “grandes líderes”. A multidão, mesmo para os supostos defensores do homem comum, é formada por uma massa amorfa, que navega inconsciente das forças históricas à sua volta. O indivíduo não é nada sem a coletividade, costumam dizer essas pessoas. A sociedade só muda coletivamente. Mas, calma... E a coletividade, o que é? A coletividade pensa, vive, sofre, sonha?

A coletividade nada mais é do que um aglomerado de indivíduos. É o indivíduo, não a nação, a etnia ou a família, o núcleo central da sociedade. Pois é o indivíduo que pensa, vive, sofre e sonha. Não foi Lenin, mas os indivíduos russos que revolucionaram a Rússia. Não foi Gandhi, mas os indivíduos indianos que tornaram a Índia independente. Portanto, qualquer sistema social que não leve em consideração os interesses básicos, a integridade física e psíquica de TODOS os indivíduos é inerentemente injusto. Não basta que essa consideração esteja proclamada verbalmente – quase todos os sistemas de crenças precisam alegar que se preocupam com todos os indivíduos. De outra forma, estariam fadados ao fracasso. Me refiro às conseqüências concretas, para os indivíduos, da aplicação desses sistemas de crenças. É aqui que a maioria das ideologias falham, até porque todas elas estão sujeitas a lacunas. É aqui também que devemos verificar quem deve ter prioridade: se são os indivíduos que devem se ajustar às idéias, ou se são as idéias que devem se ajustar aos indivíduos, como eu acredito. Não apenas por questões de princípios, mas igualmente porque nenhuma mudança imposta de cima pra baixo é duradoura. Há uma mudança muito mais profunda, e muito mais sutil, que nenhum Napoleão, nenhum Hitler, nenhum Lenin, nem mesmo um Gandhi é capaz de liderar. Essa mudança é uma mudança social, sim. Mas dela depende uma mudança de consciência.

Não é a coletividade abstrata que transforma a sociedade. São os indivíduos que, coletivamente, mudam a sociedade. Essa mudança não é coordenada nem precisa ser articulada verbalmente. Mas depende de uma transformação de consciência. Foi assim que, ao longo do tempo, os privilégios de nascimento e a idéia de que há seres humanos superiores a outros têm se tornado insuportáveis, após terem sido considerados com realidades naturais por séculos. E é assim que será com o reconhecimento dos animais não-humanos como portadores de direitos inerentes e invioláveis, direitos esses derivados tão somente de sua condição de seres sencientes.

O caminho é árduo, entretanto. Pois o ser humano teme as mudanças como um desafio à sua identidade e à sua estabilidade, porque teme que a mudança comprometa, em última instância, sua própria integridade. Por isso, é mais fácil, mais cômodo e mais seguro manter tudo como está. É prático, atraente, e aparentemente convincente, alegar que “uma andorinha não faz verão”. Uma, não; mas muitas, sim. E é nisso que devemos pensar, quando confrontados com o desafio da transformação social. O desafio da libertação animal – humana e não-humana. Não é suficiente justificar nossa acomodação, supondo que nossa atitude desaparecerá numa multidão de conformismo: afirmar que um vegano não faz diferença. Pois são as pequenas e imperceptíveis atitudes individuais que põem a história em movimento, abalam as estruturas dominantes e transformam a realidade de forma duradoura e permanente – pois uma vez posta em movimento, a história não volta atrás. A mudança social passa necessariamente por duas fases: tomada de consciência e a coragem de agir em conformidade com ela. Para os animais, isso significa: promover os seus direitos, respeitá-los, boicotar e combater a exploração em todas as suas formas. Não podemos, portanto, fugir à responsabilidade que traz o despertar da consciência. Pois não é O indivíduo, mas são OS indivíduos que podem romper com a realidade de dominação e exploração que resume a experiência humana e promover um mundo verdadeiramente livre, não apenas para toda a humanidade, mas para todos os animais do mundo.