tag:blogger.com,1999:blog-18433831598162992752024-03-14T03:43:25.153-03:00Seres LivresPolítica, história, filosofia, anarquismo e direitos animais.Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.comBlogger45125tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-29438327717647005122014-07-14T20:38:00.000-03:002014-09-22T01:35:15.877-03:00Reflexões libertárias no aniversário da Revolução Francesa<div style="background-color: white; color: #333333; font-family: 'Helvetica Neue', Helvetica, Arial, sans-serif; font-size: 14px; line-height: 20px;">
Hoje, 14 de Julho, comemora-se o Dia da Bastilha, aniversário da Revolução Francesa que, nas palavras de um de seus milhares de protagonistas, Camille Desmoulins, fez da Liberdade "uma ideia nova na Europa".<br />
<br />
Quero celebrar esta data rememorando algumas considerações feitas quase cem anos depois por um homem que dedicou sua vida a essas duas paixões: a Liberdade e a Revolução.<br />
<blockquote class="tr_bq">
<br />
"<em>A primeira revolta é contra a suprema tirania da teologia, o fantasma de Deus. Enquanto tivermos um Senhor no Paraíso, seremos escravos na Terra. [...] Todas as autoridades temporais e humanas derivam diretamente da autoridade espiritual e/ou divina. Mas a autoridade é a negação da liberdade. Deus, ou melhor, a ficção de Deus, é a consagração e fonte moral e intelectual de toda escravidão na Terra, e a liberdade da humanidade jamais será completa até que esta ficção desastrosa e insidiosa do Senhor Celestial seja aniquilada.</em><br />
<em>Isto será naturalmente seguido pela revolta contra a tirania dos homens, individual e socialmente, representada e legalizada pelo Estado.</em><br />
<em>[...]</em><br />
<em>O Estado é uma instituição histórica, transitória, como sua instituição irmã, a Igreja, reguladora dos privilégios de uma minoria e os verdadeiros escravizadores da imensa maioria.</em>"</blockquote>
<blockquote class="tr_bq">
BAKUNIN, Mikhail. Man, Society and Freedom [1871].*</blockquote>
<br />
O verdadeiro desafio seria superar a tirania coletiva, para a qual Bakunin, como tantos pensadores de seu tempo, via uma única saída: o Esclarecimento. Que cada ser humano fosse legislador de si mesmo, algo que só poderia ser adquirido pela conquista da autonomia política e moral que os regimes clericais e estatais contêm no nascedouro.<br />
<br />
O erro supremo dos Jacobinos, os "radicais" que em determinado momento assumiram o controle da Revolução, foi justamente trilhar o caminho oposto: ver no Estado o farol da Revolução. Valeram-se de meios diametralmente opostos ao seu objetivo. Meios que serviram de base para o Estado policial, burocrático, hipertrofiado, que virou o paradigma revolucionário do século XX, devidamente alimentado pelo marxismo-leninismo.<br />
<br />
Voltando ao século XVIII, Robespierre, incumbido de "salvar" a Revolução diante da agressão militar das potências imperiais e da insatisfação popular, instaurou a Era do Terror, durante a qual ele, outrora visceral opositor da pena de morte, liderou a execução de milhares de contrarrevolucionários, suspeitos, descontentes e revolucionários. Simultaneamente, temerário da "revolta suprema", além do Terror, tentou mesmo criar o "Culto ao Ser Supremo" - um deísmo cívico, não clerical. Assim, inauguraram-se duas poderosíssimas tradições no pensamento e prática revolucionários: o extermínio em massa do povo e o culto à personalidade e deificação dos mentores e líderes deste mesmo povo, uma Religião Laica na qual, infelizmente, a ideia de transformação social se transmutou em algo que em nada deve ao Monoteísmo Abraâmico em matéria de mentiras, horrores e ignomínia.<br />
<br />
Faltou-lhes integridade? Mas Robespierre era conhecido como "O Incorruptível"! Seu fervor de salvar a Revolução e instaurar um regime baseado na Declaração Universal de Direitos do Homem e do Cidadão, distante do odioso sistema de privilégios de ordens anterior, eram genuínos.<br />
<br />
O fracasso fundamental do jacobinismo - teórico, prático e humano, tendo milhões de vidas ceifadas como a medida de seu verdadeiro valor - foi apontado, num intervalo de tempo relativamente curto, por Pierre-Joseph Proudhon, Mikhail Bakunin e tantos outros pensadores libertários, cujas reflexões, fustigadas pelos inimigos da Liberdade, teimam em retornar, eternamente, como signo de uma paixão primordial e irreprimível.<br />
<br />
Não, não lhes faltou integridade. Faltou-lhes coragem. Faltou-lhes a perspectiva visionária. Faltou-lhes a sensibilidade de que o povo, em abstrato, jamais poderá substituir o indivíduo, em particular. É este que, nas palavras de Emma Goldman, "<em>vive, respira e sofre</em>". É a liberdade do indivíduo "<em>em detrimento da autoridade exterior, tanto no que concerne à sua existência física quanto à política ou econômica</em>" [GOLDMAN, Emma. O Indivíduo, a Sociedade e o Estado]**, a verdadeira medida do progresso humano. O diferencial do pensamento anarquista esteve em reconhecer que liberdade e igualdade, indivíduo e sociedade, não são forças em conflito, mas pilares para o desenvolvimento social, político, econômico e ético da humanidade. E que o Estado é a negação fundamental desse progresso.<br />
<br />
É neste espírito que sempre faço questão de recordar a Revolução Francesa. Pelas suas ideias, mais que suas realizações. Se "a paixão destrutiva é também uma paixão criativa", como também dizia Bakunin, claro está que os Jacobinos e seus herdeiros (leninistas, maoístas, castristas, chavistas, lulistas, reformistas...), a despeito de todo aniquilamento que promoveram e inspiraram, fracassaram justamente por não terem ido longe o bastante na sua paixão destrutiva; por terem-na apontado na direção errada: contra indivíduos, e não instituições. Represando, deste modo, a liberação de todo o seu potencial criativo.<br />
<br />
Fontes:<br />
<br />
*<a href="http://www.marxists.org/reference/archive/bakunin/works/1871/man-society.htm" rel="nofollow" style="color: #3b5998; cursor: pointer; text-decoration: none;" target="_blank">http://www.marxists.org/reference/archive/bakunin/works/1871/man-society.htm</a><br />
<br />
**<a href="http://www.cntgaliza.org/files/individuoNaSociedade.pdf" rel="nofollow" style="color: #3b5998; cursor: pointer; text-decoration: none;" target="_blank">http://www.cntgaliza.org/files/individuoNaSociedade.pdf</a></div>
Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-17058402904935995182013-07-04T22:17:00.000-03:002014-12-15T14:25:29.144-02:00Quem são os verdadeiros fascistas?<div align="left" class="SemEspaamento1">
<span lang="PT-BR"><b>Introdução</b></span></div>
<div align="left" class="SemEspaamento1">
<span lang="PT-BR"><br /></span></div>
<div align="left" class="SemEspaamento1">
<span lang="PT-BR">Este texto é uma reflexão baseada na minha experiência e nas minhas observações como ativista libertário nas manifestações de rua que tomaram conta do país no último mês. Existem muitas possibilidades de análise de um fenômeno tão rico. Eu escolhi aquele que me pareceu mais peculiar, me atingiu pessoalmente, mas que é também simbólico dos tempos de crise política que vivemos em todo mundo ocidental (pelo menos) e não só no Brasil: a crise da forma partidária de organização e a ascenção de movimentos sociais de tendência não-hierárquica e valores libertários. Eu distingui três grupos proeminentes nessas manifestações, além dos velhos militantes partidários: uma grande multidão despolitizada; os movimentos libertários, que eu defino aqui de forma abrangente, incluindo grupos que vão além dos anarquistas <span style="background-color: white; line-height: 24px;">“clássicos” e</span> ativistas independentes com demandas variadas.</span><br />
<span lang="PT-BR"><br /></span><span lang="PT-BR">Resumindo uma longa história, esses grupos, no início das manifestações fizeram uma requisição inusitada: que os militantes partidários não levassem suas bandeiras aos protestos. De fato foi o que se verificou em muitas delas, mas não sem confronto. Militantes que tentavam erguer suas bandeiras foram vaiados e ouviram gritos de <span style="background-color: white; line-height: 24px;">“abaixa” ou </span><span style="background-color: white; line-height: 24px;">“oportunista”. Táticas comuns em manifestações onde o tempo para o debate e convencimento é curto. Houve relatos de militantes agredidos em outros estados, mas foi em São Paulo que a violência, com forte infiltração de grupos ultradireitistas, foi mais grave.</span></span><br />
<span lang="PT-BR"><span style="background-color: white; line-height: 24px;"><br /></span></span><span lang="PT-BR"><span style="background-color: white; line-height: 24px;">No meio deste drama, militantes e simpatizantes começaram a espalhar que os protestos eram reacionários, seus integrantes, fascistas e massa de manobra da mídia e da direita. Depois começaram a pipocar os </span><span style="background-color: white; line-height: 24px;">“sinais” de que um Golpe de Estado estava sendo preparado no Brasil. Muitos ativistas indepedentes e libertários se acabaram de tanto ser vilipendiados. Outros, contudo, se deixaram levar pelo discurso alarmista. Sem falar no seu possível efeito, de impedir a catalização da força do movimento e o esclarecimento da multidão que saiu às ruas com ideias vagas de insatisfação e mudança na cabeça, e que não deveriam ser hostilizadas, mas chamadas ao diálogo. Daí a importância do texto abaixo, que é tanto uma análise quanto uma resposta à reação partidária ao desafio da hegemonia que até hoje detinham de forma inquestionável no campo das forças contestatórias.</span></span></div>
<div align="left" class="SemEspaamento1">
<span lang="PT-BR"><span style="line-height: 24px;"><br /></span></span></div>
<div align="left" class="SemEspaamento1">
<span lang="PT-BR"><span style="line-height: 24px;"><b>Uma questão de definição</b></span></span><br />
<span lang="PT-BR"><span style="line-height: 24px;"><b><br /></b></span><span style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;">Quem são o</span></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">s fascistas? Onde estão eles? De onde eles saíram e como se organizaram tão rapidamente?</span></span><span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;"><br /></span></span><br />
<span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">Antes de xingar alguém de fascista, você já se perguntou o sentido do termo?</span></span><br />
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">O fascismo é uma ideologia e um movimento político nascido na Europa da década de 1920, em meio à confusão política e econômica, e aos distúrbios sociais do entre-guerras. Ele consiste basicamente em: um movimento que defende teses ultranacionalistas, faz uso da violência sistemática e organizada, frequentemente apoiado em forças para-militares, tendências belicistas, xenofobia e uma aspiração de “pureza” (étnica, racial e nacional), e populista. Diferente de outros movimentos conservadores, que têm horror ao povo, os fascistas discursam e apelam para o povo, e o arregimentam como força auxiliar para o que é seu objetivo final: a tomada do poder. Uma vez no poder, os fascistas instauram uma ditadura de partido único, eliminam ou silenciam a oposição. Essa definição é mais ou menos baseada naquela oferecida pelo sociólogo Michael Mann, em seu livro “Fascistas”.</span></span><br />
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">Além da ideologia fascista, havemos de destacar seus métodos de ação política. A violência, obviamente, é tanto um pressuposto quanto seu método principal; essa violência pode ser não apenas direta, mas instigada – guardemos essa informação; mentiras, igualmente sistemáticas, para criar confusão e atrair simpatizantes (“uma mentira dita mil vezes vira verdade”, dizia o nazista Joseph Goebbels); provocação e intimidação dos inimigos; grandes exibições de poder e força (pensem nas paradas nazistas em Nuremberg); espalhar boatos e rumores, de novo com o fim de eliminar os adversários (após incendiar o Reichstag, os nazistas candidamente responsabilizaram os comunistas pelo ato, para melhor persegui-los).</span></span><br />
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">Depois de muita conversa e observação com ativistas do Rio e de outros estados, cheguei à conclusão que a direita radical só tem espaço em São Paulo – e mesmo lá, é minoritária. Então, qualquer observador ausente e inteligente verá que os grupos ou indivíduos desvinculados de partidos políticos não são fascistas nem defendem teses fascistas.</span></span><br />
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">Não existe um fascismo forte e organizado na maioria das capitais brasileiras. E as características que definem um movimento fascista estão amplamente ausentes. Não há ultranacionalismo nas ruas; nenhuma tese defendendo a expulsão de imigrantes ou culpando grupos étnicos internos ou externos pelos problemas nacionais; a nacionalização e estatização – tese, aliás, amplamente defendida pela esquerda – FELIZMENTE foi coadjuvante nos movimentos presentes. Quanto à arregimentação popular, isso é a última forma como se pode definir um movimento que se organizou semi-espontaneamente, pelas redes sociais, pelo boca-a-boca, pelo esforço de dezenas de organizações – partidárias ou não. Note-se, portanto, que quando a esquerda NOS acusa de fascista é ELA QUE FAZ O JOGO DA DIREITA. Ela deslegitima a si mesma, reproduzindo todos os estereótipos usados por liberais e conservadores para combater movimentos sociais e políticos que clamam pela transformação da sociedade. Com uma esquerda dessas, quem precisa de direita?</span></span></div>
<div align="left" class="SemEspaamento1">
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><span style="line-height: 24px;"><br /></span></span></div>
<div align="left" class="SemEspaamento1">
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><span style="line-height: 24px;"><b>Uma questão metodológica</b></span> </span><br />
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">No entanto, há mais. Contemplemos a ironia... Para preservar sua hegemonia no campo das forças contestatórias, os partidos de esquerda – senão todos, quase todos – usaram SISTEMATICAMENTE métodos fascistas para combater, e se possível eliminar, seus adversários: o povo “desorganizado” e os grupos organizados sob bases não-hierárquicas e que não aceitam nem respeitam sua “liderança”.</span></span><span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">Senão, vejamos:</span></span><br />
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">A VIOLÊNCIA – aqui, como qualquer cientista social, eu peço licença para fazer uma releitura adequada ao contexto. Não tivemos casos de militantes partidários agredindo manifestantes não partidários – antes o contrário. Mas, na história recente do Brasil, a violência SIMBÓLICA com que responderam aos críticos foi sem precedentes. Usaram todo tipo de termo pejorativo, ofensivo, agressivo, mais as táticas sujas para difamar e manchar a reputação, a inteligência e a integridade daqueles que defenderam um movimento sem partidos.</span></span><br />
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">Além disso, tivemos o caso emblemático dos militantes do PT que se infiltraram – não há outro termo para defini-lo – numa manifestação de São Paulo do dia posterior ao anúncio da revogação do aumento das passagens. Isso é uma tática fascista clara de provocação e instigação à violência. Os nazistas e fascistas italianos iam de encontro às manifestações socialistas e comunistas para incitar ao combate. Não estou defendendo as agressões físicas sofridas pelos petistas. Antes lamento que eles tenham servido de massa de manobra da liderança do partido, que mandou seu rebanho para o sacrifício, com o claro intuito de mudar a simpatia da opinião pública e deslegitimar os protestos.</span></span><br />
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">MENTIRAS – Foram tantas, que é difícil de elencar. Os partidos mentem ao qualificar o movimento de fascista. Mentem ao dizer que ser antipartidário é ser fascista. Mentem ao chamar a massa despolitizada, que eles deviam saudar e chamar para uma conversa, de massa de manobra da direita ou da mídia. Mentem ao dizer que relegando as bandeiras partidárias estamos a estimular o nacionalismo que eles, em décadas de luta, falharam ou não quiseram combater. Mentem ao dizer que somos antidemocráticos ou que os queremos “fora” das manifestações. Não. Não temos o poder de excluí-los, apenas pedimos que não levassem suas bandeiras, e participassem como cidadãos que desejam mudanças. Lá haveria pleno espaço para dialogar e propagar suas ideias. Mas eles não conseguem pensar fora da moldura. Fora do papel autoatribuído de vanguarda do proletariado. Sem bandeira, não têm ideias. Eles mentem, por fim, ao dizer que são imprescindíveis, seja para manter a democracia, seja para reformar ou revolucionar o país em nome do povo.</span></span><br />
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">Eles mentem ao dizer isso porque esquecem, convenientemente, do passado, e da lista de fracassos da política partidária de esquerda no Brasil – que só chegou ao poder quando se vendeu ao sistema. E eles mentem porque esquecem – ou desconhecem – o conjunto de movimentos e iniciativas políticas, antigos e recentes, que não se valem da forma de organização vertical, hierárquica, dos partidos, que têm avançado no mundo todo, e têm sido muito influentes em países como os Estados Unidos e Espanha, e conquistado vitórias, como na Islândia. Informem-se a respeito, para rebater as mentiras esquerdistas!</span></span><br />
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">BOATOS – Ao incitar o terror na população, espalhando boatos de golpe de Estado (militar ou das elites), eles usam a tática fascista do medo. Medo para manter o rebanho quieto, para que ele volte docilmente para sua proteção, para que voltem para o estábulo. A liberdade é uma das ideias mais perigosas do mundo. Os partidos, novamente, mostram que odeiam a liberdade, quando fazem a chantagem de que o povo escolha entre exercer sua liberdade (e ampliá-la; e conquistá-la) e a modorra da democracia de baixa-intensidade em que vivemos. Sim, muitas lutas travadas em nome da liberdade abriram caminho para golpes de Estado. Mas estas lutas nunca são em vão. Pensemos apenas alguns exemplos: Revolução Francesa, 1789; Guerra Civil Espanhola, 1936-39; Brasil, 1964. Deveríamos dizer àqueles que lutaram contra o Antigo Regime, contra a Monarquia e o Capitalismo, e pelas Reformas de Base, que era melhor, antes, ficar em casa? De jeito nenhum. Mesmo as lutas perdidas valem a pena. Elas deixam sementes, e algo melhor dali sempre há de brotar. A tirania está fadada a morrer – por isso ela tende a se defender com brutalidade. Ao menor sinal de fraqueza, à menor concessão, sua morte é inevitável. A liberdade triunfa, nem que por um minuto, antes das forças conservadores restabelecerem uma ordem negociada com medo da massa inquieta.</span></span><br />
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">Mas, voltando à questão atual... Aqueles que espalham boatos não ficam só aí. Eles dizem que nós mesmos somos instrumentos mais ou menos conscientes do antecipado Golpe de Estado. Isso faz parte da campanha de difamação. Desestimula outros a saírem de casa e faz muitas pessoas desistirem da luta: pelo desgaste de se defender de tamanhas acusações; pelo nojo diante de tanta manipulação; pelo desejo de não ser visto como colaborador, ou não colaborar de fato, com um golpe de Estado. Em suma, os partidos de esquerda protegem um governo das elites, protegem as próprias elites, se voltam contra o povo e os direitos que dizem defender. Eles fazem o jogo do sistema. Nesse sentido, ELES SÃO OS VERDADEIROS REACIONÁRIOS.</span></span></div>
<div align="left" class="SemEspaamento1">
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><span style="line-height: 24px;"><br /></span></span></div>
<div align="left" class="SemEspaamento1">
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><span style="line-height: 24px;"><b>O que está em jogo</b></span> </span><br />
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">Partidos de esquerda, PT (pseudoesquerda), elite e imprensa, na verdade, foram todos pegos de surpresa pelas recentes manifestações. Por diferentes motivos, elas são inconvenientes para todos esses grupos. Eles querem a mim, a você, a todos os independentes, a todos os que PENSAM de forma independente, fora das ruas. SÃO TODOS FORÇAS DO SISTEMA – mesmo o mais radical, pretensamente revolucionário dos partidos, está, neste momento, servindo ao sistema de exploração contínua, acumulação incessante, consumismo histérico, desigualdades aberrantes, injustiças notórias e liberdades precárias.</span></span><br />
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">É desse sistema que você quer participar? É com seus acólitos que pretende colaborar?</span></span><br />
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">Estou contente. As últimas semanas mostraram com muita clareza aquilo que a experiência e a história me mostraram, mas o cotidiano alienante por vezes me fazia esquecer. Isto é: NÃO PODEMOS CONFIAR NOS PARTIDOS POLÍTICOS, NA SUA ORGANIZAÇÃO HIERÁRQUICA E AUTORITÁRIA, NA SUA IDEOLOGIA. Como disse antes, fora do poder, a esquerda só pode usar táticas sórdidas de difamação e contra-informação. No poder, ela usaria a violência pura.</span></span><br />
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">Desesperada, a esquerda tradicional autoritária está se organizando contra nós, em vez de combater o suposto inimigo comum: o SISTEMA CAPITALISTA e o ESTADO.</span></span><br />
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">O TEMPO DAS VANGUARDAS ESTÁ A ACABAR. Seu tempo já passou. Suas ideias são obsoletas e venenosas. Seus métodos, violentos, autoritários, inaceitáveis numa sociedade realmente livre. A colaboração com partidos está, do meu ponto de vista, sujeita a dois critérios: que a aliança seja igualitária, sem líderes; e vinculada a causas muito específicas, de modo a que nem a autonomia dos libertários se perca, nem nos arrisquemos a colocar mais perto do poder aqueles que também usariam da violência sistemática para se manter – inclusive, claro, contra nós –, e que não destruiriam o Estado, mas o inchariam com uma burocracia autoritária e privilegiada.</span></span><br />
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">SIM, SOU CONTRA PARTIDOS. NÃO, NÃO SOU FASCISTA. NEM ALIENADO. SOU LIBERTÁRIO. Uso “libertário” aqui num sentido amplo: me identifico não apenas com os anarquistas strictu sensu, mas todos os indivíduos e movimentos que acreditam na organização livre e não-hierárquica.</span></span><br />
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">Temos que romper com essa poderosa dicotomia que se criou entre a esquerda tradicional, vanguardista, marxista-leninista, e o capitalismo liberal. Eu acredito no poder de auto-organização popular, na autogestão, na autonomia e nos movimentos sociais abertos e não hierárquicos. Temos de nos valer do aprendizado da história, a consciência de que ela nem sempre se repete, e nos apoiar tanto nas ideias novas, quanto nas antigas, tentando atualizá-las. E que, dessa tensão criativa, sejamos capazes de pensar alternativas e construir um novo mundo.</span></span><br />
<span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">POR UM MUNDO:</span></span><span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">SEM OPRESSÃO, SEM ESTADO, SEM PARTIDO.</span></span><span lang="PT-BR" style="background-color: white; background-position: initial initial; background-repeat: initial initial;"><br /></span><span class="textexposedshow"><span lang="PT-BR" style="background: white; line-height: 150%; mso-bidi-font-size: 9.0pt;">LIVRE, IGUAL, FRATERNO E JUSTO.</span></span></div>
Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-17673730230965432452013-03-02T18:10:00.001-03:002014-12-15T14:24:35.073-02:00O Esclarecimento floydiano - Uma homenagem aos 40 anos de Dark Side of the Moon<br />
<div align="right" class="MsoNormal" style="margin-left: 191.4pt; text-align: right;">
<i>“I’ve
always been mad, I know I’ve been mad, like the most of us are”<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftn1" name="_ftnref1" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: EN-US; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[1]</span></b></span><!--[endif]--></span></a><o:p></o:p></i></div>
<div align="right" class="MsoNormal" style="margin-left: 191.4pt; text-align: right;">
<span lang="PT-BR">Gerry O’Driscoll</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span lang="PT-BR">O texto a seguir é
uma interpretação muito pessoal, um esboço de uma leitura não antropocêntrica
de uma obra prima da música popular contemporânea, o álbum Dark Side of the
Moon, da banda inglesa Pink Floyd, e também uma homenagem aos seus 40 anos de
existência, completos no dia Primeiro de Março de 2013. Pode ser melhor
definido como uma releitura ou reconstrução, não tendo, portanto, a pretensão
de oferecer uma análise literária, filosófica e conceitual nem rigorosa, nem
exaustiva. É, contudo, inspirado nas minhas leituras da Teoria Crítica, do
Esclarecimento (mais conhecido como Iluminismo) e, claro, dos Direitos Animais.<o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">Tenho pensado no processo do esclarecimento
e na teoria crítica a partir de um ponto de vista “floydiano”. Mais
especificamente, a partir de questões levantadas pela a obra clássica do Pink
Floyd – o disco <i>Dark Side of the Moon</i>.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">Meus pontos de partida foram, em primeiro lugar, a síntese que
seu principal autor, o baixista e letrista Roger Waters, ofereceu para os temas
suscitados pelo álbum. Ele é, nas suas palavras, uma afirmação da <i>empatia</i><a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftn2" name="_ftnref2" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[2]</span></span><!--[endif]--></span></a>,
sendo esta a premissa que
provê a integração temática entre as canções. Em segundo
lugar, a dimensão visual que sempre foi tão importante na concepção artística
da banda, partindo tanto da icônica capa do disco, o prisma que decompõe a luz,
e das imagens projetadas nas suas apresentações ao vivo em que o álbum era reproduzido
na íntegra. Em terceiro lugar, dos roteiros e esboços
extraídos de depoimentos da banda e versões anteriores, as quais podem servir
de complemento ou contraponto às ideias que seriam desenvolvidas no resultado
final.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">Com base nesses elementos, tentei articular
a teoria crítica como um prisma que decompõe as diferentes dimensões da
realidade, sendo a luz solar uma metáfora para o esclarecimento, e o eclipse a
sombra que se projeta sobre a realidade, nos impedindo de apreendê-la na sua
plenitude. O prisma, por sua vez, pode servir como instrumento para a
reconstrução crítica e criativa, mas também como um fragmentador, que desvia a
luz em várias linhas crescentemente divergentes. Pode, assim, servir tanto ao
propósito esclarecedor da teoria crítica quanto aos fins enganosos da ideologia,
a partir das lentes do observador.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span lang="PT-BR">Speak
to Me<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">O primeiro ruído a abrir o álbum é o
batimento do coração. É um convite à disposição afetiva para o contato com o
mundo exterior. Ele nos leva a um estado anterior à razão. Estar vivo é
condição <i>sine qua non</i> para a
participação criativa nos processos da natureza, uma faculdade que não é
exclusiva do ser humano. A maioria dos animais, e somente eles, são dotados de
um coração, o órgão que bombeia o fluido vital que <i>anima</i> todos os demais órgãos.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">Após esse sopro fundamental, porém, vem o <i>discurso</i>. A primeira faixa segue numa
amálgama dos depoimentos coletados pela banda, a partir de algumas perguntas
chave, apresentadas a diferentes pessoas que estiveram presentes no estúdio
onde o disco era gravado. Seu título seria a primeira pista do tema da empatia,
fundada no diálogo entre as partes, a comunicação, outro tema recorrente nas
músicas do Pink Floyd. O diálogo como requisito para o entendimento mútuo pode
ser ele mesmo entendido de modo restrito, cartesiano, antropocêntrico e
egocêntrico. Mas pode ser também reformulado como um diálogo entre o humano, a
sociedade, a natureza e o animal. Os três últimos “falam” com o ser humano,
embora numa linguagem que frequentemente não é compreendida. Compreender essa linguagem
é fundamental para estender, para além do círculo restrito das relações
pessoais, a empatia, de modo a expandir a nossa comunidade moral. Assim, o
contato com o outro, e a disposição para o diálogo nos tem permitido, em teoria
– mas constantemente não na prática – ampliar nossa consciência ética para além
dos laços tradicionais da família e da comunidade local para contextos cada vez
mais amplos da humanidade, os demais animais e a natureza.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span lang="PT-BR">Breathe<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">A primeira exposição direta da filosofia
subjacente à obra pode ser entendida como um convite ao exercício da empatia
diante do mundo que nos cerca:</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<i>Breathe, breathe in the air<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>Don’t be afraid to care<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>Live, but don’t leave me<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftn3" name="_ftnref3" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><b><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[3]</span></b></span><!--[endif]--></span></span></a></i><i><o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">O verso a seguir é interessante na medida
em que a exaltação ao engajamento afetivo não se dá pela anulação individual. É
também uma exortação para ir além dos afetos: requer discernimento – <i>Look around</i> – e traz consigo não só a
possibilidade, mas a responsabilidade da autonomia moral – <i>Choose your own ground<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftn4" name="_ftnref4" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><b><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[4]</span></b></span><!--[endif]--></span></a></i>
– para agir sobre a realidade. A liberdade implica, assim, direitos e
deveres – ecos de Rousseau e Kant podem ser encontrados nesta primeira estrofe.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">A referência, na segunda estrofe, à
percepção da experiência, num sentido quase empirista – <i>And all you touch and all you see/ Is all your life will ever be<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftn5" name="_ftnref5" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><b><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[5]</span></b></span><!--[endif]--></span></a></i>
– é, a seguir, complementada pelo imperativo da ação sobre a realidade:</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<i>Run, rabbit, run<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>Dig that hole, forget the Sun<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>When, at last, the work is done<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>Don’t sit down, it’s time to dig another one<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftn6" name="_ftnref6" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: EN-US; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[6]</span></b></span><!--[endif]--></span></a><o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">Impossível não recordar da famosa assertiva
de Karl Marx: “Os filósofos têm apenas <em>interpretado</em> o mundo de maneiras diferentes; a questão,
porém, é <em>transformá-lo</em>”.
Percebe-se, nesta passagem, porém, a influência mais ampla da ética do trabalho
que inspira ideologias de outro modo tão diferentes quanto o liberalismo e o
marxismo.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">A estrofe final encerra, porém, uma
advertência aberta a múltiplas interpretações:</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<i>For long you live, and high you fly<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>But only if you ride the tide<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>And balance on the biggest wave<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>You race towards an early grave<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftn7" name="_ftnref7" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: EN-US; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[7]</span></b></span><!--[endif]--></span></a><o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">O trecho foi frequentemente entendido com
uma referência à ambição. Outras leituras, entretanto, são cabíveis e talvez
mais adequadas. O “equilíbrio sobre a onda mais alta” é precedido pela
passividade diante da vida – “somente seguir a maré”. Essa qualificação
reinsere, de modo mais adequado, a linha mestra da empatia como a participação
criativa e afetiva no mundo, em contraste daqueles que vêm ao mundo “a passeio”
e navegam com indiferença (e imprudência), sem consciência do que está no seu
entorno. No fim, “não ter medo de se importar” é a atitude mais prudente diante
de um mundo cujos perigos nos amedrontam e paralisam nossa capacidade de agir e
arriscar. Pode ser incluída também uma metáfora ainda mais ampla sobre a
própria vida e a morte, a linha tênue que as separa, a fugacidade da existência.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">A canção cria então o contexto, a fundação
sobre todos os temas subsequentes. A linha descendente em que ela é concluída é
também uma descendente sobre o lado obscuro da existência – o “<i>dark side</i>”. Em vez da estrutura
narrativa clássica, que apresenta as conclusões após o desenvolvimento do
conjunto da obra, <i>Dark Side of the Moon</i>
já se abre com a chave do enigma para o problema do esclarecimento, do pleno
desenvolvimento de nossas capacidades morais.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span lang="PT-BR">On
the Run<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">Originalmente intitulada “<i>The Travel Sequence</i>”, essa música
instrumental foi a princípio concebida a partir da experiência da banda, na
corrida frenética dos concertos e no medo de voar do próprio Roger Waters<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftn8" name="_ftnref8" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[8]</span></span><!--[endif]--></span></a>,
exacerbado pela exposição contínua ao risco, devido às viagens constantes. A
fobia é manifesta no clímax, onde se ouve o ruído de uma explosão. O título
final é mais instigante, porém. “<i>On the
Run</i>” significa “em fuga”, e pode referir de modo mais abrangente e sugestivo
à fuga da realidade, o nosso desligamento do mundo, enclausurados na corrida
frenética da sobrevivência, dos imperativos da vida profissional, da busca pela
satisfação pessoal. Enfim, da alienação. Pode, assim, ser interpretada também
como uma crítica social, sutil mas contundente, ao desapego afetivo e moral
imposto pela disciplina e pela exploração do trabalho. Impossível não
associá-la à crítica socialista do capitalismo industrial, que acelera a vida e
aprofunda a alienação. Mas, saindo do óbvio, compreendemos que este processo é
contínuo, dado que a história humana é uma linha constante de exploração,
opressão e destruição, com o qual nenhum sistema social, antes ou depois,
conseguiu romper. Isso nos afasta da idealização do passado e das utopias simplistas.
Transformar a realidade é um projeto para o futuro, e requer uma teoria crítica
da realidade, composta pela constante reflexão autocrítica.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b>Time/ Breathe Reprise/ The Great Gig in the Sky<o:p></o:p></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">A seção seguinte, que toma o restante do que
era o Lado A do LP pode ser integrada como uma sequência sobre a temporalidade
e a mortalidade, que inclui referências à religião. Os carrilhões e
despertadores retomam, de modo mais explícito, a fugacidade da existência cujas
pistas foram intuídas nas faixas anteriores. Mas o tema da alienação também
está manifesto em largas pinceladas: a indolência que serve de contraponto à
vida moderna acelerada, os planos que não dão em nada, a “espera em quieto
desespero” (<i>Hanging on in quiet
desperation</i>) que, no entanto, não deixam ao observador muito mais o que
dizer (<i>Thought I’d something more to say</i>).
O único conforto parece vir da familiaridade do lar, e da fé, apresentados em <i>Breathe Reprise</i>. Trata-se, porém, de um
breve interlúdio, um mero escapismo que não oferece segurança efetiva aos
golpes da vida. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">Isso se demonstra pela análise da faixa
seguinte, <i>The Great Gig in the Sky</i>,
em que não há muito espaço para confortos sentimentais ou espirituais. Originalmente
intitulada <i>The Mortality Sequence </i>(e adornada,
a princípio, por citações bíblicas, que felizmente não chegaram à versão
definitiva), não possui letra, apenas as vocalizações que exprimem o sofrimento
e a morte, complementados nas apresentações ao vivo por um vídeo em que a
vastidão e violência das ondas do mar parecem afogar a audiência nas dores da
existência, até o vazio da não-existência. Há uma sensação de vulnerabilidade e
pequenez diante dos processos que não conseguimos efetivamente compreender ou
controlar.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span lang="PT-BR">Money/
Us and Them<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">A sequência que abre o Lado B é a que fala
mais diretamente das relações de poder, exploração e opressão que parasitam a
vida social. Não é de admirar que “Money” seja a letra mais direta do álbum,
bastante afim à crueza do materialismo das relações de produção, que substituem
os laços simbólicos pela exploração crua e direta.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<i>New car, caviar, four-star daydream<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>Think I’ll buy me a football team<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<i>(…)<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<i>Money, it’s a hit<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>Don’t give me that do-goody good bullshit<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<i>I’m in the high fidelity first class traveling
set<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>And I think I need a Lear Jet<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftn9" name="_ftnref9" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: EN-US; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[9]</span></b></span><!--[endif]--></span></a><o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">A ganância pode ser entendida como outra
dimensão da fugacidade e alienação. A busca da felicidade se dilui na acumulação,
a busca de prazeres materiais, insaciáveis, incessantes, crescentes, no qual
não há espaço para a empatia, senão manifesta num sentido muito superficial,
abstrato e hipócrita, constituído por lugares comuns e frases de efeito, sem
nenhum efeito prático ou profundidade filosófica:</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<i>Money, it’s a crime<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>Share it fairly but don’t take a slice of my
pie<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<i>Money, so they say<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>Is the root of all evil today<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<i>But if you ask for a rise,<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>It’s no surprise that they’re giving none<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i><span lang="PT-BR">Away,
away, away…<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftn10" name="_ftnref10" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><b><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[10]</span></b></span><!--[endif]--></span></a><o:p></o:p></span></i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">A abstração superficial e desconectada da
prática é o complemento coerente da materialidade suprema da acumulação de
riqueza. Ela nos remete, mais uma vez, à futilidade da separação entre teoria e
prática. Separadas, elas reforçam os grilhões que nos acorrentam, ao invés de
servir à emancipação e pleno desenvolvimento das nossas faculdades, sobretudo
as morais.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">Fazendo a ponte entre as esferas econômica
e política das dimensões de poder está a violência direta que é o tema dos
fragmentos de depoimentos que liga Money à faixa subsequente. As questões que se propõem são:
“Quando foi a última vez que você foi violento? Você estava com a razão?”. Ao
que os depoentes respondem unanimemente de forma afirmativa.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">A canção que se segue fora anteriormente,
ainda sem letra, denominada “<i>The Violence
Sequence</i>”, e gravada para a trilha sonora do filme <i>Zabriskie Point</i>, de Michelangelo Antonioni. Belíssima, se destaca
não por fanfarras e explosões, mas pela melancolia ímpar, sendo ainda mais
pungente que a melodia de <i>The Great Gig
in the Sky</i> (ambas compostas ao piano por Richard Wright).</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">A violência física é, talvez, a forma mais
clara e radical de negação da empatia. Essa separação está explicitada no
título da canção, <i>Us and Them</i> – nós e
eles. A referência mais óbvia é a guerra – a violência sistemática, coletiva,
que engolfa sociedades inteiras e que, no mundo moderno, apresenta-se da forma
mais totalizante: mobiliza a todos os membros da coletividade envolvida, entre
soldados, vítimas civis e força de trabalho. É também a radical negação da
alteridade e da individualidade. Somos apenas “nós” e “eles” – duas entidades
perfeitamente homogêneas e separadas, sem espaço para o florescimento do
indivíduo e do contato com os diferentes.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">Contudo, não é só isso. A dualidade também
serve para demarcar as hierarquias políticas, sociais e militares – os homens comuns dos
líderes (<i>And after all, we’re only
ordinary men<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftn11" name="_ftnref11" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><b><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[11]</span></b></span><!--[endif]--></span></a></i>)
e comandantes das batalhas e soldados. Aqueles indivíduos despersonalizados,
feitos instrumentos, meios-para-fins alheios, representados apenas por linhas
num mapa, que o general move de um lado a outro.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<i>Forward!, he cried, from the rear<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>And the front rank died<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>And the general sat, and the lines on the map<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>Moved from side to side<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftn12" name="_ftnref12" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: EN-US; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[12]</span></b></span><!--[endif]--></span></a><o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">No vídeo que era projetado nos shows, a
relação com a perda da individualidade é assim feita de modo mais explícito a
partir da multidão de homens e mulheres sem rosto que se movem anonimamente
pelas ruas movimentadas da metrópole moderna.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">As questões são resumidas com sagacidade na
última dualidade apresentada, que atesta:</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<i>With. Without.<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>And who’ll deny it’s what the fighting’s all
about?<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftn13" name="_ftnref13" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: EN-US; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[13]</span></b></span><!--[endif]--></span></a><o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">Trata-se de mais do que apenas os saques, a
despossessão, o desalojamento, os armados e desarmados ou até a distinção entre
vivos e mortos – com vida, sem vida. Trata-se das vidas com valor, sem valor. Vidas
com individualidade, sem individualidade. A guerra, enfim, como a manifestação
máxima da redução do sujeito à condição de objeto. Uma guerra que, encenada
pelos seres humanos de tempos em tempos, em cenários selecionados, é, contudo,
reproduzida cotidianamente, sem pausa, na exploração da vida social e,
sobretudo, na relação de completa despersonalização que o ser humano mantém com
os demais animais, instrumentos autômatos, relógios animados da racionalidade
cartesiana, com os quais estamos permanentemente em batalha.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span lang="PT-BR">Any
Colour You Like<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">Instrumental, essa faixa está mais aberta à
especulação – como o próprio sentido do prisma que adorna a capa. A
decomposição da luz branca põe à disposição do observador todas as possibilidades
do espectro cromático. Cabe-lhe escolher a que mais lhe apraz (<i>Any colour you like</i> – “Qualquer cor que
te agrade”). São as mais variadas ideologias, filosofias, interpretações,
métodos de análise, segmentos e fragmentos da realidade.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">A decomposição da luz altera o ângulo da
onda. Este fenômeno nos alerta que a escolha singular apenas daquela cor que
nos agrada redunda, necessariamente, numa percepção distorcida, sectária. Esse
é, na teoria crítica, o papel da ideologia. Ela não revela a realidade tal como
ela é, mas oferece uma versão alienante que atende aos interesses restritos
daqueles que a ela aderem. Não é uma escolha arbitrária, exceto para os ingênuos que
se deixam seduzir. Mas tampouco é de uma escolha da razão meramente
instrumental. A ideologia é uma manifestação do olhar enviesado de um
observador que, pelas circunstâncias da vida, das relações sociais, da sua
própria posição na hierarquia social, inclina-se a analisar o mundo apenas por
uma fração do espectro cromático. É assim que o capitalista afirma, de modo
obtuso, mas sincero, à reivindicação do trabalhador: “Mas é impossível atender
à sua demanda; uma redução na jornada de trabalho comprometerá a produção; o
aumento de salário quebrará as finanças; a democratização da fábrica violará a
racionalidade produtiva, e tudo isso arruinará a competitividade da empresa. A
divisão igualitária da riqueza solapa as bases das leis do mercado que
possibilitam o progresso da sociedade. Somente lhe resta trabalhar duro, para
talvez poder usufruir dessa promessa de prosperidade”.</span><br />
<span lang="PT-BR"><br /></span>
<span lang="PT-BR">O pensador efetivamente crítico, ciente da força da ideologia, deve buscar desvelá-la onde quer que ela se esconda, mesmo onde pareça mais natural. E vale ressaltar, aqui, a advertência de António Gramsci: mesmo o marxismo (ou a </span>“Filosofia da Práxis”, como ele a chamava, era uma ideologia no sentido marxista clássico, isso é, restrita pelas condições históricas, sociais, econômicas. Apenas com a superação da sociedade de classes poderíamos aspirar a uma visão da mundo genuinamente universal. Sé é que isso é possível. Mas, enquanto não é, podemos continuar nosso questionando as ideologias dominantes e construindo uma teoria crítica e reflexiva, que, neste espaço imperfeito, abra caminhos de emancipação.</div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span lang="PT-BR">Brain
damage<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">Oprimido pela exploração, separado de seus
semelhantes, desconectado da natureza pela artificialidade do trabalho
mecânico, seduzido pela ideologia, e por fim despersonalizado, nada resta do
indivíduo.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">A canção coloca, enfim, uma questão nada
nova e bastante familiar ao pensamento crítico nos campos da psicologia e da
teoria social: quem são, afinal, os insanos? Os que se conformam à realidade
alienante, ou os que insistem, apesar dos letreiros em contrário, a pisar na
grama (<i>The lunatic is on the grass</i>)?
Os que recordam a interação lúdica e despreocupada da infância (<i>Remembering games, and daisy chains and
laughs</i>), ou os que aceitam se manter no caminho que lhes é ordenado? </span>É preciso mantê-los no caminho certo, adverte a
canção (<i>Got to keep the loonies on the
path</i>). <span lang="PT-BR">Esse é o papel daqueles que comandam a
sociedade, e daqueles que cuidam dos casos patológicos. A conformação não é, na
prática, uma opção. É um imperativo:</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<i>You raise the blade, you make the change<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>You rearrange me till I’m sane<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>You lock the door, you throw away the key<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>And there’s someone in my head, but it’s not me<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftn14" name="_ftnref14" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: EN-US; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[14]</span></b></span><!--[endif]--></span></a><o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">A interpretação fácil e tentadora, feita <i>ad nauseam</i>, é que <i>Brain Damage</i> fala da loucura. Mas ela se torna mais instigante ao
refletirmos que a loucura é ela mesma uma forma de alienação, e os muros da
instituição que aprisionam os insanos são da mesma natureza daqueles muros
invisíveis que constituem as sociedades humanas, que contêm todos aqueles que
ousam questionar, discordar e não se conformar. É uma canção, portanto, sobre
todos nós.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">Enfim, novamente, o outro lado da alienação
é a perda da individualidade. Assim, a crítica subjacente da sociedade
industrial, das instituições, da guerra, é a denúncia da redução do sujeito à
condição de objeto. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span lang="PT-BR">Eclipse<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">A faixa final provê a síntese dos temas
abordados ao longo da obra. Numa listagem simples dos componentes que conformam
a totalidade da vida, forma-se um ciclo contínuo que também se manifesta na
arte gráfica que embala os sons. Na contracapa, o espectro novamente se funde
no facho de luz branca – apenas para se decompor, outra vez.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
Enfim, os intérpretes
declaram:<o:p></o:p></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<i>And everything under the Sun is in tune<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>But the Sun is eclipsed by the Moon<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftn15" name="_ftnref15" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: EN-US; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[15]</span></b></span><!--[endif]--></span></a><o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">Esses versos finais podem ser lidos como
uma representação simbólica do caráter iluminista da obra. </span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">Interessante ressaltar que a frase que
melhor sintetiza a ambição artística e poética de <i>Dark Side of the Moon</i> vem de um homem simples, na base da
hierarquia social.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<i>There is no dark side of the moon, really<o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<i>As a matter of fact, it’s all dark<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftn16" name="_ftnref16" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: EN-US; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[16]</span></b></span><!--[endif]--></span></a><o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">Afirmação do <span class="st">porteiro do
estúdio Abbey Road, o irlandês Gerry O’Driscoll, que pode ser ouvida</span>
antes que também a música forme um ciclo completo, encerrando-se com o pulsar
do coração, a vida. Sua declaração na íntegra, registrada no estúdio, dá a
dimensão final da obra:</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<i>The only thing that makes it look light is the Sun<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftn17" name="_ftnref17" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><b><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: EN-US; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[17]</span></b></span><!--[endif]--></span></a><o:p></o:p></i></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">A luz que dá sentido e harmonia ao planeta
não é uma deidade metafísica, mas o corpo estelar que, em última instância,
possibilita toda a vida terrestre. Sobre este, projeta-se a sombra que forma o
véu que deixa passar apenas fragmentos da realidade. É a sombra da ideologia,
da alienação, da reificação, da objetificação. É apenas a luz projetada pelo
sol que confere sentido pleno à existência, revelando aquilo a que nós, de
outro modo, seríamos cegos para perceber – a realidade em todas as suas cores.
O sol opera, assim, como uma bela metáfora para as luzes do esclarecimento.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<b><span lang="PT-BR">Conclusão
– o método do prisma como esclarecimento floydiano<o:p></o:p></span></b></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">A análise integral da obra remove qualquer possibilidade
de crítica pós-moderna que se lhe queira atribuir. A <i>empatia</i> que é o tema unificador de <i>Dark Side of the Moon</i> representa o equilíbrio distante, porém
necessário, dos imperativos éticos da vida social como condição do
florescimento individual. O ser humano pleno é aquele que compreende que o
respeito pela dignidade de cada um, inclusive os indivíduos de outras espécies,
como fim em si mesmo que é, é condição inseparável para a preservação do meio
social e natural no qual todos subsistem.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">O prisma floydiano corresponde, na interpretação
aqui provista, ao método da teoria crítica, esta própria uma exortação à crítica
reflexiva, sem a qual o pensamento crítico que foi o Iluminismo torna-se
estéril, suas promessas de emancipação perdidas nas trevas da escravização. A
teoria crítica, tal qual o prisma, decompõe e revela as diferentes dimensões da
realidade.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">Contudo, o método também pode ser usado num
sentido muito distinto, da pós-modernidade, que fragmenta a realidade de modo a
distorcê-la e tornar qualquer unificação impossível. A este corresponde a
distorção operada, no pós-guerra, à crítica do projeto do Esclarecimento, como discutida
pelos filósofos Adorno e Horckheimer<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftn18" name="_ftnref18" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[18]</span></span><!--[endif]--></span></a>
que, não obstante, oferecem a alternativa do exercício da crítica da própria
teoria crítica (que foi a princípio o Esclarecimento), como meio de preservar
seu potencial emancipador, não nos deixarmos cegar pela luz, nem tampouco pela sombra
que se projeta sobre ela.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">O processo da teoria crítica, semelhante ao
prisma floydiano, não opera num sentido único, mas <i>recompõe</i> as cores do espectro numa luz universal, formando um ciclo
completo:</span></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR"><br /></span></div>
<div class="separator" style="clear: both; text-align: center;">
<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgFYI5PjRaQORvCC59je7eEV2OVDQ_fRaqOKDFOrbGza9Sut5u80EIlEo-yK6TlH5MSrq202u_ErKUCFAS7HgdWGKC9PVPaN6b9QDLthgD0khwN44sVJQuPYlKMRda8374znWf0xrPNJvl8/s1600/dsotm.jpg" imageanchor="1" style="margin-left: 1em; margin-right: 1em;"><img border="0" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgFYI5PjRaQORvCC59je7eEV2OVDQ_fRaqOKDFOrbGza9Sut5u80EIlEo-yK6TlH5MSrq202u_ErKUCFAS7HgdWGKC9PVPaN6b9QDLthgD0khwN44sVJQuPYlKMRda8374znWf0xrPNJvl8/s320/dsotm.jpg" height="200" width="320" /></a><a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftn19" name="_ftnref19" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span class="MsoFootnoteReference"><span style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: EN-US; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: AR-SA; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: EN-US; mso-font-kerning: .5pt; mso-no-proof: yes;">[19]</span></span></span></a></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">É uma licença artística, não é fisicamente
possível. Ela nos recorda da necessidade de reconstrução e inconformismo,
motivada pela empatia e a racionalidade que se integram para transformar a
realidade, ao invés de naturalizá-la.</span></div>
<div class="MsoNormal">
<br /></div>
<div class="MsoNormal">
<span lang="PT-BR">É o Esclarecimento floydiano.</span></div>
<div>
<!--[if !supportFootnotes]--><br clear="all" />
<hr align="left" size="1" width="33%" />
<!--[endif]-->
<br />
<div id="ftn1">
<div class="MsoFootnoteText">
<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftnref1" name="_ftn1" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[1]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="PT-BR"> “Eu sempre fui louco, eu sei que sou louco, como a maioria de nós é”</span></div>
</div>
<div id="ftn2">
<div class="MsoFootnoteText">
<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftnref2" name="_ftn2" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[2]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="PT-BR"> A afirmação está no documentário</span><span lang="PT-BR" style="font-size: 9pt;"><span class="apple-converted-space"> </span></span><i>Classic Albums: The Dark Side
of the Moon.<span class="apple-converted-space"> </span></i>Interessante ainda
destacar que a empatia é, para Waters, um tema central no obra do Pink Floyd
(ou nas suas letras, enfim). Ele destaca que o embrião para todo o universo
musical e temático do Pink Floyd está na canção<span class="apple-converted-space"> </span><i>Echoes</i>, que contém os versos: Strangers passing in the
street/ By chance two separate glances meet/ And I am you and what I see is me,
que Waters considera uma síntese do tema da empatia. A relação criativa entre
Echoes e Dark Side of the Moon também é destacada no livro<span class="apple-converted-space"> </span><i>The Dark Side of the Moon: os bastidores da obra-prima do
Pink Floyd</i>, de John Harris.</div>
</div>
<div id="ftn3">
<div class="MsoFootnoteText">
<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftnref3" name="_ftn3" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[3]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="PT-BR"> “Respire, respire o ar/ Não tenha medo de se importar/ Viva, mas
não me abandone”</span></div>
</div>
<div id="ftn4">
<div class="MsoFootnoteText">
<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftnref4" name="_ftn4" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[4]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="PT-BR"> “Olhe ao redor, escolha seu próprio terreno”</span></div>
</div>
<div id="ftn5">
<div class="MsoFootnoteText">
<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftnref5" name="_ftn5" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[5]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="PT-BR"> “E tudo que você toca, e tudo que você vê/ É tudo que sua vida
poderá ser”</span></div>
</div>
<div id="ftn6">
<div class="MsoFootnoteText">
<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftnref6" name="_ftn6" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[6]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="PT-BR"> “Corra, coelho, corra/ Cave sua toca, esqueça o sol/ Quando enfim o
trabalho acabou/ Não descanse, é hora de cavar mais uma”</span></div>
</div>
<div id="ftn7">
<div class="MsoFootnoteText">
<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftnref7" name="_ftn7" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[7]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="PT-BR"> “Longa é sua vida/ E alto você voa/ Mas se você somente seguir a
maré/ E se equilibrar na onda mais alta/ Se precipita para uma cova prematura”</span></div>
</div>
<div id="ftn8">
<div class="MsoFootnoteText">
<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftnref8" name="_ftn8" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[8]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="PT-BR"> </span>Declaração extraída de<span class="apple-converted-space"> </span><i>The Dark Side of the Moon: 2003 Documentary</i>, disponível em<span class="apple-converted-space"> </span><i>The Dark Side of the Moon: Immersion Edition</i>, de 2011.<o:p></o:p></div>
</div>
<div id="ftn9">
<div class="MsoFootnoteText">
<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftnref9" name="_ftn9" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[9]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="PT-BR"> “Carro novo, caviar, sonho quatro-estrelas/ Acho que vou comprar um
time de futebol/ (...)/ Dinheiro é uma sensação/ Não me venha com essa besteira
de boa ação/ / Eu estou no grupo de viagem de alta fidelidade de primeira
classe/ E acho que preciso de um <i>Lear Jet</i>”</span></div>
</div>
<div id="ftn10">
<div class="MsoFootnoteText">
<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftnref10" name="_ftn10" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[10]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="PT-BR"> “Dinheiro é um crime/ Partilhe equanimemente, mas tire a mão da
minha porção/ / Dinheiro, é o que se diz/ A raiz de todo mal atual/ Mas se você
pedir um aumento/ Não é de surpreender que não te darão/ Nenhum, nenhum, nenhum”</span></div>
</div>
<div id="ftn11">
<div class="MsoFootnoteText">
<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftnref11" name="_ftn11" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[11]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="PT-BR"> “E, afinal, somos todos homens comuns”</span></div>
</div>
<div id="ftn12">
<div class="MsoFootnoteText">
<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftnref12" name="_ftn12" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[12]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="PT-BR"> “Adiante! Ele gritou, da retaguarda/ E o pelotão da frente morreu/
E o general sentou, e as linhas no mapa/ De um lado a outro, mudou”</span></div>
</div>
<div id="ftn13">
<div class="MsoFootnoteText">
<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftnref13" name="_ftn13" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[13]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="PT-BR"> “Com. Sem/ E quem vai negar que lutar se resume a isso?”</span></div>
</div>
<div id="ftn14">
<div class="MsoFootnoteText">
<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftnref14" name="_ftn14" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[14]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="PT-BR"> “Você ergue a lâmina, você faz a mudança/ Você me rearranja até me
fazer são/ Você tranca a porta e joga fora a chave/ E há alguém na minha mente,
mas não sou eu”</span></div>
</div>
<div id="ftn15">
<div class="MsoFootnoteText">
<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftnref15" name="_ftn15" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[15]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="PT-BR"> “E tudo sob o sol está em harmonia/ Mas o sol é eclipsado pela lua”</span></div>
</div>
<div id="ftn16">
<div class="MsoFootnoteText">
<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftnref16" name="_ftn16" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[16]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="PT-BR"> “Realmente, não há lado obscuro da lua/ na verdade, é tudo escuro”</span></div>
</div>
<div id="ftn17">
<div class="MsoFootnoteText">
<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftnref17" name="_ftn17" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[17]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="PT-BR"> “A única coisa que a faz parecer luminosa é o Sol”. Pode-se ouvir a
declaração integral de O’Driscoll, com esta conclusão, no documentário <i>Classic Albums: The Dark Side of the Moon</i>.</span></div>
</div>
<div id="ftn18">
<div align="left" class="SemEspaamento1">
<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftnref18" name="_ftn18" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 12.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-size: 11.0pt; mso-bidi-language: EN-US; mso-fareast-font-family: "Times New Roman"; mso-fareast-language: EN-US;">[18]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="PT-BR"> </span><span class="CitaesChar"><span lang="PT-BR">ADORNO, Theodor,
HORCKHEIMER, Max. <i>Dialética do
Esclarecimento</i>. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2006.</span></span><span lang="PT-BR"><o:p></o:p></span></div>
<div class="MsoFootnoteText">
<br /></div>
</div>
<div id="ftn19">
<div class="MsoFootnoteText">
<a href="file:///C:/Users/BFMuller/Documents/Bruno/Artigos%20Diversos/Textos%20meus%20-%20Internet/O%20Esclarecimento%20floydiano.doc#_ftnref19" name="_ftn19" title=""><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR"><!--[if !supportFootnotes]--><span class="MsoFootnoteReference"><span lang="PT-BR" style="font-family: "Times New Roman","serif"; font-size: 10.0pt; line-height: 150%; mso-ansi-language: PT-BR; mso-bidi-font-family: Mangal; mso-bidi-language: HI; mso-fareast-font-family: SimSun; mso-fareast-language: HI; mso-font-kerning: .5pt;">[19]</span></span><!--[endif]--></span></span></a><span lang="PT-BR"> A imagem está
errada. O vermelho deveria estar no topo, o lilás no fundo, mas não achei
nenhuma imagem dos dois lados do álbum que juntasse o espectro no sentido
certo. Se alguém tiver, me avise.</span></div>
</div>
</div>
<br />
<div>
<div id="ftn2">
</div>
</div>
Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-80314139622414165752011-05-01T12:43:00.003-03:002011-05-01T12:47:12.950-03:00Os Paradoxos da Liberdade e da Democracia<i>Texto originariamente publicado em janeiro de 2010 na Agência de Notícias de Direitos Animais</i><br />
<br />
Em que medida a democracia e a liberdade favorecem ou limitam uma à outra e, consequentemente, também favorecem ou limitam o respeito aos direitos fundamentais? Trata-se de assunto muito complexo, e não tenho pretensão de abordá-lo com a profundidade que ele merece, o que seria impossível neste espaço e sem o apoio de uma ampla bibliografia. Gostaria, entretanto, de incitar o leitor à reflexão, a partir de alguns casos que demonstram a relação por vezes ambígua entre os dois princípios, que fatalmente afetam os direitos fundamentais – dentre os quais estão os direitos humanos e os direitos animais.<br />
<br />
<b>Suíça: democracia modelo?<br />
</b><br />
A independência da Suíça foi reconhecida em 1648 pelo Tratado de Westphalia, que deu fim à Guerra dos Trinta Anos. Cercada pelas grandes potências continentais – primeiro, a França e o Sacro Império Romano-Germânico, depois a França, a Prússia e a Áustria – a neutralidade do país foi desde o início um elemento decisivo para sua sobrevivência, pois garantia o equilíbrio geopolítico na Europa central. Pender para qualquer um dos lados iria expor o país à conquista militar. Inicialmente uma necessidade pragmática, a neutralidade foi tão decisiva em diversos aspectos da sua história que acabou por se transformar quase num auto de fé da nacionalidade suíça, a ponto de manter o país por muitos anos afastado da ONU – tornou-se membro pleno apenas em 2002 – e, até hoje, fora da União Europeia, embora uma série de tratados bilaterais façam dele praticamente um membro extraoficial.<br />
<br />
Desde a época da sua independência, a Suíça constituía-se, na verdade, numa Confederação, ou seja, uma aliança entre pequenos Estados independentes entre si, com algumas políticas em comum que facilitassem a paz e comércio mútuos. Esses pequenos Estados estão na origem dos atuais 26 cantões que constituem a Confederação Helvética (nome oficial do país), que preservam ainda grande autonomia. Boa parte do modelo político da democracia suíça, que é um caso único no mundo, deriva da disposição de preservar essa autonomia regional interna.<br />
<br />
O regime político suíço determina que o governo federal é constituído por um Colegiado de sete membros, eleitos indiretamente para um mandato de quatro anos, em que têm assento os principais partidos políticos, numa distribuição que reflita o percentual de votos obtido por cada partido nas eleições gerais diretas. A presidência do Colegiado é exercida de modo rotativo. Mudanças constitucionais precisam ser aprovadas em referendo por maioria qualificada tanto dos eleitores quanto dos cantões (isto é, ter dois terços de aprovação entre a população e ser aprovada em pelo menos dois terços dos cantões). A constituição suíça ainda prevê que referendos possam ser propostos por iniciativa popular ou que leis aprovadas pelo Parlamento sejam desafiadas e derrubadas por referendo, contanto que essas iniciativas populares obtenham um número mínimo de assinaturas.<br />
<br />
Como consequência desse modelo, a Suíça é conhecida como um exemplo bastante avançado de democracia. Lá, mais que em qualquer outro país, o referendo é uma ferramenta constante para decidir sobre assuntos de interesse coletivo, o que dá ao país a aura de ser um dos mais democráticos do mundo, no qual a população participa diretamente das decisões mais importantes.<br />
<br />
O caso da Suíça, porém, é igualmente didático como indicador não só das vantagens, mas também das limitações da democracia. A Suíça é tradicionalmente um país conservador, e as mudanças sociais e políticas se dão muito lentamente. Apenas em 1971 o direito de voto foi universalmente estendido às mulheres, quando foi aprovado por referendo. Recentemente, o problema da imigração e do racismo tem demonstrado de modo ainda mais cabal as limitações do modelo político suíço e da própria democracia como instrumento de promoção da liberdade e do bem-estar geral.<br />
<br />
Em 2003, o Partido Popular da Suíça (SVP), partido nacionalista de perfil racista e anti-imigrantes, obteve larga votação, que resultou na obtenção de duas das sete cadeiras do Colegiado executivo. Mais recentemente, em novembro deste ano, em caso que tem obtido relativa repercussão na imprensa internacional, foi aprovado, em referendo popular, o banimento de minaretes, torres erguidas ao lado das mesquitas para convocar os fiéis à oração. A proposta teve apoio de 57,5% dos eleitores e foi aprovada em 22 dos 26 cantões. O governo, após a aprovação da proposta, emitiu comunicado oficial afirmando que ele não significava restrições à prática da religião islâmica, enquanto especialistas em direito ainda discutem a legalidade da medida em face dos direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição suíça e, portanto, a possibilidade de revogação do resultado do referendo [1].<br />
<br />
<b>A democracia como instrumento da tirania<br />
</b><br />
A principal lição que podemos tirar desse evento é que a democracia (direta, participativa ou representativa) não é um bálsamo para o alcance da justiça, da liberdade ou do respeito aos direitos fundamentais. Frequentemente urdida como uma solução mágica para os problemas sociais e políticos contemporâneos, a democracia pode igualmente favorecer políticas autoritárias e discriminatórias.<br />
<br />
Desde 1848, quando Luís Bonaparte (sobrinho do general e depois imperador francês Napoleão Bonaparte) foi proclamado imperador por referendo popular, eleito por sufrágio universal masculino recém-instaurado, levanta-se um importante paradoxo: a constância com que procedimentos democráticos, e frequentemente eleições, referendos e plebiscitos, são usados como armas para minar a democracia e as liberdades públicas. É comum que regimes autoritários de corte populista lancem mão desses mecanismos para legitimar-se tanto interna quanto externamente.<br />
<br />
No século XX, os nazistas chegaram ao poder obtendo índices crescentes de votação em eleições democráticas e livres, atingindo seu ápice, acima dos 30%, em 1932. Apenas num segundo momento foi dado um golpe de Estado que eliminou a democracia e instaurou a ditadura. Por sinal, o sociólogo britânico Michael Mann, desafiando o senso comum, defende, em seu livro Fascistas [2], que a ascensão do fascismo e, de um modo mais amplo, do autoritarismo de direita na Europa dos anos 1920 e 1930, resultou não de países com uma sociedade civil fraca, mas da tentativa de liberalização e democratização de países com uma sociedade civil ativa, em que tendências autoritárias e nacionalistas obtinham apoio de significativa parcela da população.<br />
<br />
O caso da Suíça, uma democracia estável desde, pelo menos, 1848, quando aprovou-se a Constituição que estabeleceu os parâmetros modernos da sua organização política, é ainda mais intrigante porque desafia o consenso de que são as democracias frágeis e recentes, em países de cultura política autoritária, aqueles em que os procedimentos democráticos podem minar a própria democracia, o respeito às liberdades e direitos fundamentais e a proteção das minorias. Sem tornar essa tese falsa, o caso suíço mostra que esta teoria é insuficiente para demonstrar as razões pelas quais a democracia pode ser um instrumento para avançar políticas autoritárias e discriminatórias.<br />
<br />
O problema recente da imigração e do islamismo tem levado a forte reação racista e nacionalista, que propiciou o avanço da extrema-direita em toda a Europa. Em 2002, o representante da extrema-direita racista francesa, Jean-Marie Le Pen, teve desempenho surpreendente na eleição presidencial francesa, chegando em segundo lugar no primeiro turno, com 16% dos votos, e classificando-se, portanto, para o segundo turno. Na Itália, o governo do magnata Silvio Berlusconi se sustenta numa coalizão que inclui partidos políticos neofascistas, que têm uma leitura revisionista do fascismo italiano e seu líder, Benito Mussolini.<br />
<br />
O caso mais emblemático, porém, foi provavelmente o da Áustria. Em 1999, a extrema-direita austríaca, cujo partido, ironicamente, autointitula-se Partido da Liberdade, obteve 27% dos votos e constituiu, com o Partido Popular, da direita tradicional, um governo de coalizão. Seja por conta da forte reação externa, que levou a boicotes e um congelamento das relações da Áustria com a União Europeia, seja porque o partido falhou em corresponder às aspirações do eleitorado, essa votação recuou para apenas 10% na eleição seguinte. Porém, o partido continuou como integrante minoritário da coalizão governista, e seu exemplo demonstrou que a possibilidade de a extrema-direita deixar um patamar minoritário para alcançar parcelas cada vez maiores do eleitorado, a ponto de tornar-se uma alternativa de poder viável, não pode ser descartada, e que as políticas autoritárias, discriminatórias e racistas não estão mortas nem são exclusividade de democracias novas e instáveis.<br />
<br />
De modo geral, a extrema-direita racista tem se limitado a algo em torno de 15% a 25% dos votos, insuficiente para formar maiorias, mas o bastante para ter um impacto relevante nas políticas nacionais, inclusive forçando uma radicalização tanto da direita quanto da esquerda em temas como a imigração, como modo de apaziguar e disputar a preferência desta parcela nada insignificante do eleitorado. Ademais, embora ainda minoritários nos níveis nacionais, os partidos de extrema-direita têm conseguido vitórias eleitorais no nível local e até mesmo regional.<br />
<br />
<b>Direitos fundamentais e democracia: limites e possibilidades<br />
</b><br />
Em termos puramente conceituais, não é difícil entender que é um completo absurdo supor que os direitos fundamentais do indivíduo dependam da democracia, pois isso significa supor que o seu direito à vida, à liberdade, à integridade, e outros direitos humanos daí derivados (direito à participação política, à educação, à saúde, à alimentação, à moradia; liberdade de expressão, de pensamento, de associação, de culto etc.) só poderão ser reconhecidos e respeitados se a maioria assim assentir, o que nada mais é do que uma forma de tirania. Nos dias de hoje, por exemplo, condicionar o direito de um casal homossexual de ter reconhecida sua união matrimonial, com os devidos direitos legais daí decorrentes (partilha de bens, direito de herança, plano de saúde, pensão etc.) ao consentimento da maioria apenas evidencia o estofo tirânico que subjaz na democracia contemporânea.<br />
<br />
Os direitos fundamentais jamais deveriam depender de escrutínio público. Entretanto, como, ao contrário do que diz o senso comum, a maioria nem sempre tem razão, e muitas pessoas estão, de fato, propensas a todo tipo de preconceito, frequentemente nos vemos submetidos a essa forma de tirania que é a ditadura da maioria. Oscar Wilde, célebre escritor irlandês do fim do século XIX – aliás, homossexual – famoso por suas observações mordazes, disse certa vez:<br />
<br />
Há três tipos de déspotas. Há o déspota que tiraniza o corpo. Há o déspota que tiraniza a alma. Há o déspota que tiraniza tanto a alma quanto o corpo. O primeiro chama-se Príncipe. O segundo chama-se Papa. O terceiro chama-se Povo. [3]<br />
<br />
Não se trata, aqui, de defender que o povo seja guiado por um tipo de “déspota esclarecido”, como preconizavam os iluministas, um líder que fosse guiado apenas pela razão, governando acima das paixões e da ignorância que regem a maioria dos seres humanos. Trata-se antes de ressaltar três questões. Primeiro, que devemos ter, então, cuidado com as soluções fáceis e respostas mágicas representadas pela participação popular e a democracia direta. Segundo, que o despotismo e a tirania, em última instância, só subsistem se têm respaldo e legitimidade social. Mesmo os regimes autoritários dependem do consentimento, mesmo que passivo, da maioria. Quando a maioria se subleva ou, o que é mais provável, quando o consentimento passivo se transforma em resistência passiva, os regimes tirânicos não sobrevivem. Segundo, não podemos subestimar a força disciplinadora daquilo que que Michel Foucault chamou de “microfísica do poder” [4]: o poder que não é exercido pela mão forte do Estado, mas entronizado no indivíduo pelo condicionamento, pela pressão social, pela vigilância coletiva. Quem desafia as regras não escritas da sociedade está sujeito a punições que, mesmo extraoficiais, podem ser extremamente duras e, portanto, dissuasivas: a exclusão social, a execração pública, a violência não institucionalizada.<br />
<br />
A relação paradoxal entre democracia e a promoção dos direitos fundamentais é que, embora a segunda jamais devesse depender da primeira, e apesar da fratura que pode haver entre uma e outra, o fato é que a democracia ainda é o regime político mais propenso a reconhecer, instaurar e promover esses direitos. Como toda proposta de mudança nasce, por definição, minoritária, os regimes democráticos são mais favoráveis às minorias, que podem disputar, com relativa igualdade de condições, a preferência do eleitorado, além de poderem contar com garantias constitucionais que os regimes autoritários eliminam justamente para silenciar essas minorias – liberdade de expressão, liberdade de associação, liberdade de imprensa etc. Da mesma forma que uma maioria de tendência conservadora pode favorecer políticas autoritárias e discriminatórias mesmo em regimes democráticos, também as mudanças sociais e políticas progressistas, que expandem as liberdades e os direitos, e respeitam as minorias, têm maior possibilidade de ressonância, expansão e definitiva vitória no contexto de um regime democrático.<br />
<br />
<b>Democracia, direitos animais e movimentos sociais<br />
</b><br />
E aqui entra, então, a relação deste tema com os direitos animais. Os direitos animais estão entre aqueles direitos fundamentais que não deveriam estar sujeitos ao escrutínio público. Entretanto, as limitações próprias do ser humano, o preconceito que se manifesta diante daquilo que é diferente, a sua tendência a abusar do poder, se são perceptíveis entre os seus semelhantes diretos, que se diga dos animais não humanos, que embora semelhantes em aspectos fundamentais, não fazem parte da nossa comunidade “natural” (no sentido de que o ser humano, como animal social, tende naturalmente a associar-se com outros seres humanos, mas apenas de modo muito restrito com animais de outras espécies).<br />
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Assim como todo projeto de mudança social, os direitos animais somente são reconhecidos por uma minoria, da mesma forma que os ideais dos direitos humanos, da igualdade entre homens e mulheres, da rejeição da escravidão humana e da própria democracia foram – e ainda são, em certos contextos – minoritários. É previsível e compreensível (mas não justificável – compreender é diferente de aceitar) que haja forte resistência, por vezes violenta, à ideia de reconhecer os animais não humanos como sujeitos portadores de direitos que não podem ser violados, especialmente se esses direitos, para serem respeitados, exigem a revisão de costumes tão difundidos e ancestrais.<br />
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É claro que o contexto de um regime democrático é mais favorável à difusão e defesa dos direitos animais, mas também neste caso a história recente nos apresenta uma exceção curiosa. Nos Estados Unidos, a histeria pós-11 de Setembro facilitou a aprovação no Congresso norte-americano de uma série de restrições às liberdades públicas, a Patriot Act. Na mesma época, o governo incluiu na lista de grupos terroristas a Animal Liberation Front, grupo de ação direta que jamais fez uma vítima fatal. O problema não atingiu apenas a ALF, porém. Grupos de defesa dos direitos animais que operam dentro da legalidade, da mesma forma que grupos pacifistas ou outras atividades “suspeitas” e “antiamericanas” estiveram sujeitos a vigilância, monitoramento, controle e perseguição pelo governo norte-americano (vejam, por exemplo, os documentários Fahrenheit 11 de Setembro e Behind the Mask).<br />
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O que o caso dos Estados Unidos e o da Europa têm em comum são os efeitos deletérios que o medo, o preconceito e as crises sociais têm tanto sobre a liberdade, quanto sobre a democracia. Em situações de crise, os indivíduos estão mais propensos a sacrificar sua liberdade em troca de segurança. Ao contrário do que se diz, entretanto, não são o terrorismo ou o fundamentalismo islâmico que ameaçam a democracia e a liberdade nos Estados Unidos e na Europa, e sim suas próprias crises internas associadas a crises externas que, em maior ou menor medida, foram fomentadas pelos próprios norte-americanos e europeus. Na Europa, a imigração e o islamismo não seriam um problema se não fossem, primeiro, as crises sociais e políticas que levam cidadãos de ex-colônias e países subdesenvolvidos a migrar para a Europa; segundo, a crise social da própria Europa, com o desmantelamento do Estado do Bem-estar Social, o desemprego, a crise previdenciária, que fazem dos imigrantes um alvo fácil e conveniente na hora de apontar “culpados” para o problema. Quanto aos Estados Unidos, desde os anos 1950 seus governos sistematicamente minaram todas as tentativas de construir regimes democráticos ou promover reformas sociais no Oriente Médio. O extremismo islâmico foi fomentado pelos próprios Estados Unidos como forma de combater a influência soviética naquela região, durante a Guerra Fria. Com o fim da União Soviética, a criatura voltou-se contra o criador.<br />
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Os regimes democráticos favorecem os movimentos por transformações sociais também por retroalimentação, na medida em que a garantia das liberdades públicas favorece o debate e a difusão de ideias. As democracias, entretanto, sem uma pressão popular externa, tendem a se tornar viciadas e, em grande medida, engessadas pelo poder econômico, a corrupção e a apatia popular diante de governos que não mais se mostram sensíveis às suas demandas. Por isso, torna-se cada vez mais importante a associação dos cidadãos além do poder do Estado em pelo menos três níveis: primeiro, a mobilização interna a partir da percepção de interesses comuns a proteger ou promover; segundo, a coalizão com movimentos diferentes a partir da percepção da ligação conceitual e estratégica com outras causas; terceiro, a coalizão com movimentos afins além das fronteiras nacionais, construindo movimentos internacionais capazes de interferir nas políticas internas dos Estados e na política internacional por meio da criação de movimentos de opinião pública.<br />
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A conclusão é que, sem esses movimentos sociais, a democracia transforma-se numa quimera. O Estado, como instituição controlada, em última instância, pelos setores da sociedades que detêm o poder político e econômico para impor seus interesses, apenas promove reformas sociais na medida em que é pressionado, de fora, por movimentos vindos das camadas mais baixas. Foi assim desde o início. Sem a mobilização dos trabalhadores, dos estudantes, das mulheres, não haveria hoje regimes de sufrágio universal, nem tampouco garantias mínimas de direitos fundamentais e sociais. Por isso, a participação popular, em última instância, tende a favorecer, mais que limitar, o avanço das liberdades públicas e garantias de direitos. Trata-se de um relação direta: se a maioria dos regimes tende a promover apenas os interesses de uma minoria abastada e poderosa, a entrada de novos atores no jogo político tende a estender essas liberdades e direitos a um conjunto cada vez maior da sociedade.<br />
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Voltando ao caso específico dos direitos animais, isso implica que o progresso da nossa causa depende do reconhecimento mútuo e do estabelecimento de alianças com grupos de outras causas e outros países. Essa estratégia é cada vez mais importante, no mundo contemporâneo. Embora, como eu sempre ressalto, o oprimido por uns pode ser o opressor de outros, o reconhecimento mútuo e a empatia podem ser construídos entre diferentes lutas sociais a partir da percepção de uma condição de injustiça partilhada e um interesse comum de justiça, liberdade, direitos.<br />
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A questão animal tem relevância tanto na política interna dos Estados quanto na política internacional. Os problemas sociais e ambientais causados pela pecuária, por exemplo, embora não devam ser, como sempre saliento, o foco do discurso dos movimentos de defesa animal, podem e devem ser entendidos como pontes para o estabelecimento de diálogo com os grupos humanos que sofrem com esses problemas sociais e ambientais: a devastação das florestas, o desperdício de água que compromete toda a segurança de um povo, a dependência do mercado exterior de alimentos que poderiam ser produzidos localmente se a terra não fosse destinada à criação de gado, e assim por diante. Da mesma forma, a experimentação animal está associada a políticas de saúde pública ineficazes, interesses corporativos da indústria farmacêutica, um contexto amplo de insensibilidade das políticas científicas e de Estado à questão ética, e por aí vai. Existe um terreno fértil para o movimento pelos direitos animais construir diálogo e cooperação com outros movimentos sociais, e instaurar um reconhecimento mútuo que fortaleça todas essas causas, na medida em que elas tomam consciência da existência uma das outras e, consequentemente, causas distintas passam a ser partilhadas.<br />
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<b>Democracia e liberdade<br />
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Em última instância, o que define o progresso social na política e nos costumes é a construção, em longo prazo, de uma cultura democrática e libertária, para a qual, como dito, a pressão social dos setores excluídos e minorias políticas é fundamental e decisiva. “Democrática” não aparece, aqui, dentro da estreita definição do regime político, mas sim dentro da idéia da participação ativa de todos, em igualdade de condições, nas decisões relevantes para toda a sociedade. Em sentido estrito, esse tipo de democracia jamais poderia existir numa sociedade marcada pelas desigualdades sociais, a divisão em classes e força opressiva do Estado.<br />
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À medida que a consciência humana expande-se em direção ao reconhecimento do outro, o respeito pelo diferente, a compreensão da igualdade essencial que comanda que todos os indivíduos partilhem dos mesmos direitos e deveres, as sociedades avançam para formas de organização menos tirânicas, mais livres e solidárias. A democracia contemporânea representa, sem dúvida, um progresso significativo nessa direção, mas de modo algum o estado final, nem tampouco irreversível. A história está sempre sujeita a mudanças, e essas mudanças nem sempre representam um estado de coisas melhor do que o momento anterior.<br />
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Certa vez disse Rousseau:<br />
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<blockquote>Políticos (…) atribuem ao homem uma natural propensão à servidão, porque os escravos sob suas vistas parecem carregar seu fardo com paciência. Eles falham em refletir que se dá com a liberdade o mesmo que com a inocência e a virtude; que seu valor é conhecido apenas por aqueles que a possuem (…) por isso homens selvagens não irão curvar seu pescoço a fardo ao qual o homem civilizado os submete sem um murmúrio, mas preferem o mais turbulento estado de liberdade à mais pacífica escravidão. Nós não podemos, portanto, da servidão de nações já escravizadas, julgar a disposição natural da humanidade favorável ou contrária à escravidão; nós devemos avaliá-la pelos prodigiosos esforços de todo povo livre para salvar-se da opressão. Eu sei que os primeiros estão sempre a louvar a tranquilidade de que gozam sob suas correntes, e que chamam a um estado de torpe servidão um estado de paz (…). Mas quando vejo os últimos sacrificarem prazeres, paz, riqueza, poder e a própria vida à preservação deste único tesouro que é tão desdenhado por aqueles que o perderam; quando vejo animais nascidos livres esmagarem seus cérebros contra as barras de suas jaulas, em função de uma impaciência inata com o cativeiro; quando contemplo um sem-número de selvagens nus que desprezam os prazeres europeus, enfrentando fome, fogo, a espada e a morte, para preservar nada além de sua independência, eu sinto que não compete a escravos debater sobre liberdade. [5]<br />
</blockquote><br />
<p>O próprio Rousseau e seus contemporâneos iluministas são testemunhas involuntárias dessas palavras: para além de toda sua retórica sobre liberdade, igualdade e razão, eram incapazes de conceber que todos os humanos pudessem ter os mesmos direitos e deveres, independente de nacionalidade, sexo, etnia. Eram incapazes de conceber um regime político que não dependesse da violência da guerra, da pena de morte, da ditadura. De fato, não compete a escravos falar em liberdade.<br />
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Não devemos interpretar essas palavras, entretanto, com a suposição de que os indivíduos sujeitos à tirania não consigam ou não devam sonhar e lutar pela liberdade. Seu verdadeiro sentido é que apenas pelo exercício da liberdade compreendemos seu verdadeiro sentido, as responsabilidades que ela traz consigo, e o valor que ela tem para nossa vida. Um processo no final do qual o ser humano não dependerá mais da tutela de um Estado, mas não mais que da sua consciência para exercer a própria liberdade e respeitar a do outro – incluídos, nesse conjunto, os animais não-humanos.<br />
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A democracia e a liberdade são um processo de aprendizado, eu diria mesmo de tentativa e erro. Embora a democracia eventualmente restrinja, em vez de alimentar, a liberdade, e a liberdade possa minar a democracia, é através desses avanços e recuos que se pode construir um estado duradouro de genuínas democracia e liberdade. Trata-se de um processo que, como tudo na vida, está sujeito aos erros de julgamento e conduta típicos da condição humana, mas erros que são, eles mesmos, necessários para esse aprendizado. Por isso, eu permaneço, apesar de tudo, otimista de que esse processo acumulativo de aprendizado e conhecimento, ao longo de gerações e séculos, conduz, no longo prazo, a graus cada vez maiores de democracia e liberdade, que por sua vez conduzem a maior reconhecimento e respeito pelos direitos fundamentais dos indivíduos. Esse progresso, estou certo, em algum momento levará à inclusão dos animais não humanos na comunidade de direitos.</p><br />
[1] Conferir: O Globo. Sarkozy diz que islâmicos devem ser discretos. 9 de dezembro de 2009, p. 32.<br />
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[2] MANN, Michael. Fascistas. São Paulo: Record, 2008.<br />
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[3] WILDE, Oscar. A Alma do Homem sob o Socialismo. 1895. Disponível em: http://flag.blackened.net/revolt/hist_texts/wilde_soul.html. Tradução livre.<br />
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[4] FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1999.<br />
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[5] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discourse on the Origin and Basis of Inequality Among Men. Part II. 1754. Disponível em: http://en.wikisource.org/wiki/Discourse_on_the_Origin_of_Inequality_Among_Men/Part_II. Tradução livre.Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-80096191272080155782010-07-03T20:52:00.014-03:002010-07-07T22:30:17.795-03:00Copa do Mundo, Ufanismo e FascismoDesde a ditadura militar discute-se muito a relação entre futebol (e Copa do Mundo) e política. A influência é mútua, mas nem sempre tão óbvia e mecânica quanto alguns supõem. O esporte pode ser um espelho da sociedade e dos sentimentos, princípios que ela acalenta, dos seus contrastes, qualidades e defeitos. Isso fica evidente nos exemplos do Brasil, França e Alemanha na Copa de 2010.<br />
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<b>Brasil</b><br />
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Como disse no texto anterior, no Brasil, temos uma sociedade injusta com uma elite corrupta, que só descobre a solidariedade nacional em época de Copa do Mundo. E, infelizmente, um povo que compra essa farsa. Como não me vejo representado por essa sociedade, e menos ainda pela sua elite, e como tenho total aversão pelo nacionalismo e ufanismo, não me contento em não torcer pelo Brasil. Eu torço contra, mesmo. Com orgulho.<br />
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Ver o Brasil eliminado vai além da satisfação de calar a boca do Galvão Bueno. Melhor que estancar a verborragia do narrador, é estancar aquilo que ele cospe: o ufanismo, o supremacismo, a paixão cega, a presunção de superioridade, a vontade de ganhar a qualquer custo, mesmo com gol de mão, a complacência com os erros que beneficiam associados à indignação quase homicida com que denuncia o erros que prejudicam. Qualidades que seriam muito úteis em caso de guerra, e que caem como uma luva sobre as aspirações imperialistas do Estado brasileiro. <br />
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Ah, que delícia ver tudo isso cair por terra. Pena que, assim como a vitória no futebol é apenas simbólica, a derrota também é. O ufanismo apenas adormeceu, mas continua vivo, pronto para despertar novamente, daqui a quatro anos, ou na próxima crise diplomática ou, pior, em caso de uma improvável guerra ou, o que é bastante provável, à medida que o Brasil vai ocupando o seu lugar de direito na arena internacional: o de potência imperialista. O Brasil é um Estado imperialista, não tenham dúvida disso. Os brasileiros, que amam odiar os norte-americanos, como eu disse na postagem anterior, compartilham com eles os mesmos defeitos da arrogância, da empáfia, do ufanismo, do preconceito, e por aí vai... Apenas não tiveram tantas oportunidades de demonstrá-lo quanto nosso vizinho do Hemisfério Norte.<br />
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<b>França</b><br />
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Na Europa, o que temos visto em campo é o confronto entre racismo e multiculturalismo. Se no Brasil a Copa do Mundo desperta o ufanismo, na França, tem despertado o racismo. Os dois fenômenos, que para o observador desatento parecem tão distintos, são na verdade lados de uma mesma moeda. A Copa do Mundo é como uma guerra, uma guerra estilizada, coreografada, domesticada. Mas os sentimentos primais que ela desperta são aqueles do conflito armado. Será melhor canalizá-los em ambiente controlado para que não transbordem no mundo real? Talvez. Mas a semelhança é atordoante.<br />
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E, em tempos de globalização e pós-colonialismo, na Copa, além do tradicional conflito entre “nações”, testemunhamos os conflitos de um país contra si mesmo. Foi o que vimos na França, dividida entre os “puros” e a “escória”, como o presidente francês chamou os jovens da periferia que se rebelaram em 2005. E quem é essa escória? Os imigrantes, os descendentes de árabes, de africanos, das ex-colônias, filhos de um problema que os franceses, como outras potências colonialistas, criaram, com o racismo, imperialismo, ganância e espoliação que fizeram da África o continente mais pobre do mundo. Agora, os franceses e outros países europeus não querem assumir o problema que eles próprios criaram, acolhendo os imigrantes dos países que um dia dominaram.<br />
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A eliminação da seleção francesa despertou o fascismo adormecido no seio da sociedade francesa, logo ela, terra da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. A crise e as brigas entre jogadores, e técnico, em vez de retrato de um time decadente, ruim, e de um treinador incompetente, viraram questão de Estado: falta de patriotismo, de identidade nacional, de respeito pela bandeira francesa. Ou seja: o perfeito espelho do que comentei antes sobre como o nacionalismo e o patriotismo são a antessala do fascismo, e o quanto isso está latente no esporte, quando se colocam um país contra o outro. <br />
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Me chamou atenção numa das reportagens de TV explorando o furor xenófobo da extrema direita francesa, motivado pelo fracasso da sua seleção, as palavras de um menino da periferia, de origem africana, dizendo: “eu não torço pela França”. Eu me vi naquele menino. Se eu fosse um menino francês da periferia, certamente também não torceria, como não torço pelo Brasil.<br />
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Na Copa da 1998 a França foi campeã com uma equipe saudada internacionalmente como o triunfo do multiculturalismo, uma seleção composta por esses jovens pobres da periferia, muitos deles descendentes de árabes e negros. O melhor jogador daquela equipe, o melhor jogador de sua geração, Zinedine Zidane, é filho de argelinos – ele foi o primeiro da sua família efetivamente nascido na França. No entanto, a extrema direita não comemorou a vitória. Ela não via naquela seleção, e no sonho de integração que ela representava, a “verdadeira” França. Agora, tiveram a oportunidade de contra-atacar.<br />
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<b>Alemanha<br />
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E o filme vem se repetindo com a Alemanha, já nas semifinais da Copa. Na Alemanha a cidadania é regida por direito do sangue (<i>jus sanguinis</i>): só é cidadão alemão quem tem sangue alemão. Se você é descendente de imigrantes, mesmo nascido em território alemão, não tem direito a cidadania. Se isso não é racismo, então eu não sei o que mais pode ser. Pois bem, a seleção alemã é composta por três poloneses (incluindo os dois atacantes titulares) e um brasileiro, todos naturalizados, e um descendente de turcos (Özil, um dos destaques do time), outro de espanhóis, um terceiro de tunisianos, um quarto de ganeses (Boateng, também titular) e, por fim, de nigerianos. Nenhum deles teria direito à cidadania alemã se não tivessem uma utilidade para o Estado alemão, para o orgulho alemão, para o patriotismo alemão, na figura de um título mundial de futebol. A estagnação do futebol alemão “puro” abriu as comportas da cidadania para estes jovens que, de outro modo, seriam estrangeiros no país onde vivem – mesmo tendo nascido lá, ou lá vivido desde a infância, como é caso dos poloneses Klose, Podolski e Trochowski.<br />
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É bom que isso aconteça? É bom que esses jovens, que de outro modo seriam excluídos, se tornem instrumentos do patriotismo alemão? Talvez. Quem sabe eles não ajudem a reduzir o fosso que separa os alemães “étnicos” dos “falsos” alemães? Seria ótimo se isso acontecesse, e ajudasse a promover uma sociedade inclusiva e multicultural, em vez de movida por um racismo anacrônico. Mas, como o caso da França demonstra, o racismo e protofascismo latentes podem não aceitar essa “derrota”, à espreita do momento do contra-ataque.<br />
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<b>Nós e Eles</b><br />
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Quero ressaltar, com muita clareza, que não se deve generalizar o racismo europeu, um argumento muito brandido no Brasil para alimentar nosso próprio ufanismo – e, portanto, ele mesmo uma forma de racismo: “nós” e “eles”. “Nós”, o Brasil, o país hospitaleiro, de povo caloroso e democracia racial. “Eles”, a Europa, o continente frio, composto por brancos fascistas e racistas.<br />
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Aqui no Brasil também existe não só racismo, como xenofobia. Os imigrantes da América do Sul, bolivianos, paraguaios, chilenos, também são vistos com desconfiança e desprezo. Dois fatos demonstram isso com clareza: uma pesquisa recente que mostrou que a maioria dos brasileiros é a favor de leis restritivas de imigração; e o abjeto caso de imigrantes bolivianos que viviam em situação de escravidão na CIDADE de São Paulo, a MAIOR cidade do país, e também a de maior diversidade cultural.<br />
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Por outro lado, a juventude européia é bastante progressista. Conheci jovens portugueses e alemães que conviviam bem entre si, e com os descendentes das ex-colônias, e execravam o racismo de seus pais e avós. Essa juventude que, graças à União Europeia, está em constante contato com jovens de outros países – há um programa oficial da UE de intercâmbio estudantil que leva muitos estudantes de um país a outro – e também de outras culturas. <br />
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Não deixa de ser auspicioso que Europa, tão execrada por seu passado colonial e imperialista, e seu racismo histórico, esteja começando a derrubar as amarras irracionais da identidade nacional, através da integração regional na União Europeia. Há três problemas nesse processo: primeiro, que a própria UE tem se constituído como um Estado supranacional burocrático, e não democrático; que esse Estado está a serviço do capital, e não do povo comum; que exclui não só os estrangeiros, mas também os pobres, da plena cidadania e participação na prosperidade – mas que são forçados a compartilhar a crise gerada pela ganância, corrupção e incompetência dos capitalistas e governantes; e que a propalada “identidade europeia” que pode suplantar as identidades nacionais particulares de cada país pode acabar sendo apenas uma versão pós-moderna, multicultural, do mesmo nacionalismo excludente de tudo aquilo que for estranho, diferente, “estrangeiro” – no caso, de tudo que não for europeu.<br />
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Não obstante, o efeito que essa integração pode ir muito além disso. O efetivo contato entre os jovens desses diferentes países, esses jovens acostumados ao contato transcultural, pode conduzir a Europa para além dos limites impostos pelo Estado e os burocratas. É possível que essa nova geração enterre de vez o mito da superioridade ariana, não apenas nos gramados, mas, muito mais significativamente, nas escolas, locais de trabalho, parlamentos? Talvez...<br />
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Mas não podemos esquecer, novamente, que esse não é um problema exclusivamente europeu. Aqui no Brasil, também temos um Estado mais burocrático que democrático; mais elitista que popular; mais excludente que inclusivo; e muito propenso a um nacionalismo ufanista e levemente xenófobo. Levemente, diga-se de passagem, porque tem poucas oportunidades de se manifestar em todo o seu brilho – como se manifestou em outras épocas, contra imigrantes portugueses no início do século XX, e contra imigrantes alemães e japoneses, na época da Segundo Guerra Mundial.<br />
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Tais problemas não são específicos deste ou aquele país, desta ou aquela cultura. O racismo e a xenofobia são fenômenos universais que podem ser explicados pelo ponto de vista histórico e antropológico. Justamente por isso, é bom estarmos atentos ao nosso próprio fascismo interno, em vez de apenas apontarmos o dedo acusador. Da forma como construímos o discurso a partir de uma dicotomia “Nós” e “Eles”, ao mesmo momento em que execramos o racismo e a xenofobia europeia, estamos reproduzindo e estimulando um racismo e xenofobia genuinamente brasileiros.<br />
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Como se vê, a realidade nunca é tão simples como se quer crer – como geralmente querem crer os ufanistas de plantão e fascistas enrustidos. A visão de mundo simplória apenas favorece essas ideologias irracionais, excludentes e violentas. Disso tudo, fica a esperança de que realmente cada um desses países aprenda a sua lição: superar o racismo, deixar de lado o nacionalismo e, se seria demais pedir que abrissem mão desse patriotismo arcaico que move os Estados “nação”, que pelo menos não o usem como ferramenta de exclusão. Que reconheçam que a cidadania é um direito humano, que independe de origem e de nascimento – aliás, um direito humano reconhecido pela Declaração Universal de 1948.Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com5tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-10835333192615410862010-06-14T02:35:00.010-03:002010-07-03T20:47:37.151-03:00Cinco motivos para torcer contra o Brasil nesta Copa do Mundo (e em todas as outras)<b>1. O patriotismo, nacionalismo e ufanismo são as ideologias mais desprezíveis do mundo.</b> “Mas e quanto ao racismo e o fascismo?”, dirão alguns. Bem, o fascismo nasce justamente do cruzamento do racismo imemorial com o orgulho nacional do século XIX. patriotismo, ufanismo e nacionalismo são a antessala do fascismo. Nessa Copa, em especial, nunca vi uma abordagem tão belicista e ufanista, estimulados pela imprensa, a propaganda, a comissão técnica dessa seleção. Parece que estamos indo para a guerra. Pois bem, se vamos pra guerra, eu estou desertando desde já.<br />
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“O patriotismo é o último refúgio de um canalha” Samuel Johnson<br />
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“O nacionalismo é uma doença infantil; é o sarampo da humanidade” Albert Einstein<br />
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<b>2. O Brasil é os Estados Unidos do futebol: a potência imperialista, gananciosa e supremacista.</b> Quando se trata de futebol, os brasileiros sentem-se superiores, contam vantagem, querem ganhar sempre e em tudo. Nossa arrogância, preconceito e ganância futebolísticas deixam antever o que nós seremos no dia em que formos potência em alguma coisa realmente importante. E tome da ridícula rivalidade com a Argentina, da gananciosa ambição de vencer sempre, de se sentir melhor que todos os demais povos e países só porque temos mais títulos no futebol. <br />
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<b>3. Não existe essa história de “a seleção representa o seu povo”. Balela. A seleção representa o Estado.</b> Existem Estados sem povo, e povos sem Estado. Quem tem bandeira e representação na ONU, FIFA e COI são os Estados, não os povos. E o Estado brasileiro é um dos mais detestáveis dentre todos, controlado por uma elite abastada que vive à custa da espoliação, exploração, injustiça, violência. Corrupção, trabalho escravo, voto de cabresto, clientelismo, coronelismo, autoritarismo: isso (e muito mais) é o Brasil. Não serei eu a torcer para que esse Estado conquiste láureas e honrarias, mesmo que simbólicas.<br />
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<b>4. O futebol é como um tumor cerebral: estupidifica e aliena.</b> Enquanto houver uma bola rolando, o brasileiro esquece da espoliação e exploração acima mencionadas. Se você der ao brasileiro a opção de ter o padrão de vida sueco, e a seleção de futebol medíocre daquele país, o brasileiro vai optar por continuar miserável e craque de bola. Ainda que seja justamente a carência de motivos de alegria que torne o brasileiro tão dependente do futebol, será apenas quando superarmos essa obsessão futebolística que iremos progredir em termos políticos, sociais, éticos, etc.<br />
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<b>5. Além de alienante, o futebol é irritante.</b> Quanto antes acabarem os fogos de artifício, gritos e cornetadas, melhor. Vamos voltar à realidade e, quem sabe, fazer alguma coisa de útil com as nossas vidas.Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com25tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-54950614347328289742010-06-07T03:38:00.011-03:002010-06-14T14:36:50.857-03:00Lula e o Nobel da Paz: era só o que faltava!Muitos falam do complexo de vira-lata do brasileiro. Contudo, talvez justamente por isso, os brasileiros querem ser os melhores em tudo. É provavelmente uma forma de compensar a miséria material, intelectual e moral em que vivem. E nesse aspecto, nosso presidente não poderia ser mais representativo. Já havia dito uma vez o ex-presidente argentino Néstor Kirchner: Lula quer eleger até o papa.<br />
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Inebriado pelo poder e a popularidade, cercado por uma corte que o cultua quase como uma figura messiânica - e que promove esse culto da personalidade país afora - enamorado por sua própria trajetória, de retirante a presidente, parecia inevitável que Lula não se contentasse apenas em ser o Messias do Brasil. Já faz algum tempo que está no ar essa idéia de indicá-lo ao prêmio Nobel da Paz. Era de fato apenas uma questão de tempo até que ela se concretizasse, como de se esperar, pelas mãos de um dos integrantes do círculo íntimo do culto lulista - no caso, o Senador Aloízio Mercadante.<br />
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O governo Lula foi um sucesso sob diversos aspectos. A economia do país cresceu, superamos uma crise econômica sem maiores traumas, houve melhora nos indicadores sociais. Pessoalmente também acho, ao contrário do que afirmam seus detratores, que sua política externa foi um sucesso. O que o governo tucano de FHC tentou pela via da associação minoritária com as grandes potências ocidentais, Lula conseguiu pela via da liderança dos desvalidos do "Sul": projetar o país como uma potência emergente, com futuro de protagonismo na Ordem Internacional. O novo desenho geopolítico já se delineia no G20, destinado a superar o G7, e no qual China e Brasil, dentre outros emergentes, são recebidos não como sócios minoritários, mas como parceiros das grandes potências.<br />
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Contudo, reconhecer esse sucesso é muito diferente de concordar com os princípios e "valores" que nosso presidente promoveu nessa caminhada. Projetar-se como porta-voz dos povos e países da periferia do capitalismo não passa de uma figura de retórica, bem sucedida, sem dúvida, mas longe de ser honesta, como querem fazer crer alguns, e menos ainda de ser coerente.<br />
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Nosso presidente vem cuidadosamente cultivando esse papel de potência benéfica, liderando uma força de paz no Haiti, buscando papel de mediação nos conflitos do Oriente Médio, projetando uma imagem de promotor da democracia, justiça, direitos humanos... Será mesmo? Olhemos o quadro mais de perto...<br />
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Não nos perguntemos tanto se Lula é merecedor do Nobel da Paz - essa questão fica mais para o final. Perguntemos primeiro se ele é um homem da paz.<br />
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É um homem da paz quem visita Cuba no dia da morte de um prisioneiro político e culpa o preso???? Que tem coragem de comparar presos políticos cubanos com criminosos comuns de São Paulo???? É um homem da paz quem defende a ditadura iraniana e chama os protestos contra fraude nas eleições de briga de torcida de futebol, ignorando, além da mobilização popular, a violenta repressão com que o tal governo respondeu aos manifestantes???? É um homem da paz quem vai à África, aperta a mão de ditadores, e tenta convencer seus governos a produzir monocultura exportadora de agrocombustíveis em países pobres, com escassez de terras férteis e flagelados pela fome???????????<br />
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Trata-se de fatos incontestes. Nosso governo se aproximou de todas as ditaduras do mundo que consigo lembrar, com as quais estabeleceu relações muito amigáveis. Ainda no primeiro mandato, fez aquela cúpula Árabe-Sul Americana, sem dúvida um grande sucesso para as relações comerciais, cujo documento final, claro, não menciona a palavra "democracia", já que a única democracia árabe no mundo é o Líbano. O próprio acordo que nosso presidente acabou de firmar com o Irã como parte dessa sua estratégia de se credenciar ao Nobel da Paz foi uma parceria com a Turquia, o mesmo país que oprime os curdos com a mesma disposição que os israelenses oprimem os palestinos, mas sem causar 10% da comoção internacional.<br />
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A única verdade ainda controversa em relação à política externa "progressista" do governo Lula refere-se à forma como ele devolveu a Cuba dois pugilistas que desertaram durante os Jogos Pan-Americanos de 2007, em circunstâncias ainda hoje nebulosas. À época alegou-se que os pugilistas "se arrependeram" e se entregaram voluntariamente. Mas ninguém da imprensa, nem organizações de direitos humanos, teve acesso aos dois, a devolução se fez em velocidade relâmpago, e o fato é que um deles voltou a desertar na segunda oportunidade que teve - certamente um "mercenário" muito volúvel...<br />
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A política externa do governo Lula pode ser um sucesso de relações públicas e de benefícios comerciais, mas certamente nada tem a ver com a promoção da paz, e sim com a promoção dos interesses de "Estado" - leia-se, os interesses de meia dúzia de parasitas que prosperam nesse país à custa da corrupção governamental e da exploração econômica.<br />
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O mesmo presidente promotor da "Paz" lá fora é aquele que, aqui dentro, não só apazigua como protege algumas das oligarquias mais atrasadas do país - os Sarney, os usineiros e toda a máfia das Alagoas contra as quais ele tanto vociferou no passado, e até mesmo políticos envolvidos em casos de escravidão humana e condições de trabalho análogas à escravidão. Agora mesmo Lula está enquadrando o PT maranhense para manter intacto o feudo dos Sarney. Basta olhar para os aliados dele para deduzir o tanto de decência e caráter dessa pessoa.<br />
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Não nego que o governo Lula deu algumas esmolas aos pobres. Não nego também que receber esmola é melhor do que morrer de fome. Mas os ricos lucraram muito mais com o seu governo, além das esmolas terem sido um ótimo negócio para o seu governo, pois lhe garantiu os votos necessários para a reeleição, e a eleição do seu preposto este ano. Se a direita brasileira fosse inteligente, teria pensado nisso antes.<br />
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Dizer que esse homem promove "ações em busca da paz, do diálogo, da democracia, da justiça social e igualdade de direitos", como dizia a corrente de email pela qual recebi a notícia da campanha pelo Nobel, não passa de um escárnio criminoso e desrespeitoso com as vítimas dos regimes que ele tanto admira, e um escárnio com os próprios cidadãos brasileiros vitimados pelo abuso de poder, a perseguição política, a hiperexploração econômica, alguns dos métodos típicos dos aliados políticos do presidente.<br />
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Diz-se que "quem cala, consente". Só que ele não silencia: ele CONSENTE abertamente, o que o torna um cúmplice ativo das violações dos direitos humanos em Cuba, na Líbia, na Turquia, no Irã, na África e também no Maranhão, Alagoas, Pernambuco e onde quer mais que ele passe nas suas lamentáveis viagens internacionais e acordos regionais.<br />
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A participação do governo na mediação de conflitos do Oriente Médio tem importância estratégica, tanto do ponto de vista político - pelos dividendos em publicidade - quanto econômico - dada a importância da região para o comércio mundial. A propalada solidariedade com a causa palestina ou contenção da sanha belicista estadunidense, agora às voltas com o Irã, pode até ter alguma motivação ideológica para além do frio cálculo estratégico, mas certamente tem muito pouco a ver com valores humanitários. A democracia que nosso governo defendeu tão acirradamente em Honduras está ausente do Irã, como está ausente de Cuba. A solidariedade com os palestinos não existe no caso de povos oprimidos em outras regiões onde combater tal opressão não é relevante ou desejável - como no caso supracitado dos curdos, ou dos tibetanos e uigures. E é um argumento pobre dizer que nosso governo não protesta diante das violações dos direitos humanos em Cuba ou Irã por respeito à autodeterminação, princípio basilar da política externa brasileira. Primeiro, porque este governo não se furtou de intervir em outras circunstâncias - como o próprio caso de Honduras. Segundo, porque o respeito pela autodeterminação não equivale à defesa aberta que Lula fez desses regimes autoritários. Ele os defendeu porque quis, por afinidade ideológica ou cálculo estratégico, e não por respeito ao princípio da autodeterminação. Em qualquer dos dois casos - afinidade ou cálculo - tal defesa mostra incontestavelmente a qualidade e credibilidade das credenciais deste governo para falar em paz, democracia e direitos humanos.<br />
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Não é questão de afirmar que nosso governo seja pior que os demais, em matéria de coerência ou compromisso com valores humanitários. Todos os regimes são hipócritas - daí porque a diferença, acima sugerida, entre ser um homem da paz e um merecedor de um Nobel da Paz.<br />
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O Nobel já foi concedido a muitos e verdadeiros lutadores e lutadoras pela paz, justiça, liberdade, direitos humanos. Contudo, ele é um símbolo poderoso, e consequentemente submetido a todo tipo de pressão e barganhas políticas. O Nobel também já foi concedido antes a belicistas como Henry Kissinger, ditadores como Anwar Sadat, imperialistas como Theodore Roosevelt, picaretas como Al Gore. Para não falar do atual Nobel da Paz, Barack Obama, que na mesma semana em que era laureado, anunciava uma escalada militar no Afeganistão...<br />
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Se formos rigorosos com os conceitos de "paz" e "promoção da paz", não haveríamos de conceder tal láurea a nenhum, ou quase nenhum, chefe de Estado - quase todos têm as mãos sujas de sangue. E nosso presidente, por associações nada sutis, está indubitavelmente incluído nesse tão "nobre" e seleto clube. Nenhuma pessoa provida de inteligência e integridade pode compactuar com essa farsa. Compactuar é lavar nossas mãos com o sangue que está nas mãos desses homens "da paz".Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-10505581157408503932010-03-29T15:24:00.002-03:002011-08-25T00:07:50.581-03:00O PT e a Nova Classe DominanteO marxismo ortodoxo já dava conta do fenômeno que quero abordar nesse texto. Não chega a ser, portanto, uma novidade. Trata-se da transformação social e política que vemos hoje acontecer com o PT, mas que tem relação inclusive com a própria origem do partido.<br />
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O PT já nasceu com o impulso de uma categoria privilegiada dentro da classe operária, os metalúrgicos de São Paulo, trabalhadores do estado mais rico do país, uma categoria estratégica pela indústria em que atuavam e a importância dela para o desenvolvimento do país, um dos sindicatos mais bem organizados e salários comparativamente acima da média do proletariado nacional. Aquilo que Marx chamou de aristocracia operária, que pode ser facilmente cooptada pelo sistema e passar a agir segundo os interesses da conservação do mesmo.<br />
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Com o tempo, os sindicalistas que deram origem ao PT, quanto mais se distanciavam do trabalho operário e mesmo da ação sindical, foram se constituindo em um alto clero operário, cada vez mais passíveis de acomodação dentro do sistema, o que se revela na crescente moderação do discurso político do PT e a tendência à conciliação, que culminou na Carta aos Brasileiros de 2002, antes das eleições que elegeram, pela primeira vez, Lula como presidente do Brasil.<br />
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Àquela altura Lula era já líder nas pesquisas com uma vantagem relativamente sólida. É questionável a eficácia eleitoral da Carta, diante de uma população desiludida com 4 anos de estagnação que se viu no segundo mandato do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Desde o início do segundo mandato de FHC, com a maxidesvalorização do Real que empobreceu as classes média e baixa da população, logo após a reeleição (embora já fosse evidente sua inevitabilidade antes das eleições de 1998, mas adiada para não prejudicar a candidatura à reeleição, o que constitui um verdadeiro estelionato eleitoral), seu governo, desacreditado e sem força, não aprovou nenhuma reforma, não adotou nenhuma política significativa, apenas se arrastou lentamente até o fim, estagnado política e economicamente, com altas taxas de desemprego e baixo índice de crescimento econômico. Estava nítido que aquela era a eleição que Lula tinha mais chances de vitória, e de fato contribuiu para isso a crescente moderação de seu discurso. A Carta aos Brasileiros, porém, serviu muito mais para apaziguar a classe financeira e empresarial brasileira e estrangeira, acenar para sua tranqüilidade, e uma colaboração, após a eleição.<br />
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Malgrado essa moderação e crescente acomodação dentro do sistema, o ativo do PT, sua credencial política, continuou (e continuará, por alguns anos) sendo a defesa dos “interesses” do trabalhador e dos mais pobres, assim como na esfera internacional o governo Lula se projeta como um porta-voz dos países pobres e excluídos das benesses da ordem internacional. É esse o discurso que legitima o partido, o credencia a ser competitivo nas eleições majoritárias e, em última instância, lhe dá sentido e razão de ser. Porque na prática, seu governo pouco difere do governo do PSDB, seu arquirrival.<br />
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O escândalo do mensalão apenas desnudou o projeto petista de perpetuação no poder, e o tão alardeado aparelhamento do Estado resulta menos de um projeto revolucionário de infiltração insidiosa, como sugere a imprensa conservadora, e mais de um vício patrimonialista que sempre ocorreu, com qualquer partido que ocupou o poder na Nova República. Enfraquecido pelo escândalo, o que o PT fez foi acenar ainda mais para a direita e as bancadas corporativistas do Poder Legislativo, abrindo mais espaço para o PMDB e algumas oligarquias das quais sempre foi adversário ideológico, notamente os Sarney no Maranhão, Collor, Calheiros e usineiros em Alagoas. E até deputados envolvidos em casos de trabalho escravo. Triste ironia para um Partido que se intitula “dos Trabalhadores”.<br />
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Hoje, as únicas características que entregam a origem esquerdista do partido são os seus vícios, e não suas virtudes: o autoritarismo, a estatolatria, o antiamericanismo (controlado e moderado, mas latente) e a simpatia mal disfarçada por regimes autoritários que desafiam a ordem internacional, mesmo que a ordem alternativa que eles vislumbram seja, no mínimo, igualmente questionável e, em verdade, retrógrada, reacionária e igualmente demófoba. Até mesmo a tão propalada política estatizante (não confundir com a estatolatria acima mencionada), as medidas de expansão de crédito e do mercado interno adotado para confrontar a crise financeira internacional não credenciam o PT como um partido de esquerda, e sim com uma social democracia capitalista e desenvolvimentista. Tanto ou até mais que a classe média, tais medidas favoreceram o empresariado industrial, que se tornou o grande fiador político e eleitoral do PT.<br />
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Já foi dito também que o PT se tornou uma máquina eleitoral apoiada sobre quatro pilares. Primeiro, as medidas assistencialistas e populistas como o Bolsa Família, que em vez de promoverem uma verdadeira emancipação política e econômica tornam os mais pobres dependentes e, em última instância, funciona como uma grande chantagem eleitoral e esquema de compra de votos. Intimamente vinculada a esta, a aliança com oligarquias e forças conservadores e retrógradas nas regiões mais pobres do país, notadamente o Nordeste, mas também no Centro-Oeste e no Norte do país. A política desenvolvimentista já mencionada, que angaria o apoio do empresariado industrial relegado pelo governo tucano. E, por fim, o fenômeno ainda por ser estudado dos fundos de pensão. A elite financeira, por sua vez, não tem muito do que reclamar. Enquanto as migalhas do Bolsa Família criam um novo clientelismo entre os pobres, os milhões (e a política ortodoxa dos juros) mantêm os banqueiros domesticados e satisfeitos. Não se pode negar a astúcia política do PT, o que é algo totalmente diferente de dizer que essa inteligência seja pautada por ideais emancipatórios.<br />
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Os fundos de pensão, nesse esquema, funcionam como foco de influência e captação de recursos, como o recente escândalo do Bancoop revela. Porém, ele revela um outro fato, para mim muito mais importante, porém obviamente pouco explorado pela imprensa conservadora. O PT passa a roubar da própria classe da qual é oriunda, e à qual diz representar, a classe trabalhadora. Os grandes sindicatos, a CUT e até mesmo o MST foram mantidos sob controle, não por chantagem ou repressão, mas pelo simples fatos de serem parceiros do atual governo. A CUT sempre foi o braço sindical do PT, isso é de domínio público. Dizer que a CUT se tornou “pelega” significa tão somente a decorrência lógica desse fato. Não foi compra nem cooptação, pois ambos, CUT e PT, partilham dos mesmos princípios. A CUT é a própria personificação da aristocracia operária. O que isso demonstra de forma nítida, e de importância sociológica fundamental, é que os líderes sindicais vinculados ao PT deixaram, há muito, de ser representantes das suas categorias e da classe trabalhadora de modo geral. Eles se tornaram, isso sim, uma fração da classe dominante, uma nova elite que, do mesmo modo que o PT, credencia-se ao poder pelo ativo da “representação” dos trabalhadores e a força política e os recursos econômicos daí advindos, mesmo que pelo meio da pilhagem.<br />
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Isso fica ainda mais óbvio quando analisamos a mudança da posição histórica do PT contra o imposto sindical. É esse imposto que financia a elite sindical e a permite viver eternamente do sindicalismo, afastado do dia-a-dia da classe que diz representar, e absolutamente descompromissada com a defesa dos interesses e direitos da mesma. A nossa estrutura sindical foi habilmente montada pelo falecido Getúlio Vargas para submeter e apaziguar a classe operária, tendo a liderança sindical como intermediária (daí o termo “pelego”, que é originalmente a sela que é usada para apoiar o cavaleiro sobre o cavalo, ou seja, o “intermediário” que torna a montadura mais suave para o cavalo e o cavaleiro).<br />
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Como ouvi certa vez de um trabalhador de linha de montagem, um proletário clássico: essa estrutura sindical desenhada para promover o peleguismo tem como sua pedra fundamental o imposto sindical compulsório, pago mesmo pelos trabalhadores não sindicalizados. Ele garante a sobrevivência do sindicato, enriquece a ele e aos seus dirigentes, torna-os subsidiários e, consequentemente, sustentáculos do sistema e, por fim, desobriga-os de defender sua classe de origem. Ele concluiu: se a contribuição fosse voluntária, os sindicatos precisariam correr atrás da filiação e contribuição do trabalhador, e para isso teriam que mostrar “serviço”. Teriam de ser muito mais aguerridos, coerentes e radicais na defesa de suas categoria e classe. Acabaria, portanto, essa promiscuidade com governos populistas como foram os da República Média (entre 1945 e 1964) e, agora, do governo Lula. Não se pode nem mesmo dizer que seja um fenômeno recente, portanto.<br />
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Essa domesticação dos sindicatos, verificável em todas as democracias ocidentais modernas, resultou precisamente da elitização e aristocratização de sua liderança, resultando em elite sindical moderada, de retórica por vezes afiada, mas prática conservadora, pois não apresenta um desafio de fato à estrutura política e econômica desses países. No século XIX os sindicatos arrecadavam dinheiro justamente para proteger os trabalhadores nos momentos mais críticos – naquela época, não se podia contar com o salário em caso de greve. Isso só era possível porque então os sindicatos eram genuinamente constituídos pelos trabalhadores. O que era um instrumento de luta, com a moderna estrutura sindical tornou-se um instrumento de enriquecimento. Se no século XIX as greves eram momentos de enfrentamento, hoje elas são acontecimentos pontuais destinados a obter concessões pontuais da classe dominante, ou questionar injustiças mais flagrantes. Foi assim que, graças à social democracia e domesticação do pós-Guerra, à qual apenas os Partidos Comunistas opunham resistência, a luta por justiça social passou a viver numa estéril e falsa dicotomia entre legalismo e revolução violenta. A esquerda radical vive de pregar a revolução armada, mesmo que jamais tenha as condições ou disposição de fazê-lo, alienando-se completamente da classe da qual diz ser vanguarda. Os grandes sindicatos e partidos “dos” trabalhadores, por sua vez, jamais ousam questionar a legalidade, mesmo que por meios pacíficos e de modo não-violento. O princípio da não-violência e da resistência pacífica foi completamente abandonado e esquecido.<br />
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No governo do PT, nem mesmo o reformismo tem espaço. Por mais lesados que possam ser, os trabalhadores reféns da estrutura de poder sindical petista se vêem absolutamente impotentes diante do atual governo. Apenas alguns questionamentos pontuais são possíveis, como no combate ao fator previdenciário e a defesa da redução da jornada de trabalho. Mas são estas mais peças de retórica do que efetivas bandeiras, pois as grandes mobilizações estão de lado, a pressão sobre o governo é tímida, quase envergonhada. Nenhum questionamento estrutural, enquanto o governo segue com uma política francamente elitista e se apóia sobre as forças mais conservadoras e antipopulares. Isso ficou nítido na defesa do ex-presidente Sarney, mesmo diante de repetidas acusações de corrupção, mesmo diante da sua prática inquestionavelmente antidemocrática no seu feudo particular que é o Maranhão, onde a imprensa é amordaçada e a população vive na miséria. E o mesmo governo que dá guarita a este tipo de política tem o disparate de afirmar que é defensor dos excluídos e da democratização da imprensa. Mentira que é ratificada pelas grandes centrais sindicais e lideranças de movimentos sociais, o que prova que, longe de serem comprometidos com a classe trabalhadora, estes são cúmplices e sócios minoritários de um projeto de poder de elite.<br />
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E é esta a conclusão que podemos chegar: as ditas lideranças populares da classe trabalhadora há muito deixaram de fazer parte da mesma, para se transformarem elas mesmas numa fração da classe dominante, parte da elite. O confronto entre PT e PSDB reproduz não um confronto ideológico, nem tampouco um confronto de classes, mas um confronto entre facções da elite, fenômeno também descrito por Karl Marx já no século XIX e que define a política dos países ocidentais altamente industrializados, na Europa e América do Norte. Assim o Brasil entra na “modernidade” política...Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-80031740245426372662009-05-14T19:06:00.009-03:002009-05-14T19:22:55.786-03:00Da Autoconsciência e da Senciência<span style="font-style: italic;"><p>Texto publicado em duas partes em abril de 2009, no site da ANDA</p></span><span style="font-style: italic;"><p>OBS: Partes desse texto foram baseadas nas palestras de Peter Singer e Gary Francione no I Congresso Internacional de Bioética e Direito Animal, proferidas no dia 9 de outubro de 2008, na cidade de Salvador, Bahia.</p></span>Que animais sentem dor e são dotados, em diferentes graus, de senciência, é uma questão virtualmente consensual entre estudiosos e debatedores da questão animal. Uma outra questão, bem mais controversa, diz respeito à existência de autoconsciência e o papel que a mesma exerce na atribuição de direitos aos animais. Neste debate evidencia-se como em muitas circunstâncias o bem-estarismo está muito mais próximo do onivorismo que do abolicionismo, e acaba por fim servindo como força auxiliar do onivorismo, ao invés de contribuir, como eles alegam, como uma via realista, reformista, incremental para a abolição da exploração animal.<br /><br />O conceito de autoconsciência e seu papel chave no debate sobre os direitos animais está ligado, principalmente, ao filósofo australiano Peter Singer, autor do livro <span style="font-style:italic;">Libertação Animal</span> (1975), que se tornou um marco e uma referência para o debate contemporâneo sobre os direitos animais.<br /><br />Um dos argumentos centrais da filosofia de Singer é que o dano que se causa a um ser é tanto maior quanto maior for seu grau de autoconsciência. Por autoconsciência entende-se a capacidade do indivíduo de perceber-se com um ser existente, consciente de sua individualidade e de sua presença no mundo, portanto capaz de mensurar os danos que sofreria ao ter sua vida extinguida. Para Singer, existem diferentes graus de autoconsciência, e a vida de um animal com elevado grau de autoconsciência tem mais valor quando em confronto com a vida de um animal com grau menor de autoconsciência. Pelo mesmo motivo, Singer alega que a morte em si não é necessariamente um dano à maioria dos animais não-humanos, mas principalmente os sofrimentos infligidos aos animais quando vivos (ele abre exceção a essa regra no caso dos primatas superiores).<br /><br />Singer advoga que, no tratamento dos animais não-humanos, deve-se aplicar o princípio da igualdade de consideração de interesses, isto é, que interesses iguais devem ser tratados de formas iguais. Porém, se houver conflito de interesses iguais, prevalece o interesse daquele ser dotado de maior autoconsciência. O interesse de um animal não-humano pela vida deve ser considerado na mesma medida que o interesse de um ser humano pela vida, mas não ser equiparado.<br /><br />Conclui-se daí que:<br /><br />1. O ser humano tem o direito de usar animais quando os benefícios que ele pode extrair disso superarem os danos causados aos animais não-humanos, no caso de estar na balança os interesses básicos de ambos.<br /><br />2. Uma morte indolor, pelo sistema ético de Singer, é moralmente aceitável contanto que se tenha observado todos os requisitos para que o animal não-humano tenha tido uma vida plena enquanto ainda vivo.<br /><br />Por este motivo Singer não advoga publicamente contra a vivissecção e, embora afirme que a criação de animais para abate não se aplica ao item 1 (mas sim a vivissecção), ele defende a adoção de reformas bem-estaristas como meio de preencher os requisitos exigidos pelo item 2. Singer se torna, portanto, o mentor do bem-estarismo contemporâneo e fornece amplos subsídios para a defesa do onivorismo. Os bem-estaristas se comunicam em termos muito parecidos, enquanto os onívoros simplesmente se contentam em defender as medidas de bem-estar sem levar em consideração o princípio singeriano da igualdade de consideração de interesses: jamais o interesse do ser humano pelo bife prevalece, dentro desse princípio, sobre o interesse do boi pela vida.<br /><br />Embora aparentemente muito lógica, e até sedutora, a filosofia de Singer apresenta muitas e perigosas lacunas. Ao dar tamanha centralidade à autoconsciência, Singer abre caminho para a desvalorização da vida daqueles seres humanos definidos como “não-paradigmáticos”: recém nascidos, pessoas com problemas cognitivos. Por não serem capazes de se perceber como indivíduos no mundo, fazer planos e projetar-se no futuro, suas vidas são menos valiosas no sistema filosófico de Singer. Desse modo, ele alega que o infanticídio de um recém nascido é um crime menos grave que o assassinato de um ser humano adulto. Não é muito difícil supor os efeitos deletérios que tal filosofia pode ter, mesmo que não seja a intenção do seu autor. Ela serve para respaldar a eugenia e o extermínio de seres humanos com problemas cognitivos, como era preconizado pelos nazistas.<br /><br />Um outro problema do conceito de Singer para autoconsciência é a falta de um critério objetivo para a sua determinação. Um exemplo de experiência que costuma ser citado para determinar o grau de autoconsciência de um animal é o do reconhecimento no espelho. Bebês adquirem autoconsciência quando reconhecer sua imagem refletida no espelho. Animais não-humanos, da mesma forma, serão autoconscientes se forem capazes de reconhecer-se na imagem refletida que têm diante de si. Alguns animais que têm essa capacidade descrita são, além dos primatas superiores (chimpanzés, gorilas, orangotangos), os golfinhos e os elefantes.<br /><br />Entretanto, o teste do espelho carece de objetividade e padece de antropocentrismo: supõe que só existe autoconsciência quando ela for semelhante à do ser humano. Não obstante, é sabido que, diferentemente do que acontece com seres humano, muitos animais não têm a visão como o sentido mais importante para a sobrevivência e comunicação. Muitos animais reconhecem uns aos outros pelo olfato, e nos faltaria subsídios para determinar a presença de autoconsciência nesses casos. Supor que um animal não-humano não é autoconsciente por não saber distinguir fisionomias é tão arbitrário quanto supor que o ser humano não é autoconsciente por não saber distinguir o próprio odor do odor exalado por outros de sua espécie.<br /><br />A questão, porém, é mais profunda que isso. O conceito de autoconsciência é falho e limitado porque sequer explica porque a vida humana deve ser respeitada, uma vez que, como vimos, ela desvaloriza a vida de seres humanos não-paradigmáticos. Outro critério deve, portanto, ser encontrado.<br /><br />Um dos autores que se dispôs a contestar as teses de Peter Singer sobre a autoconsciência e o princípio da igual consideração de interesses foi o advogado norte-americano Gary Francione, um dos expoentes do pensamento abolicionista.<br /><br />Francione ressalta que a autoconsciência, junto com a racionalidade e a linguagem, já era usada como critério para distinguir animais humanos e não-humanos desde a filosofia clássica e moderna. Desse modo, a filosofia de Singer sequer pode ser descrita como paradigmática. A premissa singeriana de que os animais não se importam com a vida, mas sim como são tratados, também já está presente nos primeiros filósofos utilitaristas, como Jeremy Bentham. Decano do bem-estarismo, Bentham afirmava que o problema não é o uso de animais em si, mas a forma (cruel ou benevolente) como os usamos.<br /><br />Francione, então, simplifica e ao mesmo tempo radicaliza o critério para a atribuição de direitos básicos a um animal. Para ele, a senciência é a única característica que importa para definir se devemos respeitar ou não a vida de um ser. Se é senciente, afirma Francione, o animal tem interesse em continuar vivendo. Afinal, a senciência é um meio para o fim da sobrevivência. Francione vai adiante e afirma que a senciência é por si só um indicativo de autoconsciência: quando sente dor, o animal percebe-se com indivíduo, pois sabe que é ele quem está sofrendo.<br /><br />Da mesma forma, a capacidade de planejar o futuro não implica que um animal não se importe com sua própria vida e não esteja disposto a lutar por ela (que sua única preocupação seja o sofrimento imediato da dor). Francione cita um exemplo curioso: o caso de um ser humano que tenha a memória recente afetada (como o personagem do filme Amnésia): este ser humano hipotético tem uma capacidade muito limitada de planejar o futuro, mas seria ilógico afirmar, em decorrência disso, que ele não se importaria tanto com a sua vida ou que tirar-lhe a vida é um dano menor que a de um ser humano que tenha a memória intacta. Como dito acima, tal tese restringe o respeito à própria vida humana.<br /><br />Do imperativo de preservar a vida animal decorre, na filosofia de Francione, que não podemos usar animais para quaisquer fins humanos pois, como no caso da escravidão humano, ao fazê-lo estamos reduzindo-os à categoria de objetos, cujos interesses básicos automaticamente perdem primazia ante os interesses de seus proprietários. Francione, portanto, elimina qualquer ambigüidade no que se refere à justificação moral do uso de animais em experimentos de laboratório. Nós, humanos, Devemos nos abstermos totalmente de usar animais não-humanos, para qualquer fim e, enquanto a abolição não é alcançada, boicotar todos os frutos dessa exploração – que é a prática do veganismo. Esta é a síntese da teoria abolicionista de Francione.<br /><br />A senciência, além de tudo, tem a qualidade de ser um critério muito mais objetivo e, portanto, menos controverso que a autoconsciência. Ela é também mais abrangente. E uma conseqüência importante de seu emprego é que ela elimina as ambigüidades e hierarquias da filosofia singeriana. Em função dessas lacunas e hierarquias, não tardará o dia em que, a despeito do seu papel na revitalização do debate sobre direitos animais, a obra de Singer será uma fonte valiosa para os que preconizam a exploração animal. E, de fato, pela posição ocupada pelo autor e seu papel no debate contemporâneo, sua obra poderá transmutar-se na mais poderosa arma em defesa da exploração animal. De fato, o ambientalista Marc Dourojeanni já acusa os defensores dos direitos animais de interpretarem erroneamente a obra de Singer. Afirma ele, de forma inequívoca:<br /><p><br /></p><blockquote><p>Baseados numa leitura pouco lúcida dos escritos do filósofo Peter Singer e, em especial de seu livro <span style="font-style:italic;">Libertação Animal</span> (versão portuguesa de 2004), essas pessoas consideram que os humanos não têm o direito de matar animais e, assim, não devem se alimentar deles, nem muito menos matá-los para outros usos (couro, pele, penas) ou como conseqüência de atividades como a pesquisa científica ou as touradas, brigas de galo e rodeios. Também estão contra a caça e a pesca e, claro, contra qualquer tratamento aos animais que possa parecer cruel numa ou outra forma. [DOUROJEANNI, Marc. Ambientalismo e Direitos Animais. In: O Eco. 9 de janeiro de 2007. Disponível em: http://www.oeco.com.br/marc-dourojeanni/42-marc-dourojeanni/16408-oeco_20295.]</p><p></p></blockquote><br /><br /><p>Ele se equivoca ao supor que os abolicionistas têm Singer como referência principal, mas não ao supor que o autor não preconiza a tal abolição da exploração animal. Além disso, desconsiderando o debate ético, como tantos outros, relega a adoção do veganismo à mera questão de “opção pessoal” – o que, naturalmente, elimina a possibilidade de atribuição de direitos, pois direito não é algo que pode-se optar por violar. O conhecimento e credibilidade do autor sobre o tema, aliás, pode ser medido pelo fato de ele ignorar totalmente o conceito de senciência e demonstrar desconhecimento de distinções básicas da biologia, ao equiparar animais, bactérias e vírus. Não obstante, é este tipo de despreparo intelectual que devemos esperar dos críticos da filosofia dos direitos animais.<br /><br />Na filosofia de Francione, muito mais coerente, por outro lado, tais distinções perdem o sentido. Todas as vidas sencientes merecem igual consideração de fato, o que quer dizer que interesses básicos iguais não podem ser colocados numa balança em função de critérios secundários. Desse modo, qualquer consideração sobre autoconsciência, teste do espelho ou capacidade cognitiva dos animais não-humanos torna-se ociosa e descartável no debate sobre os direitos animais. A questão é muito mais simples: todos os animais – com a possível exceção das esponjas – são sencientes. Por mais rudimentar que seja, eles têm a autopercepção de serem organismos vivos e seu interesse básico é continuar vivos – mesmo que não tenham a capacidade cognitiva para manifestar tal interesse. As diferenças que os separam de nós são, como já disse Charles Darwin, de grau, e não de espécie. Matá-los e explorá-los é, portanto, um dano moralmente injustificável. Respeitar sua vida e sua liberdade, nosso dever.</p>Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com4tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-73249730194113072402009-05-02T22:13:00.006-03:002009-06-03T17:08:41.373-03:00Um Vegano Deve Usar Remédios?<div style="margin: 0cm 0cm 10pt;"><span style=";font-family:Verdana;font-size:100%;" ><span style="font-family:Verdana,Arial,Helvetica,sans-serif;"><span style="font-style: italic;">Texto publicado no site da ANDA em março de 2009</span><br /><br />Todos sabemos que o princípio básico do veganismo é o boicote aos frutos da exploração animal. Também sabemos que todos os medicamentos disponibilizados no nosso país são testados em animais. Veganos, aspirantes a veganos e onívoros, portanto, fatalmente colocam esta pergunta, com objetivos diferentes: um vegano deve usar remédios?</span></span></div> <div style="margin: 0cm 0cm 10pt;"><span style=";font-family:Verdana;font-size:100%;" ><span style="font-family:Verdana,Arial,Helvetica,sans-serif;">Veganos e aspirantes muitas vezes as colocam por se sentir diante de um dilema moral. Onívoros, com o objetivo de apontar outro tipo de dilema: entre a hipocrisia do vegano que se permite usar medicamentos e o radicalismo suicida daquele que se recusa a fazê-lo.<br /></span></span></div> <div style="margin: 0cm 0cm 10pt;"><span style=";font-family:Verdana;font-size:100%;" ><span style="font-family:Verdana,Arial,Helvetica,sans-serif;">Tal questão não pode, porém, ser enfrentada de maneira simplória, nem determinista. Os princípios da filosofia vegana efetivamente entram em choque quando se trata de responder qual a posição eticamente aceitável para o uso de medicamentos testados. Porém, este dilema não é tão generalizado nem tão dramático quanto veganos e onívoros parecem simultaneamente pensar.</span></span></div> <div style="margin: 0cm 0cm 10pt;"><span style=";font-family:Verdana;font-size:100%;" ><span style="font-family:Verdana,Arial,Helvetica,sans-serif;">Dois fatores iniciais e determinantes ajudam a tirar esse debate do terreno maniqueísta do “ou tudo, ou nada”. O primeiro deles diz respeito ao próprio estilo de vida do indivíduo, e como este influi na sua saúde. Embora a medicina muitas vezes dedique-se exclusivamente a combater ou mitigar males de saúde já estabelecidos, e boa parte da pesquisa medicinal orientar-se nesse sentido, o fato de que a saúde depende muito mais do estilo de vida e da prevenção de doenças já é cientificamente fundamentado. Os hábitos de higiene, os exercícios físicos regulares, as boas condições sanitárias e ambientais (incluindo fatores como a poluição atmosférica e exposição a produtos tóxicos) e a boa alimentação são fatores determinantes para a saúde de um indivíduo.</span></span></div> <div style="margin: 0cm 0cm 10pt;"><span style=";font-family:Verdana;font-size:100%;" ><span style="font-family:Verdana,Arial,Helvetica,sans-serif;">Nesse sentido, a própria dieta vegana já contribui em grande medida para a preservação da saúde – e, conseqüentemente, a dispensa de medicamentos alopáticos. Contribui, mas não é suficiente. A dieta ideal deve ser não apenas vegana, mas prescindir ao máximo de alimentos industrializados, que contêm produtos potencialmente tóxicos, e alimentos criados com agrotóxicos. Mais fácil dizer que praticar, mas essa dieta o mais natural possível contribui enormemente para a manutenção da saúde daqueles que a seguem. Além disso, é importante observar os exercícios físicos e manter-se tanto quanto possível longe dos fatores ambientais potencialmente perigosos para a saúde. Na nossa sociedade urbana e industrializada, porém, um estilo de vida saudável nem sempre depende de nossas ações isoladas.</span></span></div> <div style="margin: 0cm 0cm 10pt;"><span style=";font-family:Verdana;font-size:100%;" ><span style="font-family:Verdana,Arial,Helvetica,sans-serif;">O segundo fator que contribui para desmitificar o dilema entre veganismo e medicamentos é a existência de terapias medicinais não alopáticas, cujos medicamentos não são testados em animais. Tenho em mente, principalmente, a homeopatia, a fitoterapia e a acupuntura. Essas são três opções plausíveis para aqueles de nós que vivem exatamente na situação descrita acima: vivem expostos a um ambiente lotado de ameaças reais e potenciais à saúde, as quais não se pode evitar apenas por meio de ações individuais. Sei bem do que estou falando, sendo alérgico praticamente desde o nascimento (muito antes de veganizar, portanto). Além de a adoção do veganismo ter reduzido sensivelmente minhas crises alérgicas (e minha dependência de medicamentos contra alergia, que não curam, apenas atuam sobre os sintomas), desde que busquei tratamento fitoterápico eu tive uma melhora gigantesca. Minhas crises alérgicas praticamente acabaram, acabando também com meu dilema sobre o uso de medicamentos para controlá-las. É público e notório, porém, que tais terapias não são aceitas ou acreditadas por todos. Eu mesmo não tive sucesso nas minhas tentativas com a homeopatia. Porém, cabe ressaltar que a fitoterapia e a homeopatia são terapias holísticas, ou seja, tratam do organismo como um conjunto integrado, e fazer uso delas sem tentar tratar dos demais aspectos insalubres de nossa vida reduz a chance de um tratamento bem-sucedido.</span></span></div> <div style="margin: 0cm 0cm 10pt;"><span style=";font-family:Verdana;font-size:100%;" ><span style="font-family:Verdana,Arial,Helvetica,sans-serif;">Há, porém, aqueles casos emergenciais que são brandidos pelos críticos do veganismo e das terapias “alternativas”. E se você sofre um acidente de trânsito? E se, apesar de todos os cuidados possíveis, é acometido de uma doença grave? É sabido que a homeopatia, a fitoterapia e a acupuntura são tratamentos de médio e longo prazos. Seria eticamente condenável e contraditório um vegano aceitar tratamento médico? Ou seria hipocrisia, como dizem os onívoros?</span></span></div> <div style="margin: 0cm 0cm 10pt;"><span style=";font-family:Verdana;font-size:100%;" ><span style="font-family:Verdana,Arial,Helvetica,sans-serif;">A minha opinião é um convicto “não”. Conheço caso de veganos que sofreram acidentes que requereram internação hospitalar – inclusive uma pessoa que considero uma das mais dedicadas e coerentes no que se refere ao veganismo. Conheço casos de veganos que necessitaram de cirurgia. E tenho um caso familiar de doença crônica em pessoa não-vegana, que depende de medicamentos para levar uma vida minimamente suportável. Eu não diria a nenhuma dessas pessoas que lutar para preservar suas próprias vidas é eticamente condenável. Não esqueçamos que o veganismo não defende o sacrifício pessoal, mas sim a abstenção de explorar. Todos os veganos que conheço que precisaram de apoio da medicina tradicional ocidental-moderna fazem suas partes: praticam o boicote, não consomem produtos testados e não tomam remédios em função de qualquer dor de cabeça banal. Porém, ao serem confrontados com a necessidade de preservar suas próprias vidas e sua integridade física e psíquica, não podem se curvar à chantagem dos onívoros. Não é incoerente aceitar tratamento médico se este for irremediavelmente necessário para salvar suas vidas ou manter sua integridade (não esqueçamos que a questão da integridade é fundamental, caso contrário seria eticamente aceitável explorar e não matar).</span></span></div> <div style="margin: 0cm 0cm 10pt;"><span style=";font-family:Verdana;font-size:100%;" ><span style="font-family:Verdana,Arial,Helvetica,sans-serif;">Não é culpa dos veganos se a ética médica especista faz testes em animais não-humanos, os quais são desnecessários e até perigosos para a saúde humana, pois induzem a conclusões enganosas. O fato é: os veganos não lutam (necessariamente) contra a medicina ocidental-moderna. Embora falha e limitada, ela pode, tanto quanto as demais, contribuir para prolongar o tempo de vida do ser humano e sua qualidade. Pessoalmente, acredito que a medicina ideal não está numa vertente exclusiva, mas no melhor que cada uma das vertentes tem a oferecer.</span></span></div> <div style="margin: 0cm 0cm 10pt;"><span style=";font-family:Verdana;font-size:100%;" ><span style="font-family:Verdana,Arial,Helvetica,sans-serif;">A posição eticamente coerente e correta é, portanto, denunciar os testes em animais não-humanos, lutar pela sua abolição e pelo emprego dos métodos substitutivos já existentes, boicotar totalmente o uso de produtos testados em situações que não sejam emergenciais. O sacrifício em favor de uma causa (dependendo de qual ela seja) é belo e louvável, mas nem sempre é a opção mais inteligente – pois um ativista vivo sempre pode contribuir mais pela causa do que um morto. Tampouco, o sacrifício pessoal pode ser exigido como regra de conduta, e qualquer estudioso da ética concordará quanto a este ponto. Assim, nem o vegano disposto a este sacrifício, nem o onívoro vigilante das contradições veganas podem exigi-lo daquele vegano que, por quaisquer razões que sejam, se veja diante do dilema de usar tratamentos e medicamentos testados para preservar sua vida e sua integridade. Um dilema que, como afirmei acima, é bem menos comum e dramático do que o senso comum sugere.</span></span></div>Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com6tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-35286379847432778112009-03-24T22:59:00.010-03:002009-06-03T17:15:26.118-03:00Alianças e Estratégias: Equívocos Presentes, Caminhos Futuros<p><span style="font-style: italic;">Texto publicado no site da Agência de Notícias de Direitos Animais (ANDA)</span><br /></p><p>Este mês de fevereiro completam-se dois anos que me tornei ativista pelos direitos animais.</p><p>Desde que aderi ao movimento tenho insistido na necessidade de os ativistas veganos abandonarem o espontaneísmo e adotarem uma postura mais responsável do ponto de vista profissional e intelectual. Não é porque o ativismo é voluntário que ele pode ser feito com desleixo. Não é porque você tem convicção das suas idéias que não tem o dever de desenvolvê-las filosoficamente para credenciar-se para o debate. Isto é, se queremos realmente que nossas ações em prol dos direitos animais tenham impacto na sociedade, seja na escala micro, das relações pessoais, seja na escala macro, de interferir nos processos de exploração animal.<br /></p><p>A questão é recorrente. Vejo isso se repetir há dois anos. Quando suponho que uma fase do amadurecimento do movimento foi superada, ela volta como em ciclos. Lógico que declaro isso tendo como referência, em particular, o ativismo no Rio de Janeiro. O movimento progrediu bastante nos últimos dois anos. Há centenas de pessoas competentes e dedicadas que fazem a diferença para esse progresso. Não obstante, elas se defrontam repetidamente contra um muro de preconceitos, equívocos, mal-entendidos que puxam o movimento para trás. E não estou falando dos onívoros.<br /></p><p>A “ideologia” do onivorismo é uma referência constante nos meus textos, pois meus objetivos primários são despertar a reflexão crítica dos onívoros sobre as fragilidades éticas e lógicas dos seus argumentos, e também fornecer subsídios aos vegetarianos para se credenciarem ao debate, pois duas coisas são fatais na luta pelos direitos animais: um vegano sem argumentos e sem saúde.<br /></p><p>Entretanto cada vez mais me convenço de que está faltando aos vegetarianos e veganos reflexão crítica sobre si mesmos. Não que eu não soubesse disso há dois anos, mas me surpreendo com esse eterno retorno de mitos e equívocos, prejudicando o movimento quando pensam estar impulsionando-o.<br /></p><p>Alguns desses exemplos:<br /></p><p>- A defesa do ovolactovegetarianismo como uma “etapa” ou mesmo o “mal menor” em relação ao onivorismo.<br /></p><p>- Na mesma linha, a defesa do bem-estarismo como um “mal menor” em relação à exploração sem regulamentação.<br /></p><p>- Consequência desta segunda, a ideia de que bem-estaristas e abolicionistas são aliados em prol dos animais e podem e devem dialogar e cooperar – em pé de igualdade. Na verdade, os bem-estaristas são aliados dos exploradores, fato que Gary Francione já demonstrou repetidamente em textos traduzidos para o português – mas que ativistas que se consideram autossuficientes, acham o estudo desnecessário e acreditam que basta a força da convicção para defender uma ideia não leram.<br /></p><p>- A lógica do “vale-tudo” em que, para convencer alguém a se tornar vegetariano, deve-se usar não o argumento mais correto, e sim o mais convincente – sem levar em consideração o dano que argumentos falhos podem provocar: desmoralizar o ativista e, logo, a causa como um todo; induzir o interlocutor a atitudes que possam prejudicar a sua própria saúde, no caso de informações nutricionais equivocadas; o abandono do vegetarianismo/veganismo a partir da constatação de que as premissas que levaram alguém a adotá-lo – reforçadas por ativistas que supostamente sabem do que falam – são falsas. Abordei eu mesmo esse tema no meu texto sobre os <a href="http://sereslivres.blogspot.com/2008/07/discursos-transversais.html">discursos transversais</a>.<br /></p><p>Cada um desses pontos já foi rebatido à exaustão por ativistas sérios, dedicados e que sabem do que estão falando. Além dos textos de Francione, recomendo fortemente os textos da revista eletrônica <i>Pensata </i>, particularmente o de Luciano Cunha, que trata dos equívocos do movimento em defesa dos animais, <a href="http://www.pensataanimal.net/index.php?option=com_content&view=article&id=175:esta-tao-na-cara-i&catid=41:lucianocunha&Itemid=1">"Está tão na cara que é difícil de enxergar"</a>. O texto tem sete partes.<br /></p><p>Mas a ignorância militante (ou displicência irresponsável) é muito difícil de ser superada. Já ouvi vários tipos de bobagens e irresponsabilidades de veganos. Um tipo que me espanta particularmente é a questão da vitamina B12, devido à sua seriedade. Incapazes – por pura falta de estudo sobre a questão – de responder ao falso argumento de que a necessidade de suplementação desqualifica o veganismo como opção alimentar saudável e natural, alguns veganos preferem dar dicas sem comprovação científica como comer algas ou tomar água de chuva (e se houver seca?) e de cachoeira (claro, tem uma cachoeira a menos de 1 km de todos os domicílios), negar a necessidade de suplementação ou apelar para o “conspiracionismo” (é tudo mentira da indústria farmacêutica).<br /></p><p>Pode-se mesmo questionar o real grau de comprometimento que ativistas que não se dispõem a aprimorar seus conhecimentos têm com a causa. Nesses dois anos, lamentavelmente, pude constatar que, mesmo num meio supostamente governado pelos princípios e pela ética, há pessoas que promovem intrigas, boicotam e prejudicam colegas e se envolvem no ativismo tendo em vista tão somente a promoção pessoal.<br /></p><p>Nesse ponto, quero fazer duas ressalvas. Primeiro: o reconhecimento que muitos ativistas obtêm por meio do ativismo sério e dedicado, que pode trazer benefícios materiais – mas nem sempre é o caso, pois o ativismo exige muitos sacrifícios – é absolutamente legítimo. Tampouco é correto criticar profissionais que colocam seu ofício a serviço da causa, extraindo daí também o seu sustento. Ou será que honesto é apenas o onívoro que decide investir em produtos veganos por uma esperteza mercadológica? O que estou criticando são pessoas que prejudicam a causa em função de seus interesses pessoais, promovendo brigas, criando competição, concentrando poder e responsabilidades, mesmo quando lhes falta competência para tanto. Segundo: não estou defendendo, com isso, que todos os ativistas têm de ser amigos, aliados e agir em conjunto. Aliás, essa mentalidade aliancista é extremamente prejudicial ao movimento, e é especialmente contra ela que me bato constantemente aqui no Rio de Janeiro. Por isso vou falar um pouco mais detidamente sobre ela.<br /></p><p>O primeiro efeito da mentalidade aliancista é tentar juntar pessoas com matrizes de pensamento distintos, sob a premissa – nem sempre verdadeira – de que têm um objetivo comum. Aqui no Rio de Janeiro isso tem sido traduzido na estratégia de juntar bem-estaristas, abolicionistas, libertários e espiritualistas em favor da “causa comum” do vegetarianismo.<br /></p><p>Consequências? Um discurso incoerente que confunde mais do que esclarece o público. Enorme perda de energia em reuniões, debates, discussões onde matrizes de pensamento que, na verdade, são bastante distintos, jamais vão se entender. A perda de tempo e energia resultantes apenas atrasam nossos empreendimentos e reduzem sua eficiência, prejudicando a própria difusão da causa e, portanto e principalmente, prejudicando os animais. Este é um paradoxo fundamental: o discurso aliancista legitima-se alegando que toda ajuda é bem-vinda e necessária para ajudar os animais, mas o efeito que ele provoca é o oposto do propósito que defende.<br /></p><p>Há tempos tenho defendido a estratégia inversa: em vez de um aliancismo que faz tábula rasa das diferenças, declarando-as como empecilhos – e assim apagando as individualidades e identidades diversas – temos que adotar a estratégia de grupos pequenos, agregados a partir de afinidades filosóficas e ideológicas, que cooperem NA MEDIDA DAS POSSIBILIDADES, quando suas opiniões convergirem. Desnecessário dizer que por definição essa minha proposta exclui a possibilidade de alianças com bem-estaristas, pois nós devemos estabelecer o veganismo e abolicionismo como PONTOS INEGOCIÁVEIS. Se alguém não concordar com estas premissas, não devemos nos aliar com eles. Alguns dizem que esta é uma atitude segregadora. Este é um argumento ignorante. A coerência deve ser um princípio basilar de nosso movimento, e ela não supõe o isolamento, mas sim o diálogo. Dialogar, porém, é diferente de cooperar. A cooperação só pode existir quando existem metas comuns. O problema, portanto, e isso é o mais preocupante, é que muitos dos que se dizem defensores dos direitos animais AINDA NÃO VÊM O VEGANISMO E O ABOLICIONISMO como metas fundamentais do movimento.<br /></p><p>Um exemplo pode clarificar a minha argumentação: durante a ditadura militar, comunistas e opositores liberais aliaram-se, pois sua meta era restabelecer o regime democrático. Naturalmente, com o fim da ditadura, essa aliança se dilui, pois as metas se tornaram distintas: os liberais defendem o regime capitalista, os comunistas querem derrubá-lo. Mal comparando, os defensores dos direitos animais querem criar alianças entre liberais e comunistas, e consequentemente despendem tempo e energia preciosos nesse trabalho improfícuo.<br /></p><p>O I Encontro Nacional de Direitos Animais, realizado em maio de 2008, é um bom exemplo da estratégia que tenho defendido: foi concebido como um evento abolicionista, e conseguiu atrair participantes onívoros, ovolactovegetarianos, bem-estaristas, a partir da receptividade e do diálogo, mas sem abrir mão de sua coerência e seus princípios. E foi desse modo que naquele evento muitas pessoas foram atraídas para o veganismo e o abolicionismo. Isso não teria acontecido se uma atitude falsamente democrática tivesse posto pontos de vista distintos em pé de igualdade.<br /></p><p>Infelizmente não consegui muitos adeptos para minhas concepções estratégicas na cidade do Rio de Janeiro, e tenho convicção de que este é um dos fatores pelo qual o ativismo nesta cidade está aquém do seu potencial, uma opinião que parece ser comum a todos os ativistas, independentemente das divergências que possam ter em outras questões.<br /></p><p>Nós, veganos, temos que começar dando passos pequenos, realistas. O crescimento, a projeção, as alianças serão o resultado natural de um trabalho feito com competência, dedicação e coerência. Nesse ponto gostaria que minha experiência servisse de exemplo: a melhor forma de fazer com que o conjunto e o individual caminhem juntos é fomentar o talento natural dos ativistas, em vez de deliberar tarefas a esmo. Cada militante precisa encontrar seu lugar específico; desse modo, estará fazendo algo prazeroso para si, consequentemente produzindo um trabalho mais eficiente e contribuindo para a causa como um todo.<br /></p><p>De dois anos para cá eu mesmo tenho me esforçado enormemente para crescer como ativista, e percebo que ao fazê-lo, além do crescimento individual, contribuo cada vez mais para a divulgação do veganismo e do abolicionismo sobre bases sólidas. A pesquisa, a reciclagem e atualização das ideias são uma necessidade constante que os ativistas que levam suas próprias convicções a sério devem observar.<br /></p><p>A primeira e mais fundamental tarefa do movimento pelos direitos animais, felizmente, tem progredido rapidamente: dar clareza aos nossos propósitos. Isso implica a adoção do veganismo e abolicionismo como fundamentos prático e filosófico, respectivamente. A segunda tarefa, a partir daí, é ter clareza de que nem todos aceitarão essas premissas, e termos maturidade para seguirmos adiante sem ceder às ilusões de grandes alianças entre formas de pensamento distintas ou puramente inconciliáveis. Em paralelo, cabe-nos desenvolver estratégias eficientes para levar o veganismo abolicionista ao conjunto das nossas comunidades. Não estratégias que escondam nossas ideias ou enganem o público – como são os discursos transversais e aliancistas. O que nós precisamos é de uma estratégia que seja eficiente e coerente com os nossos propósitos. E este último é o ponto em que milhares de movimentos políticos e sociais – como o nosso – falharam no passado. Ao comprometer suas ideias e princípios, sua coerência, em nome do crescimento, tornaram-se uma sombra do que outrora foram e sacrificaram o fim – a emancipação – em favor do meio – o poder. Devemos aprender com estas lições do passado: não sucumbir à sedução do poder, nem à ilusão de que o poder acelera o árduo e longo processo da emancipação social. Ao contrário, seu canto da sereia afoga os ideais de libertação sob o oceano de dominação do qual é constituído.</p>Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-44434990203588223602009-03-17T22:06:00.003-03:002009-03-17T23:28:38.182-03:00Conversando sobre Direitos Animais<span style="font-style: italic;">Texto publicado originalmente no site Vista-se em 12 de janeiro de 2009<br /><br /></span> <p>O maior propósito de ler, escrever e debater textos sobre direitos animais é aprimorar nossa capacidade de responder ao ceticismo alheio. Ter a resposta certa pode muitas vezes representar a diferença entre ter um amigo a fazer piadas constantemente, conquistar o seu respeito ou, em última instância, conquistar um aliado na sua causa.</p><p>Por isso é sempre importante ter uma compilação dos questionamentos mais recorrentes em relação aos direitos animais para saber o que responder quando aquele coringa for sacado da manga de um onívoro. Quem é vegetariano sabe que essas questões não são muitas – apenas varia a sua construção:</p><p><span id="more-850"></span>1. Mas de onde você tira suas proteínas?</p> <p>2. Você não vai ter anemia?</p> <p>3. E as plantinhas, não sentem dor?</p> <p>4. Tudo bem que você só queira comer mato, mas que direito você tem de me dizer o que comer?</p> <p>5. Num mundo cheio de pessoas passando fome, é até imoral você se recusar a comer carne. Ou sua variação: Num mundo cheio de pessoas passando fome, as pessoas não podem se dar ao luxo de se recusar a comer carne.</p> <p>6. Por que você não gasta seu tempo com algo mais útil e elevado, como cuidar crianças carentes? Outra variação famosa dessa diz: Enquanto houver gente pobre e faminta no mundo, os animais não serão prioridade pra mim.</p> <p>7. Pesticidas da agricultura matam mais animais que a pecuária.</p> <p>8. Você está comparando seres humanos com animais, e isso é igualmente absurdo e imoral.</p> <p>(Inclusive, é muito comum que elas se apresentem mais ou menos nessa ordem.)</p> <p>Deixo os mitos nutricionais a cargo de profissionais mais bem preparados para lidar com eles. Limito-me a dizer, portanto, que carência de proteína ou anemia são conseqüência de uma dieta pobre, ou mesmo de subnutrição. Retirar a carne e subprodutos (leite e ovo) da dieta NÃO implica uma dieta pobre, nem subnutrição. Veganos de fato precisam de suplementação da vitamina B12, mas isso não é muito difícil de se resolver, nem é desculpa para não ser vegano, já que a maioria de nós suplementa iodo (no sal), ácido fólico (na farinha), flúor (na água) sem maiores questionamentos filosóficos sobre se esta suplementação requerida pela vida moderna condena nossa dieta (ou nossa civilização). De mais a mais, há vegetarianos – e veganos – o suficiente no mundo para provar este ponto. Mesmo associações de médicos e nutricionistas, além de profissionais dessas áreas que conhecem de fato do assunto já declaram isso, o que exclui que se trate apenas de doutrinação do “fortíssimo” lobby vegano (pausa para risos). Eu fiquei positivamente surpreso ao constatar que nenhum médico que consultei até hoje, desde que me tornei vegano, me chamou de louco ou tentou me convencer a mudar de dieta. Empiricamente, percebo que os profissionais da saúde estão deixando ignorância e o preconceito em relação a este assunto.</p> <p>No que concerne ao resto, a qualidade das perguntas não melhora em nada. Uma breve exploração ponto a ponto:</p> <p>3. Não há evidência científica de plantas sentem dor; mesmo que sentissem, isso não significa que não deveríamos deixar de comer animais; e se nossa preocupação é salvar plantas, mataríamos menos delas se fôssemos vegetarianos e não desperdiçássemos toneladas de grão e folhagem alimentando animais para comê-los a seguir.</p> <p>4. Defender o veganismo não equivale a impor-lhe minha dieta. Entretanto, já que você falou em direitos, as constituições democráticas – e o bom senso – reconhecem que as pessoas têm o direito à livre manifestação de pensamento. Mas já que você insiste na pergunta, não é questão de autoritarismo, mas puramente de lógica: não faz sentido que seu direito à picanha seja mais importante que o direito do boi à vida e à liberdade. Ninguém acusaria de autoritarismo a uma pessoa que limita a liberdade do pedófilo de fazer sexo com crianças; que limita a liberdade do estuprador de violentar mulheres; ou que limita a liberdade do maníaco assassino de matar pessoas.</p> <p>5. Qualquer pessoa relativamente bem educada (digamos, com o ensino fundamental completo) sabe que o problema da fome do planeta não se deve à falta de alimentos, mas à concentração de recursos e de riqueza. Mas de fato a questão se torna mais interessante que isso quando recordamos que a pecuária drena recursos naturais, ocupa mais terra que a agricultura e é economicamente mais caro, de modo que a criação de animais para abate apenas ajuda a agravar o problema da fome.</p> <p>6. Como sempre digo, nada nos impede de fazer ambos. Ou melhor ainda: você não precisa, a rigor, fazer nada pelos animais, na sua vida cotidiana. Deixar de explorá-los é o MÍNIMO que se pode fazer. Não custa nada (não, o estilo de vida vegano não é mais caro), a não ser um pouco mais de cuidado na hora de ir ao supermercado e farmácia e disciplina para comer na rua. De fato, é provável que você economize com o que gastaria em carne, laticínios, ovos, produtos químicos testados em animais e remédios dos quais não se precisa realmente. Então, você pode continuar tão politicamente engajado quanto antes em salvar as crianças, acabar com a fome no mundo, promover a paz mundial, fazer uma revolução e mudar o mundo. Apenas estará, ao mesmo tempo, tomando uma atitude COERENTE com tudo isso (tanto na prática como na teoria). O mais provável, porém, é que quem fez essa pergunta não faça nada nem pelas crianças, nem pela paz mundial.</p> <p>7. Isso simplesmente não é verdade. Animais criados para o consumo também consomem, indiretamente, pesticidas e produtos testados em animais. As taxas de uso disso tudo seriam menores se as pessoas comessem apenas vegetais. Quem paga por “boi verde” pode pagar tranqüilamente por alimentos orgânicos. Os quais, aliás, são caros apenas por “grife” – triste este mundo em que saúde e respeito ao meio ambiente se tornam objeto de ostentação (e os economistas ainda dizem que cuidaríamos melhor do planeta se as florestas e a água tivessem valor de mercado…). Alimentos orgânicos podem ser igualmente produtivos e baratos. Por fim, a quantidade de terra liberada pela pecuária para a agricultura tornaria a necessidade do uso de pesticidas ainda mais duvidosa.</p> <p>8. Aqui, um pouco de conhecimento de biologia e antropologia não faria mal. Comparar animais e seres humanos é o que eu chamaria de uma analogia perfeita. Muito melhor do que as metáforas futebolísticas que ganharam a política. Seres humanos são animais e, portanto, qualquer diferença que exista entre nós (humanos) e eles (animais não-humanos) é meramente de grau, não de tipo. Não existem habilidades humanas que não estejam presentes (em maior ou menor grau) em outros animais. Não há, portanto, nada de absurdo e imoral nessa comparação. Respeitar animais não implica desrespeitar seres humanos – antes o contrário, e qualquer defensor dos direitos animais que não valorize igualmente os direitos humanos está profundamente equivocado. Como seres sencientes, temos todos os mesmos direitos básicos – aqueles direitos que se referem a essa nossa característica distintiva que é a senciência. São estes direitos: a vida, a liberdade e a integridade física e psíquica. Afinal, é para proteger suas vidas e sua integridade que animais são sencientes, e só na medida em que são livres eles podem fazê-los por si mesmos.</p> <p>Pelo contrário, e por mais absurdo que pareça à primeira leitura, são os antropocentristas que desmerecem o ser humano e têm uma perspectiva moral limitada – e perigosa. Se o que torna o ser humano especial são suas habilidades especiais – compor sinfonias, escrever romances, desbravar o universo, partir o átomo, defender teses, transformar a natureza a ponto de deformá-la (e com isso ameaçar sua própria existência humana) ou comunicar-se num determinado idioma ou proferir uma determinada religião ou ideologia – então qualquer ser humano desprovido dessas habilidades especiais deixa automaticamente de ser especial. Torna-se, portanto, descartável. Eis então como abrimos as portas para a eugenia, o racismo, a xenofobia, a limpeza ética, os campos de concentração, os gulags, o extermínio em massa e a bomba atômica.</p> <p>Com o tempo pretendo responder mais detidamente a cada uma dessas perguntas (exceto à oitava, que considero já satisfatoriamente respondida com o texto “Por que animais têm direitos?”). Queria, por final, deixar perguntas aos leitores. Aos vegetarianos e veganos: quais foram os questionamentos mais estranhos que já ouviram, tanto no aspecto positivo, de desafiador, quanto no negativo, de ser risível? Aos onívoros que eventualmente lerem esta coluna: que outras objeções racionais vocês levantariam contra o veganismo? Não vale o prazer da picanha, pois não existe justificativa racional para um prazer gustativo.</p><p><span style="font-weight: bold;">OBS: Algumas dessas questões já foram aprofundadas em outros textos aqui publicados.</span><br /></p>Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-88127322010028985812009-02-19T04:09:00.007-03:002009-06-03T17:10:56.972-03:00Novo Sistema de TrabalhoAno novo, novo sistema de trabalho.<br /><br />A partir de agora tenho colunas permanentes em dois sites.<br /><br />Vista-se:<www.vista-se.com.br> <a href="http://www.vista-se.com.br/">www.vista-se.com.br</a></www.vista-se.com.br><br /><www.vista-se.com.br><br />Agência de Notícias dos Direitos Animais (ANDA): <a href="http://www.anda.jor.br/">www.anda.jor.br</a></www.vista-se.com.br><br /><www.vista-se.com.br><www.anda.jor.br><br />Além de contribuir com a Revista Eletrônica Pensata Animal, embora sem uma periodicidade certa: <a href="http://www.pensataanimal.net/">www.pensataanimal.net</a></www.anda.jor.br></www.vista-se.com.br><br /><www.vista-se.com.br><www.anda.jor.br><www.pensataanimal.net><br />O compromisso que tenho para escrever textos para estes sites absorve todo o tempo disponível que tenho para produzir textos sobre o tema dos direitos animais, mas não pretendo por isso abandonar o blog. Minha idéia é mantê-lo como uma base de dados que concentre todos os meus textos, já que muitos deles estarão disponíveis em um site, mas não em outro.<br /><br />O texto abaixo, <span style="font-style: italic;">As Camadas da Opressão</span>, é o primeiro desse novo sistema, tendo sido publicado na ANDA na semana passada. Embora não tenha sido uma atitude planejada, ele complementa muito bem o último texto publicado no blog, em dezembro.<br /><br />Agradeço a todos aqueles que têm lido e comentado meus textos e peço que continuem dando suas impressões, fazendo críticas e sugestões.</www.pensataanimal.net></www.anda.jor.br></www.vista-se.com.br>Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-88750603592514981712009-02-19T04:05:00.003-03:002009-02-19T04:21:16.598-03:00As Camadas da Opressão<span style="font-style: italic;">Publicado em: ANDA, 9 de fevereiro de 2009</span><br /><br />A questão da dominação e do poder freqüentemente é analisada sob uma perspectiva maniqueísta. Especialmente na esfera política – seja tradicional, dos partidos, sindicatos – seja dos movimentos sociais e organizações dificilmente encontra-se a tentativa de uma análise ponderada e justa. Por ponderada e justa não me refiro a imparcial, nem nivelador. Pois é impossível – e indesejável – não ter uma opinião a respeito de um determinado assunto, e muito menos que todas as opiniões se equivalham.<br /><br />Coisa muito diferente é supor que um dos lados estará sempre com a razão, menos ainda supor que o poder e a dominação são caminhos lineares. Na história da humanidade, a opressão se manifesta em diferentes sentidos, e muito freqüentemente aquele que é o oprimido numa determinada situação, torna-se o opressor em outra. Em certos casos, isso se dá por sucessão lógica, quando os ventos mudam de direção e a ordem social é subvertida. Em outros, e eu diria que muito mais freqüentemente, oprimido e opressor convivem simultaneamente no mesmo indivíduo ou grupo de indivíduos. Alguns exemplos são óbvios: racismo, sexismo, xenofobia, preconceito religioso são males que atingem a sociedade de modo muito democrático e, de fato, os grupos sociais desfavorecidos são muito vulneráveis a eles, pois sua situação de exclusão social favorece a competição pelos escassos recursos e a busca de “bodes expiatórios”. E também freqüentemente os grupos dominantes sabem explorar muito bem esta situação. Pensemos em exemplos como o da Alemanha nazista, em que os dissabores de um país arruinado foram creditados aos judeus – aproveitando-se, naturalmente, da presença histórica do anti-semitismo naquele país. O caso da discriminação e violência contra mulheres entre as classes trabalhadoras, o preconceito popular contra imigrantes na Europa (onde os partidos neo-fascistas colhem a maior parte de seus votos junto às classes média e baixa). São inúmeros os exemplos. Em cada grupo marginalizado na sociedade pode-se encontrar uma dose significativa de preconceito e violência latente que não necessariamente se voltará contra o opressor, mas será canalizado para subjugar um outro grupo.<br /><br />A explicação para esse fenômeno certamente não é uma tarefa simples, pois ela está ligada a diversos fatores. Não só a própria essência do poder, em que ele consiste e porque o ser humano o persegue, mas também fatores históricos, sociais e econômicos. Tal questão ficará mais clara se, em vez de uma explicação abstrata, fornecermos um exemplo concreto. No famoso caso da Alemanha nazista, o anti-semitismo se explica por uma histórica intolerância religiosa que, desde a Idade Média, relegou os judeus às atividades comerciais e financeiras. Não podemos esquecer que, na época feudal, a principal fonte de riqueza era a posse de terra. Os judeus, por sua religião, não tinham acesso a ela, limitando-se ao comércio e ao empréstimo de dinheiro. Daí sua fama de usurários (sovinas, mesquinhos, gananciosos, e toda sorte de adjetivos de sentido semelhante), registrada em textos tão antigos quanto <span style="font-style: italic;">O Mercador de Veneza</span>, de William Shakespeare. Os judeus prosperaram nessa atividade e, com o advento do capitalismo, ascenderam a posições importantes na hierarquia econômica da sociedade – o que, por sua vez, os tornou alvo do maior número de teorias conspiratórias possíveis, já que na sociedade capitalista são os detentores do poder econômico que dão as cartas. Muitos europeus cristãos deveriam, naquela época, se perguntar por que, nas suas sociedades, eram aqueles “estrangeiros” que ocupavam postos de destaque em ofícios lucrativos, sem suspeitar que seu próprio preconceito alimentara tais diferenças. Desse modo, a posição social privilegiada dos judeus (não todos, é importante ressaltar), associada à discriminação imemorial por eles sofrida, ambas intimamente vinculadas, tornaram-nos o alvo perfeito da ira da Alemanha humilhada e arruinada após a Segunda Guerra Mundial.<br /><br />A história não termina aqui. O Holocausto judeu fortaleceu o reclame antigo desse povo por um Estado próprio, concretizando-se no Estado de Israel, nascido em 1º de janeiro de 1948, sob os auspícios da ONU e das duas superpotências, Estados Unidos e União Soviética. Não se tratou, como muitos dizem, de “caridade com a terra alheia”, já que desde o século XIX os judeus emigravam para a Palestina, e a divisão territorial feita pela ONU respeitava os limites das ocupações judaica e muçulmana. O resultado, porém, todos conhecemos. Os oprimidos de outrora tornaram-se opressores. O maniqueísmo, porém, não permite ver que muçulmanos também cumpriram o papel de agressor ao longo da história, e que muitos deles sequer reconhecem o direito dos judeus ao Estado de Israel – ainda hoje. Da mesma forma que o conflito externo com Israel ajuda a esconder a opressão interna sofrida pelo povo palestino. Seus líderes não são heróis da liberdade. Muitos deles não passam de indivíduos corruptos, autoritários e ineptos – como, aliás, a maioria esmagadora dos líderes políticos do mundo.<br /><br />Mas, afinal, por que escrevo sobre isso num espaço voltado para debater os direitos animais?<br /><br />Porque na escala da opressão, os animais não-humanos ocupam o último degrau. É na exploração animal que a quase totalidade da humanidade, opressores e oprimidos, se igualam, se irmanam. Embora, como propriedade que são, os animais não-humanos são mais “acessíveis” aos poderosos do mundo*, o fato é que quase todos os grupos sociais praticam s exploração animal ou, em alguma medida, se beneficiam dela. A exploração animal, dominação humana sobre outros animais, é talvez a ideologia mais difundida e mais amplamente aceita do mundo. Quase todos aceitam-na não apenas como natural e desejável, mas igualmente como justa e correta. Os seres humanos desvalidos quase sempre podem consolar-se em saber que, ao menos, não são animais (e, quando vítimas de uma injustiça particularmente aberrante, reclamar que não podem ser tratados como tal). Estilos de vida e culturas inteiras se formaram em torno da escravidão de animais não-humanos. Não surpreendentemente, a cultura mais antropocêntrica do mundo – a judaico-cristã – teve origem entre povos pastoris. Os animais não-humanos são os maiores explorados da terra. São considerados menos que os escravos ou os trabalhadores remunerados; seus direitos são nulos. Eles estão em último lugar na escala, também, porque eles são o único grupo oprimido que não podem se levantar contra seus opressores. Isso torna o nosso papel, como defensores dos direitos animais, ainda mais importante. E nossa responsabilidade, ainda maior.<br /><br />Claro, numa ironia final, nós, humanos, sempre podemos alegar que, se pudesse, a vaca faria o mesmo conosco. E isso ainda nos faz sentir superiores a ela – nós temos o poder de subjugá-la, ela não; nós triunfamos – reinamos – sobre todos os outros animais. Sem perceber, com esta posição, estamos chancelando a idéia de que aquele que pode explorar, escravizar, submeter, matar, é um ser superior. E, se não o fizer, é um tolo. Evidenciando, portanto, que por mais que não reconheçamos isso publicamente, nossa sede de poder nos torna uma espécie que não é apenas predisposta à violência, mas glorifica-a.<br /><br />Nosso comportamento com os animais não-humanos ratifica tudo o que fazemos entre nós mesmos. Se está correta a moral que aplicamos a todo o reino animal, então a ética comanda que sejamos brutais e vis entre nós mesmos – e que não há nada de injusto e imoral nisso. E é justamente por isso que nenhum ser humano que se levanta contra as injustiças provocadas contra outros seres humanos jamais poderá se mostrar indiferente ao sofrimento, à exploração, à objetificação dos animais não-humanos sem se mostrar portador de uma filosofia ética e política míope – e, em última instância, portardor de uma atitude incoerente e hipócrita.<br /><br />O veganismo é, portanto, não apenas uma IMPOSIÇÃO ÉTICA como afirmei em meu texto anterior. Ele é, igualmente, uma IMPOSIÇÃO POLÍTICA a todos os que combatem as injustiças do mundo e recusam a idéia de que a injustiça é inevitável e aceitável. A injustiça, a opressão, a dominação humanas, sejam seus alvos outros seres humanos ou animais não-humanos, não podem ser vistas como simples fenômenos da natureza. Elas são construções sociais que podem – e devem – ser abolidas.<br /><br />* E daí alguns fatos interessantes, como o uso da ingestão de proteína animal como indicador de prosperidade econômica ou a falácia de que o vegetarianismo é imoral num mundo assolado pela fome, quando na verdade a maioria esmagadora da carne do mundo vai para o estômago dos abastados.Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-8729960954524605872008-12-20T18:25:00.007-02:002008-12-24T00:58:34.856-02:00Livre arbítrio de quem?<strong>(Ou: Sobre a suposta liberdade de explorar animais)</strong><br /><br />É típico do relativismo tentar relacionar livre-arbítrio e vegetarianismo, nas seguintes bases: o vegetarianismo é uma opção pessoal, que não deve ser defendido como uma posição moral obrigatória. Hoje gostaria de ajudar a desfazer esse mito.<br /><br />Na minha interpretação, vejo o livre-arbítrio dividido em duas dimensões, uma prática e outra moral.<br /><br />Do ponto de vista PRÁTICO, ninguém pode tocar no seu livre-arbítrio, nem outro homem, nem "Deus" (que é invenção do homem). Essa é a tese defendida por Ivan Karamazov, famoso personagem de Dostoievsky. Esse seu pensamento tem uma importância chave no desenrolar do romance "Os Irmãos Karamázov". Tal idéia ficou consagrada no aforismo: "se Deus não existe, tudo é permitido".<br /><br />Tudo é permito? De certa forma, sim. Afinal, o ser humano é capaz, materialmente, de fazer tudo aquilo que puder conceber e que não viole as leis físicas. Apenas pela razão (reflexão) ou força (física ou moral) se pode impedir um ser humano de fazer tudo aquilo que lhe aprouver. Simplesmente cabe a ele decidir o que fazer... Sempre foi assim, e sempre será.<br /><br />Do ponto de vista MORAL, porém, o livre-arbítrio tem um limite claro, indiscutível, que é a liberdade e a integridade do PRÓXIMO. Qualquer ato que viole isto é imoral, inaceitável, e justifica uma limitação do livre-arbítrio. Diferente do que pensava Dostoievsky, esse limite não vem de Deus, mas do próprio ser humano: da razão, da empatia e do impulso em preservar a sociedade e seus indivíduos.<br /><br />O desafio que temos é estender esse aspecto MORAL para os demais animais: fazê-los serem reconhecidos como sujeitos portadores de direitos fundamentais à vida, à liberdade e à integridade (física e psíquica). Podemos fazer isso ao traduzir nossa moral (histórica e social) em princípios éticos universais.<br /><br />Clarificando: do ponto de vista PRÁTICO, o livre-arbítrio do onívoro é o mesmo do assassino ou do estuprador. O assassino ou o estuprador têm a plena liberdade, dentro de sua mente e de suas forças, para decididir se vão matar o estuprar - ninguém pode nem é capaz de manipular suas mentes e seus impulsos. Mas, do ponto de vista da MORAL, dentro de uma ética INDIVIDUAL, e em defesa da sociedade, é errado atribuir ao assassino ou ao estuprador essa liberdade de ação. Se eles incorrem nela, devem ser punidos, e a sociedade deve buscar previnir, pela educação e difusão de valores, tal choque de liberdades (algoz X vítima). O mesmo vale para o onívoro - a liberdade do algoz não pode se sobrepôr à da vítima (ainda que esta seja de outra espécie). Se, porém, ocorre, em algum momento este choque, devemos, como já disse anteriormente, preservar a liberdade da vítima, não do algoz. A exploração animal é uma liberdade tão legítima quanto a liberdade de assassinar seres humanos ou estuprar mulheres.<br /><br />Percebo esta concepção dual do livre-arbítrio como coerente com a posição abolicionista. Somos contra o especismo, certo? O que é o ser humano? Um animal. Existe algum freio à liberdade de um animal? Não. Ele segue seus instintos, seus desejos, seus impulsos, suas necessidades. Um leão abate a presa mais frágil, mais fácil de ser capturada, mesmo que seja um filhote. Mesmo animais herbívoros são capazes de comportamentos que nós julgaríamos cruéis - como ferir de morte na batalha pelo direito de acasalar. Isso ocorre também com o ser humano - somos animais, somente. Negar isso seria especismo. Negar nosso livre-arbítrio, também. Ocorre que nós também somos seres morais. Desenvolvemos princípios éticos a partir da razão, da empatia e das nossas necessidades de seres sociais. Essa característica, aliás, não nos é exclusiva. Basta observar outros animais sociais, como outros primatas, golfinhos e elefantes, e perceber que suas sociedades também vivem sob códigos morais*.<br /><br />É a MORAL que freia os impulsos irrefletidos do livre-arbítrio. A moral é uma construção SOCIAL. Logo, na natureza, sim, tudo é permitido. Na sociedade, não. Por isso, devido a uma percepção limitada, o senso comum entende que a nossa moral só se refere a nós, humanos - nós a estendemos de forma muito limitada aos demais animais, apenas na medida de nossos interesses. A ÉTICA, porém, é uma construção RACIONAL, e como tal, deve observar princípios universalizáveis - todos os seres que possuem as caractarísticas relevantes para possuir um direito, devem ter este direito respeitado. Como há muito argumentamos, essa característica, que nos obriga a respeitar os direitos humanos fundamentais à vida, liberdade e integridade, é a SENCIÊNCIA, e sendo ela também uma característica dos demais animais, esses direitos - que não são direitos humanos, mas DIREITOS ANIMAIS - devem ser respeitados na universalidade de sua abrangência - todo o mundo animal.<br /><br />Por fim, atribuir a nossa moral a uma entidade externa - "Deus" - é uma negação da nossa condição intrínseca de ANIMAIS e, portanto, uma manifestação de ESPECISMO. A sociedade e suas leis não vêm de "Deus", mas dos humanos, e afirmar o contrário não é um tributo, mas uma ofensa ao ser humano, à sua inteligência e sua razão.<br /><br />Tentar estender a nossa moral à natureza implica reconhecer, de um lado, nossa condição de IGUALDADE, de outro, nossa DEPENDÊNCIA - pois sem a natureza nós não sobrevivemos - e, de outro, o nosso PODER de interferir nela e modificá-la de forma nociva. Assim, temos que usar com responsabilidade o poder que possuímos e nos abster de lançar mão de qualquer tipo de violência desnecessária contra a natureza (por "desnecessária" me refiro àquela que não é empregada na defesa da nossa sobrevivência IMEDIATA). Esta visão da ética implica deixar de abater, torturar, criar, comer e explorar animais. Por isso nós, veganos, devemos rejeitar qualquer discurso relativista que diga que o veganismo é uma questão de livre-arbítrio e opção individual. <strong><em>O veganismo é uma IMPOSIÇÃO ÉTICA</em></strong>.<br /><br />* O tabu do incesto, por exemplo, não existe apenas entre seres humanos. Bonobos, por exemplo, que têm uma sociedade matriarcal onde o principal meio de socialização é o sexo, têm como único tabu sexual a cópula entre mãe e filho do sexo masculino.<br /><br />* * * * *<br /><br /><span style="color:#ff0000;"><strong>OBS: Entrando de férias. Retorno em fevereiro.</strong></span>Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com8tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-63059506267411402292008-11-27T18:38:00.005-02:002008-12-22T23:02:41.517-02:00ANDA: Siga esta pegadaEntra no ar, amanhã, a Agência de Notícias dos Direitos Animais (ANDA), a primeira do gênero no Brasil. Será um espaço para congregar e difundir notícias relacionadas ao tema e tentar, assim, abrir mais espaço para o debate na grande imprensa. E o melhor de tudo: com enfoque abolicionista.<br /><br />A Agência nasce com poucos recursos mas muita força de vontade e dedicação de alguns voluntários. Tudo graças ao maravilhoso trabalho de Silvana Andrade, jornalista, vegana e abolicionista, idealizadora do projeto. PARABÉNS, SILVANA!<br /><br />A ANDA começou a tomar corpo no Encontro Nacional de Direitos Animais de março de 2008. Mais uma demonstração da importância do contato e do diálogo entre ativistas para criar um movimento mais forte e abrangente.<br /><br />Eu estou colaborando como editor de blog e na redação de um glossário de conceitos básicos relacionados ao tema de direitos animais.<br /><br />O endereço:<br /><br /><www.anda.jor.br>www.anda.jor.br<www.anda.jor.br>Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-47439579348636117952008-11-12T00:14:00.016-02:002008-11-12T18:43:37.963-02:00Notas Esparsas<div align="justify"><p><em>Bruno Müller</em><br /><br /><p>Sem tempo para elaborar um texto com o devido cuidado, essa semana vou fazer algumas notas curtas sobre assuntos que andaram pela minha mente nos últimos dias.<br /><br /><p><strong>Sadia</strong><br /><br /><p>Anda circulando pelo Orkut uma pesquisa de mercado para consumidores vegetarianos... Ao abrir a pesquisa, descobri que a empresa querendo conquistar esse nicho de mercado é não menos que a Sadia, aquela que cria animais para vender sua carcaça... Duas coisas me chamaram a atenção nas dicussões que a tal pesquisa suscitou nas comunidades. Primeiro que, ao ser confrontado com o fato de que muitos vegetarianos não compram Sadia, o homem que estava divulgando a pesquisa respondeu:<br /><br /><p>"E quanto a Sadia entrar no segmento veg é certo que vc´s não vão saber que o produto é da Sadia, pois terá outro nome devido a essa visão negativada de empresa matadora de animais." (Mantive a grafia original)<br /><br /><p>Não sei se isso foi um desafio, foi subestimar a inteligência do consumidor, ou foi um comentário sem intenção agressiva; mas até onde sei, a única forma da Sadia não estampar de forma gigantesca seu nome numa embalagem seria criar uma outra marca. No entanto, o nome do fabricante teria que aparecer, ainda que miúdo. O que não deveria escapar aos olhos de um vegano habituado a ler rótulos atrás de produtos de origem animal...<br /><br /><p>A segunda coisa que me chamou atenção foi que, embora muitos tenham questionado o fato de ser a Sadia a empresa conduzindo a pesquisa, muitos ainda não fazem tal questionamento, o que é deveras estranho, partindo de defensores dos animais. Veganismo não é só uma ação alimentar, é uma posição política, fundada no boicote. Comprar produtos vegetarianos que irão reverter lucros para a indústria da carne é incoerente e contraproducente. E é ingênuo achar que comprar produtos vegetarianos dessas empresas irá reduzir a demanda de produtos cárneos. Essa questão, por si, seria matéria para um texto mais longo. Fica para o futuro.<br /><br /><p><strong>Churrascaria: ir ou não ir?</strong><br /><br /><p>Questão aparentada da primeira... Já perdi a conta das vezes que ouvi falar de vegetarianos que vão às churrascarias: "Agora não é só um lugar pra comer carne! Tem buffet e diversas opções de salada!". Mas a carne continua sendo seu ganha-pão... Mostra, outra vez, uma visão equivocada da questão dos direitos animais. Não surpreende que a maioria desses exemplos que conheço seja de ovo-lacto-vegetarianos. Então, não posso chamá-los de incoerentes. Afinal, a sua dieta também mata seres sencientes. Com razão, porém, eles são questionados - e ridicularizados - por onívoros: "como assim, comer em churrascaria???". Não interessa o que você pediu. Seu dinheiro está financiando o verdadeiro negócio do estabelecimento: vender cadáver. O mesmo critério se aplica, aliás, à pizzaria. Estabelecimentos que sobrevivem diretamente da exploração animal deveriam ser totalmente boicotados pelos que se dizem "vegetarianos pelos animais". Os quais, por sinal, deveriam ser todos veganos. Quem ama, não mata. Mas se não é nosso dever amar os animais, respeitá-los o é, com certeza. Quem respeita, não mata.<br /><br /><p><strong>Matança ecológica</strong><br /><br /><p>Saiu no UOL e também foi comentado no Orkut: javalis selvagens, descendentes de indivíduos "importados" da Europa para iniciar uma criação no sul do Brasil (para comercializar sua carne) serão capturados e abatidos, no Paraná. O motivo? Eles comprometem o equilíbrio ecológico, ameaçam espécies nativas da fauna e da flora, e se reproduzem com rapidez, podendo haver superpopulação, pois não têm predadores naturais. A íntegra da notícia:<br /><br /><p><a href="http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2008/11/07/ult5772u1420.jhtm">http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2008/11/07/ult5772u1420.jhtm</a>.<br /><br /><p>Confrontado com possíveis objeções de sociedades protetoras de animais, o presidente do Instituto Ambiental do Paraná (IAP) disse se tratar de uma questão ambiental: "Nós não vamos causar qualquer tipo de sofrimento ao javali. Eles serão abatidos como qualquer animal de corte. Só não vamos ficar perdendo tempo com discussões inócuas". </p><p>Quanto ao primeiro argumento do ambientalista, trata-se daquilo que Tom Regan chama de "fascismo ecológico": a indiferença ao sofrimento individual em função do bem maior, que é o equilíbrio ambiental - mais ou menos como os fascistas sacrificavam seres humanos em prol do equilíbrio social e a manutenção do Estado. Quanto ao segundo argumento, "Eles serão abatidos como qualquer animal de corte", nada mais coerente com o fascismo ecológico acima descrito. Mas há alguma coisa de errada quando os ambientalistas adotam uma premissa fascista para a defesa de suas teses. Explicitam uma linha de raciocínio antropocêntrica e autoritária - exatamente as características que têm levado a humanidade e o planeta à ruína. Não consigo imaginar como vamos curar o planeta com os mesmos remédios que o deixaram doente em primeiro lugar. Quanto ao terceiro argumento, "são discussões inócuas", ele fecha com chave de ouro a explicitação do fascismo ecológico do presidente do IAP: sua opinião não está sujeita a questionamentos - PRINCIPALMENTE os de ordem ética, que são "inócuos": inúteis, sem sentido e sem efeito prático. É o típico discurso tecnicista que, em nome da racionalidade, desqualifica as críticas que tentam interpor objeções éticas a procedimentos que, tecnicamente impecáveis, deixam algumas vidas pelo caminho. A tecnocracia é, aliás, outro grande fator de destruição de vidas. Graças a ela, capitalismo e socialismo, irmanados no industrialismo, passaram a tratar rios, árvores e animais como recursos ao desenvolvimento e à riqueza material, e por isso apenas atribuídos de valor econômico - nenhum valor simbólico, ecológico ou, no caso dos animais, valor inerente. Com ambientalistas assim, estamos realmente bem servidos.<br /><br /><p>E, de novo, o pior da história foi ver vegetarianos defendendo a medida: pelo equilíbrio ambiental, pode! E, para variar, lançou-se mão do argumento da autoridade (só pode opinar quem entende do assunto) e para a falácia da obrigação de prover alternativas. Ora, não sou biólogo. Se eu sugerisse uma solução, seria pior: estaria me expondo ao descrédito. Porém, questões ÉTICAS não podem, por definição, ser tratadas como questões técnicas. Pois a ÉTICA é uma questão que atinge a todos os indivíduos e a todas as sociedades.<br /><br /><p>Outra lição do caso é que o que parece um beco sem saída evidencia os limites do nosso paradigma de pensamento - ético e ecológico. Se fizesse parte desse paradigma o respeito ao indivíduo, em primeiro lugar não nos passaria pela cabeça matar animais para solucionar o problema. Em segundo lugar, se não houvesse - ainda - soluções viáveis que não envolvessem o sacrifício, nós estaríamos buscando outra solução. Um exemplo disso? É muito mais racional testar a toxicidade de elementos químicos em seres humanos que em outros animais. Como todos concordamos que isto é antiético, eliminamos - desde a triste experiência do nazismo - esta opção, e automaticamente buscamos uma outra. Chegou a hora de deixar de considerar a matança de animais como opção também - seja por que motivo for.<br /><br /><p>A questão vai muito além do absurdo de matar animais, quando se deveria buscar uma outra forma de restaurar o equilíbrio ambiental - prejudicado não pelos javalis, mas pelos seres humanos que os trouxeram a uma terra estranha. A questão tem tudo a ver também com a filosofia política que deveria inspirar os ambientalistas - o respeito, o pluralismo, o individualismo - e aquela que, na verdade, inspira muitos deles - o tecnicismo, o autoritarismo, o organicismo. Trata-se da receita dos Estados policiais.<br /><br /><p><strong>Ainda a pena de morte</strong><br /><br /><p>Por fim, depois do último texto sobre a pena de morte, o assunto me voltou à cabeça por conta de dois casos.<br /><br /><p>O primeiro foi ao assistir ao documentário "Sicko", de Michael Moore, que cita vários casos de pessoas que foram deixadas morrer porque seus planos de saúde se recusaram a pagar pelo tratamento. Uma ex-executiva de um dos planos disse que, quanto mais recusas de tratamentos são feitas, mais recompensas os médicos recebem. São médicos e executivos que deixam pessoas morrerem, de doenças tratáveis, por pura ganância. São incapazes de empatia - são psicopatas. Eles matam de forma insensível, e aos montes. Em vez da cadeira elétrica (ou injeção letal), eles se tornam sujeitos respeitáveis, ricos, prósperos e poderosos.<br /><br /><p>O segundo foi lendo sobre um caso de tortura a um jovem pego fumando maconha em instalações militares. Todo ano aparecem casos de tortura e morte dentro das casernas, no Brasil. Muitas são praticadas contra soldados, cadetes, aspirantes, o que dissipa qualquer dúvida - fundamental para os conservadores - de que a morte tenha sido alguma espécie de aplicação da justiça (o que, como argumentei no texto anterior, nunca será). Até hoje ainda lutamos contra a memórias das torturas da ditadura militar. Nesse caso, essas pessoas são treinadas para matar e torturar. É de se esperar que, em algum momento, elas deixem de ter questionamentos morais sobre este ofício, fazem-no automaticamente, e até com prazer (basta ver ao filme "Nascido para Matar", de Stanley Kubrick). Nossa sociedade continua sem responder a isso com deve - pelo contrário, muitas vezes aplaude, afinal sequer aceitamos a filosofia dos direitos humanos por aqui.<br /><br /><p>Mas, ao contrário de criminosos "comuns", estes criminosos ninguém jamais questiona condenar à pena capital. Pelo contrário. Estamos longe de sequer conseguir enxergas estas pessoas como criminosas (no primeiro caso) ou de universalizar o repúdio a crime previsto em lei, punindo tais indivíduos de acordo com o crime que praticaram (no segundo caso). No entanto, tais crimes são igualmente hediondos, aberrantes, injustificáveis.<br /><br /><p>Não sou a favor da pena de morte nesses casos também. Como disse, não sou a favor dela em nenhum caso. Apenas gostaria de entender a razão para esta diferença de tratamento. O que explica essa diferença não é a natureza do crime, mas a posição política, social e econômica dos criminosos. E ainda há quem alegue que a criminalidade não é um problema social...</p></div>Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com2tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-76618106983643490842008-11-04T22:45:00.006-02:002008-11-12T01:35:34.617-02:00Princípio da igualdade de consideração de interesses e as suas implicações para o uso que os seres humanos fazem dos outros animais<p><div align="justify"><em>Cláudio de Godoy</em><br /><br /><p>Hoje gostaria de discorrer um pouco sobre o princípio fundamental da igualdade de consideração de interesses. Que, em miúdos, significa que interesses iguais ou semelhantes devem ser tratados de modo igual ou semelhante, independentemente de quem seja o titular dos interesses em questão. Certamente não é nenhuma lei da física, mas todos aqueles que se consideram minimamente civilizados deveriam se importar com sua aplicação racional. E para demonstrar que este princípio está longe de ser aplicado em toda a sua plenitude em nossa atual sociedade, nada melhor do que nos voltarmos para os direitos humanos.<br /><br /><p>O conceito universal de direitos humanos não comporta nenhum tipo de relativismo moral nem admite a menor concessão em nome da tradição, dos costumes e da emoção. Os direitos básicos à vida, à integridade física e à liberdade se aplicam a todos os seres humanos, independentemente de suas características individuais. No entanto, a observância destes direitos admite algumas exceções, como no caso em que uma pessoa ameaça violar qualquer um desses direitos e é devidamente impedida de consumar o seu intento pelos meios estritamente necessários, que podem inclusive resultar em sua morte, em ferimentos ou na perda de sua liberdade. Na verdade, o direito mais fundamental que possuímos e que não admite nenhuma exceção é o de não sermos usados instrumentalmente sem o nosso devido consentimento para satisfazer às necessidades alheias, mesmo se em alguns casos estas necessidades forem legítimas e se muitas pessoas se beneficiarem com o nosso uso instrumental. É por esta razão que a escravidão, o estupro, a pedofilia, a doação de órgãos não consentida e a vivissecção estão entre o que há de mais odioso.<br /><br /><p>E por que este direito básico se aplica a todos os seres humanos, sem nenhuma exceção? De acordo com o atual paradigma, este direito se aplica exclusivamente aos animais humanos devido ao fato de que somos os únicos a possuir agência moral, ou seja, podemos conceber, compreender e aplicar conceitos abstratos como os de direito e de justiça e somos plenamente responsáveis pelas conseqüências de nossos atos. No entanto, muitos seres humanos não são agentes morais, e nem por isso são menos merecedores do direito de não serem tratados como recursos pelos outros. Em alguns casos, a ausência de agência moral é temporária, como no caso de bebês e dos comatosos, mas existem vários exemplos de seres humanos que carecem permanentemente deste atributo. Para justificar o motivo pelo qual estes chamados casos marginais também teriam os mesmos direitos básicos que os seres humanos normais, costuma-se recorrer a um sofisma artificioso denominado argumento da normalidade da espécie. De acordo com este argumento, os casos marginais entre os seres humanos teriam direitos básicos porque pertenceriam a uma espécie cujos membros normalmente são agentes morais. Na verdade, o argumento da normalidade da espécie nada mais é do que um nome pomposo para discriminação, pois trata os indivíduos de acordo com o grupo ao qual eles pertencem ao invés de tratá-los de acordo com as suas características individuais. E podemos aplicar este mesmo argumento tanto para o bem como para o mal. Com certeza, todos nós somos favoráveis a instalações para deficientes físicos em locais públicos, mas de acordo com o argumento da normalidade da espécie, estas instalações deveriam ser abolidas, pois normalmente os seres humanos são capazes de andar sem ajuda. Também seria um absurdo considerar penalmente imputáveis doentes mentais que cometeram algum crime, mas de acordo com o princípio da normalidade da espécie, eles deveriam ser julgados como se tivessem plena posse da razão, pois normalmente os seres humanos são plenamente responsáveis pelos seus atos.<br /><br /><p>Na verdade, o próprio argumento dos casos marginais é irrelevante para se determinar a razão pela qual todos os seres humanos possuem direitos básicos, pois mesmo se todos os seres humanos fossem agentes morais, não seria esta a razão pela qual eles teriam estes direitos. Temos o direito à vida, à integridade física e à liberdade pela simples razão de que temos o interesse de continuarmos a viver, de não sermos feridos e de não sermos mantidos em cativeiro, mesmo se alguns de nós fossem momentânea ou permanentemente incapazes de conceber os conceitos abstratos de “vida”, “integridade física” e “liberdade”. E de acordo com o princípio da igualdade de consideração, fundamental no combate ao racismo e à discriminação sexual, estes direitos básicos não poderiam ser negados a nenhum ser humano e a nenhuma outra criatura capaz de ter os mesmos interesses, exceto em um contexto de legítima defesa. Do mesmo modo que os racistas e os machistas discriminam com base em características biológicas em questões onde estas características são completamente irrelevantes para defender privilégios inaceitáveis, o mesmo fazem os especistas ao desdenhar dos interesses básicos dos animais que tiveram a infelicidade de serem explorados pelos seres humanos.<br /><br /><p>O atual paradigma que rege as relações entre os seres humanos e os outros animais se baseia em uma construção social que deixou de ter qualquer respaldo científico desde a publicação da “Origem das Espécies”. Sua premissa fundamental é a da superioridade dos seres humanos sobre todos os outros animais. É claro que o termo “superioridade” pode ser empregado em um sentido mais específico, quando diz respeito a uma maior complexidade morfológica, habilidade, capacidade de empatia ou a um grau de adaptação a um determinado ambiente. Mas não existe superioridade alguma no sentido lato e todas as afirmações em contrário não pertencem à esfera científica. Fundamentalmente, esta “superioridade” se baseia no nosso poderio esmagador sobre todas as outras espécies. Só que o poder nem sempre caminha de mãos dadas com aquilo que é justo.<br /><br /><p>As nossas obrigações morais para com os outros animais são de ordem eminentemente negativa, ou seja, não deveríamos tratá-los como recursos à nossa disposição. Isso não significa abrir mão do nosso direito de existir como espécie. Ao exercer legitimamente o nosso direito à autodefesa, podemos matar tanto gafanhotos, mosquitos e leões quanto outros seres humanos. O que é bem diferente da utilização de ratos para a cura do câncer em humanos, pois, neste caso, o seu único “crime” é o de pertencer a uma espécie diferente, considerada “inferior” e descartável.<br /><br /><p>Atualmente, podemos viver perfeitamente sem consumir qualquer produto de origem animal e a abolição destes produtos também resultaria em benefícios adicionais à nossa saúde e à preservação do planeta. E mesmo se pudéssemos auferir imensos benefícios com o uso de animais não humanos em experimentos biomédicos, devemos ter em mente que já abrimos mão de benefícios ainda maiores por razões exclusivamente morais, que, no caso, seriam advindos da vivisseção humana, muito mais eficiente em termos estritamente científicos. Até mesmo em casos de extrema necessidade, como é o das pessoas que estão prestes a morrer na fila de espera dos transplantes de órgãos, jamais passaria pela nossa cabeça matar uma pessoa órfã com deficiência mental profunda para doar os seus órgãos a outra pessoa cuja vida supostamente teria “muito mais significado”.<br /><br /><p>Em resumo, todos aqueles que são capazes de ter sensações jamais deveriam ser usados exclusivamente como meios para satisfazer os fins alheios, pois a sua senciência é uma característica suficiente para que todos eles sejam um fim em si mesmo, independentemente do grau de utilidade que possam ter para os outros.</p></div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-92155041523553245082008-10-28T00:52:00.021-02:002008-11-12T02:49:18.813-02:00Contra a Pena de Morte<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgNF6A6BSWPHz_Dl3Z1We5DhG1jTeWOYlWJYCpTRgPOksGTXLvZ209begKmgT7ccKAblYzS_3tOppiwChT9lULbdCdjEZRU77RwVgwVKjX2r2iesmo3TQ8SrD6R7KTt8QN5FkXoYvpS9gM5/s1600-h/forca.jpg"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5262032822750044786" style="DISPLAY: block; MARGIN: 0px auto 10px; WIDTH: 213px; CURSOR: hand; HEIGHT: 320px; TEXT-ALIGN: center" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEgNF6A6BSWPHz_Dl3Z1We5DhG1jTeWOYlWJYCpTRgPOksGTXLvZ209begKmgT7ccKAblYzS_3tOppiwChT9lULbdCdjEZRU77RwVgwVKjX2r2iesmo3TQ8SrD6R7KTt8QN5FkXoYvpS9gM5/s320/forca.jpg" border="0" /></a><br /><p align="justify"><em>Bruno Müller</em><br /><br /></p><p align="justify">Causou-me espanto recente testemunhar uma discussão acerca da pena de morte entre vegetarianos, motivado pelo caso do seqüestrador que matou a ex-namorada, há cerca de duas semanas. Não vou tratar de nada específico a este caso, a despeito da mediocridade geral com o qual tem sido abordado. Vou tratar do tema geral – infelizmente recorrente em nosso país – da aceitabilidade da pena capital, que permeia também o círculo dos auto-proclamados defensores dos animais. Tal fato apenas confirma a falta de reflexão detida e rigorosa, por parte destes, sobre em que consistem os Direitos Animais.<br /><br /></p><p align="justify">Mas para tratar desse assunto, como de costume, temos que antes retroceder a outro conceito, o de Direitos Humanos. Na definição de um jurista norte-americano:<br /><br /></p><blockquote><p align="justify">Os direitos humanos são universais: pertencem a todo ser humano em toda sociedade. Eles não se diferem pela geografia ou história, cultura ou ideologia, sistema político ou econômico, ou estágio de desenvolvimento societal. Chamá-los de ‘humanos’ implica que todos os seres humanos os possuem, igualmente e em igual medida, em virtude de sua humanidade – independente de sexo, raça, idade; independente de alta ou baixa origem social, origem nacional, ligação étnica ou tribal; independente de riqueza ou pobreza, ocupação, talento, mérito, religião, ideologia ou outro tipo de comprometimento. Inferido da humanidade de alguém, os direitos humanos são inalienáveis e imprescritíveis; não podem ser transferidos, retirados ou renunciados; não podem ser perdidos por terem sido usurpados, ou pela falha de alguém em garanti-los. (HENKIN, Louis. <em>The Age of Rights</em>. New York-NY: Columbia University Press, 1990, pp. 2-3)</p></blockquote><p align="justify">Em resumo: Direitos Humanos são direitos que se referem a TODOS os humanos, independente de qualquer distinção. São Direitos possuídos em respeito a algo inerente à condição humana. Thomas Hobbes, o primeiro contratualista, diz que o contrato social surge para prevenir a guerra de todos contra todos e proteger o homem da morte violenta. John Locke fala que a primeira propriedade de um indivíduo é seu próprio corpo. Jean-Jacques Rousseau e Thomas Paine acusam a escravidão como contrária à natureza – ou seja, é errado transformar um ser humano em instrumento dos interesses de outro ser. Todos estes autores, exceto Paine, defendem a pena de morte; mas seus argumentos vão contra si mesmos, neste ponto, como pretendemos demonstrar – pois sua premissa é da universalidade dos direitos humanos. Quanto a Paine, este notável revolucionário inglês participou da Independência dos Estados Unidos, inspirou os famosos termos de sua Declaração que afirmavam o direito à liberdade e à busca da felicidade. Opôs-se à manutenção da escravidão e, depois, participou da Revolução Francesa, sendo eleito deputado da Assembléia Nacional Constituinte – apesar de ser estrangeiro; opôs-se também à condenação à morte do rei Luís XVI – oposição pela qual ele mesmo quase pagou com a vida. Paine, aliás, também escreveu sobre os direitos dos animais.</p><p align="justify">Daí se segue, em decorrência lógica, a pergunta: o que os seres humanos possuem de comum entre si (e de distinto aos demais seres) para serem merecedores desses tais direitos? E então percebe-se que sequer precisamos recorrer aos teóricos dos Direitos Animais para notar que que este elemento comum é a SENCIÊNCIA. Todos estes autores fazem referência indireta a ela. Ela aparece na questão do “medo da morte violenta”; na rejeição à escravidão como “contrária à natureza”; na afirmação de que todo indivíduo é senhor de si mesmo.</p><p align="justify">Desta breve análise fica claro que o argumento em defesa dos Direitos Animais caminha lado a lado com o argumento em defesa dos Direitos Humanos. Um defensor dos Direitos Animais tem obrigação moral e intelectual de ser um defensor dos Direitos Humanos. Por coerência, mas também para dar validade ao seu próprio argumento. Um defensor dos Direitos Animais que se coloque a favor da tortura, da pena de morte, da injustiça extrema (e, diria eu, inclusive de qualquer forma de exploração humana, e não apenas aquela manifesta na forma de escravidão) está adotando a mesma postura preconceituosa – especista – que critica na conduta humana com os demais animais.<br /><br /></p><p align="justify">Dentro desse universo, o que o debate da pena de morte comporta de específico? Os argumentos em favor da pena de morte são tão vagos que servem para qualquer discurso político ou religioso – não obstante seu evidente substrato conservador – por mais distintos que estes sejam entre si. Os conservadores em geral apóiam a pena de morte para casos de crimes violentos. Os “progressistas” radicais tendem a defender a pena de morte para o que chamam de “crimes contra o povo” – as revoluções sociais do século XX foram recheadas de processos e execuções contra grandes proprietários, líderes conservadores tirânicos, insurgentes “contra-revolucionários”, ladrões de dinheiro público. Regimes autoritários de todos os matizes costumam aplicar a pena de morte contra “traidores”, sejam eles espiões, dissidentes políticos, opositores ou apenas indivíduos que não adotam a ideologia oficial do Estado. Mas, geralmente, se trata apenas de uma forma de livrar-se de figuras indesejadas ou politicamente perigosas – afinal, Cuba e China têm pena de morte para crimes de corrupção, mas perdoem-me o ceticismo se eu me recusar a acreditar que não existe corrupção nas altas esferas de poder desses países. Em outras partes do mundo o adultério ainda pode ser o motivo para uma sentença de morte. O convívio social com uma adúltera pode ser tão insuportável e nocivo para certas culturas quanto é, para a nossa, o de um assassino violento. Para cada um desses casos, existe todo tipo de justificativa para tornar a medida justificável. Seria instrutivo pesquisar, por exemplo, o que disseram o regime cubano e seus defensores sobre a execução de três fugitivos no ano de 2003: um caso que aparece tão flagrantemente aberrante para os padrões liberais surge como uma medida necessária para proteger a Revolução Cubana, dado o estado de sítio em que ela vive diante do bloqueio econômico que enfrenta.<br /><br /></p><p align="justify">Daí, então, podemos nos perguntar: o que faz de um argumento em favor da pena de morte melhor que o outro? Porque seria aceitável executar um assassino, mas não uma adúltera? É, portanto, a pena de morte que mergulhar no terreno do relativismo, querendo criar situações hipotéticas para a aceitação do assassinato institucional – situações que violam as premissas básicas da proteção à vida como direito básico, e que não se enquadram nas – poucas – exceções lógicas à regra. Mas tal opinião vai além do relativismo – trata-se de instrumentalismo, de atribuir respeito ao indivíduo apenas enquanto ele está enquadrado às regras da sociedade – enquanto ele é ÚTIL. Um criminoso ou é inútil – pode ser descartado – ou é nocivo – deve ser eliminado. Trata-se de uma visão tipicamente fascista e bastante afeita à forma como nossa sociedade especista trata animas “inúteis” ou “nocivos”.<br /><br /></p><p align="justify">No Brasil este debate vem em função do problema da violência urbana, aliado a uma tradicional tendência política conservadora da população, o que mantém acesa a arcaica chama da pena capital, que felizmente tende a se extinguir em todo o mundo. No Ocidente, apenas dois países ainda não encerraram esse debate: Brasil e Estados Unidos. Não é de surpreender que seja a Europa, região onde mais se avançou na filosofia dos Direitos Humanos e das garantias sociais – embora também lá ambos sejam violados, especialmente no caso dos imigrantes – aquela que tenha os menores índices de violência do Ocidente. E também não é de surpreender que esses direitos só não sejam plenamente protegidos exatamente no caso dos imigrantes – justamente as maiores vítimas de exclusão naquele continente, e os mais expostos à violência.<br /><br /></p><p align="justify">A defesa da pena de morte como medida para a contenção da violência urbana certamente erra o alvo – de longe. Não vou me alongar muito nesse aspecto, pois como opositor da pena capital por princípio, seria contra ela mesmo que ela fosse comprovadamente eficiente – o que não é – e mesmo que ela fosse comprovadamente justa – o que jamais será.<br /><br /></p><p align="justify">A pena capital é injusta porque viola o princípio básico da proporcionalidade. Mesmo que o crime em julgamento seja um crime de morte, não é justo aplicar uma pena na mesma medida, tirando a vida do assassino. Em primeiro lugar, a morte certa, e patrocinada pelo Estado, é certamente uma atitude mais radical que a morte promovida pelo assassino, pois esta não tem respaldo legal, e pode ser prevenida, enquanto a segunda não pode ser revogada após pronúncia final da justiça, a não ser por perdão do mandatário (no caso dos Estados Unidos, o governador do estado e, depois, o presidente da República). Nesse caso, o governador ou presidente encontra-se claramente na mesma posição que teve antes o assassino sobre a vítima: poder de vida ou morte, por mero capricho de vontade. A diferença é que o aparelho de Estado está com um, e não com outro. O governador pode matar impunemente: uma clara situação de injustiça. Essa questão já foi brilhantemente abordada pelo romancista Fyodor Dostoievsky, há mais de um século:<br /><br /></p><blockquote><p align="justify">Matar quem matou é um castigo desproporcionalmente maior que o próprio crime. A morte por sentença é desproporcionalmente mais terrível que a morte cometida por bandidos. Aquele que os bandidos matam (...) ainda espera sem falta que se salvará, até o último instante. (...) Mas, no caso de que estou falando, essa última esperança, com a qual é dez vezes mais fácil morrer, é abolida com certeza; aqui existe a sentença, e no fato de que, com a certeza, não se vai fugir a ela, reside todo o terrível suplício, e mais forte do que esse suplício não existe nada no mundo. (...) Quem disse que a natureza humana é capaz de suportar isso sem enlouquecer? Para quê esse ultraje hediondo, desnecessário, inútil? (...) Não, não se pode fazer isso com o homem. (DOSTOIEVSKY, Fyodor. <em>O Idiota</em>. São Paulo: Editora 34, 2002 [1868]) </p></blockquote><p align="justify">Em segundo lugar, a pena de morte não é justa pela afirmação que carrega consigo: é impossível a sociedade subsistir ao lado de tal indivíduo, razão pela qual devemos nos livrar dele. Além de todo o substrato tirânico impresso nessa frase, que nos remete ao absolutismo do Antigo Regime, podemos simplesmente nos questionar o grau de verdade existente nela. Quantos são os indivíduos que realmente não têm condição de convívio social? E o que os leva a tamanho grau de sociopatia que nos torna imperativo excluí-los deste convívio? <p align="justify">É aqui que a questão social se impõe. E com ela, explicita-se ainda mais a condição intrinsecamente injusta da pena capital. Antes da violência gerar exclusão, por meio do aprisionamento ou extermínio, é a exclusão que gera violência, na grande maioria dos casos. A violência é um problema, antes de tudo, social, e como tal deve ser tratada. Social não apenas por fatores econômicos de exclusão, mas também por fatores culturais, políticos, éticos, psicológicos – famílias com caso de abuso físico e sexual, abandono, dentre outros males, são comprovadamente, formadoras de cidadãos passíveis de responder com violência no futuro – pois foi esta a linguagem que aprenderam desde cedo. Uma rápida avaliação sobre as populações carcerárias de qualquer parte do mundo explicita esse ponto: a sua imensa maioria é formada pelos estratos mais baixos da sociedade. São os indivíduos mais privados aqueles que mais recorrem à criminalidade e à violência. E, por “privados”, não me refiro apenas a bens materiais. Me refiro igualmente a proteção familiar, rede social, afeto, e outros elementos fundamentais para a saúde emocional de um indivíduo. É muito comum que assassinos em série, por exemplo, tenham sido eles mesmos vítimas de diferentes tipos de violência, na infância. Ou seja: uma vez a sociedade falhou em proteger este indivíduo. No momento em que ele, emocionalmente perturbado, reage de forma violenta, a sociedade reclama a vida que antes ela falhou em proteger. Daí, claro, os defensores da pena de morte vão alegar: estarei eu defendendo o “carinho” contra assassinos? Claro que não. Por acaso não me compadeço das suas vítimas? Claro que sim. O meu raciocínio quanto a isso é muito claro: não há justificativa razoável para o recurso a tamanha violência. Se a reação violenta do indivíduo é injustificável, mesmo diante dos males anteriormente sofridos, o mesmo vale para a reação do Estado. O Estado não pode se comportar como psicopata cujos rompantes ele quer evitar. Freqüentemente, porém, é justamente como psicopata que o Estado se comporta, razão pela qual não acredito nessa instituição; mas essa é outra discussão, e não precisamos esperar pelo fim do Estado para eliminar algumas das suas manifestações mais arcaicas, injustas, e abjetas – como é a pena capital. Uma das coisas que devemos aprender, como veganos, é isso: não esperar uma revolução social para mudarmos o que é possível.<br /><br /></p><p align="justify">Por outro lado, o caso do psicopata, do assassino em série, embora brandido com tanta esperteza pelos defensores da pena capital, é a minoria ínfima dos casos de crimes violentos. A maioria dos mesmos é praticada por pessoas que, com uma política inteligente de reinserção social, que inclua: atendimento psicológico, provisão de oportunidades de trabalho e estudo e educação humanista, poderia, em vez de mofar na cadeia ou jazer inerte na vala, retornar ao convívio social. Mais que isso: esses indivíduos, se tivessem acesso a tudo isso desde a infância, quase certamente não iriam recorrer ao crime. Utópico? No mundo de hoje, sim. Pois grande parte das atitudes violentas que testemunhamos são resultado das doenças e injustiças da sociedade. Isso não equivale a dizer, em outra jogada de esperteza dos reacionários, que todo pobre é um criminoso em potencial. Afinal, também existem os criminosos nascidos em berço de ouro – e estes, em geral, são mais perigosos, embora suas vítimas sejam anônimas, e por isso a comoção por eles causada é menor. Me refiro não apenas a crimes bárbaros, como o de queimar indivíduos vivos, por serem confundidos com moradores de rua - como aconteceu com o índio Galdino na cidade de Brasília. Os bem-nascidos cometem crimes talvez piores, sem serem perturbados: abuso de poder econômico, corrupção, exploração da mão-de-obra, negligência com a segurança no trabalho, dentre outros fatores que tiram mais vidas do que psicopatas ensandecidos, sem causar indignação nem levemente parecida. Quase todos estes crimes são subproduto da mesma disputa por poder e riqueza, que por sua vez geram injustiça e desigualdade, estimulando mais violência, num círculo vicioso – as exceções a isso são a minoria dos casos.<br /><br /></p><p align="justify">A solução verdadeira para a violência, portanto, está unicamente na transformação social que minimize ao máximo esse círculo vicioso. No caminho até lá, uma reforma penal também é fundamental. Se os criminosos forem concebidos como párias a serem retirados do convívio social, e não indivíduos portadores de direitos, naturalmente voltarão ao seu comportamento anti-social tão logo tenham a oportunidade - o índice de reincidência nos Estados Unidos e Brasil comprovam a falência do sistema carcerário. A reclusão deveria ser uma opção apenas em casos de crimes violentos – só a redução da superpopulação dos presídios já seria um passo fundamental, possibilitando disponibilizar mais recursos e concentrar profissionais no propósito da reinserção social, que deve ser o objetivo final da reclusão. O recluso não deve ser privado de seus interesses básicos, só por ter perdido – temporariamente – a liberdade. A cadeia deveria ser um intervalo para o retorno à sociedade, dentro de período pré-determinado, ao longo do qual deve-se tentar romper os condicionamentos que levaram à violência. A progressão da pena deveria, entretanto, ser mais rigorosa do que a legislação brasileira atual – e só acontecer quando houver genuíno fundamento para crer que não haverá reincidência - ou seja, atacando a raiz (social, psicológica, ou outra qualquer) do problema. Deve-se trabalhar para minimizar cada vez mais o risco da reincidência, mas também não se pode usá-la para a manutenção indefinida do encarceramento, ou para defender a pena de morte para o indivíduo que se supõe irrecuperável. Supor que o indivíduo é irrecuperável é adivinhar um crime que ainda não foi cometido (violando a presunção da inocência e o direito à segunda chance) e, portanto, punir com antecipação (algo muito parecido com a guerra preventiva de Bush): outra razão pela qual esta é intrinsecamente injusta e inaceitável. A razão final para isso é que ela é irrevogável – uma vez aplicada, não há retorno. E nenhum ser humano deveria ter esse direito de vida ou morte, poder divino pois, creia-se ou não em Deus, é este tipo de poder que as culturas atribuem aos seus deuses.<br /><br /></p><p align="justify">A defesa da pena capital nada tem a ver com Direitos Humanos. E, conseqüentemente, nada tem a ver com Direitos Animais. Pois ambos são direitos que devemos a algum indivíduo devido a algo inerente à sua condição – ou seja, que existe independente de qualquer ação externa. A leitura mais coerente do que concede direitos a TODOS os seres humanos opta pela única coisa que é comum a todos eles, e que, portanto, pode ser genuinamente classificada como “inerente”: a SENCIÊNCIA. Desse modo, todos os Direitos Humanos fundados na seciência – o direito à vida, à liberdade, à integridade física e psíquica – devem ser extendidos a todos os seres que possuem esses mesmos interesses – ou seja, todos os seres do mundo animal. O respeito a esses interesses básicos dos seres sencientes não é uma questão de mérito, é uma questão de direito inerente. Portanto, o debate sobre a pena de morte não pode ter lugar nos círculos abolicionistas. Aplicar o critério do mérito para o direito à vida humana seria, para nós, defensores dos Direitos Animais, mais uma vez bifurcar a aplicação de critérios: senciência, para animais não-humanos; mérito, para animais humanos. Trata-se de esquizofrenia moral digna de onívoros e ovo-lacto-vegetarianos. Além da clara incoerência e absoluta arbitrariedade dessa decisão, trata-se de restaurar o especismo no sistema. Uma jogada não só eticamente condenável, mas estrategicamente equivocada: repor o mérito na centralidade da atribuição de direitos, além de nocivo para os próprios seres humanos, é nocivo para os animais não-humanos, de quem tantos dizem não possuírem direitos por não poderem assinar contratos, fazer acordos de paz, aceitar preceitos morais ou compor belas sinfonias.</p>Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com1tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-83270597456455558202008-10-21T22:07:00.005-02:002008-11-12T01:33:50.919-02:00Da inevitabilidade dos danos incidentais como desculpa para continuar explorando os animais<div align="justify"><em>Por Cláudio de Godoy</em><br /><br /><p>Ao examinar as opções de sobremesas em um restaurante vegetariano, uma conhecida minha vegana se deparou com a ubiqüidade do mel em sua preparação. Ao sugerir aumentar o número de sobremesas veganas ao dono do estabelecimento e, subliminarmente, questionar o uso do mel em praticamente todas elas, ela se defrontou com o seguinte argumento: o número de animais mortos incidentalmente na produção de açúcar supera de longe o de abelhas mortas para a produção de mel. Ou seja, seria legítimo explorar seres sencientes caso a opção vegana fosse mais danosa em termos globais.<br /><br /><p>Por trás deste aparente dilema existem duas abordagens éticas distintas. Se nos preocupamos mais com o resultado global das ações dos agentes morais do que com as suas intenções e não reconhecemos a existência de direitos morais, adotamos uma ética conseqüencialista, onde o que importa é o resultado global dessas ações, independentemente dos meios pelos quais eles foram alcançados. Já em uma ética deôntica ou do dever, as ações dos agentes morais devem se basear na observância estrita de algumas normas, independentemente de suas conseqüências globais.<br /><br /><p>Voltando à justificativa levantada no primeiro parágrafo, as mortes causadas pela agricultura nada mais são do que uma velha desculpa de quem não quer abrir mão de produtos advindos da exploração animal. Se nossas fontes de alimento são atacadas, é óbvio que podemos agir em legítima defesa. Ou melhor, seria mais uma questão de conflito de interesses básicos, pois as “pragas” também estão legitimamente à procura de alimento. Como não podemos persuadi-las racionalmente a não "roubar" os nossos alimentos, temos que tomar alguma medida, de preferência a que cause o menor dano possível a elas. Há métodos melhores do que o uso de agrotóxicos para proteger as nossas plantações do ponto de vista destes animais, como o da agricultura orgânica, que inclusive reduziriam consideravelmente os danos incidentais, mas, em uma sociedade que usa deliberadamente seres sencientes como recursos, a sorte das "pragas" seria uma de suas últimas preocupações. Mas uma coisa é certa: violar deliberadamente os interesses de indivíduos sencientes em uma situação de conflito de interesses básicos é bem diferente de aprisioná-los, explorá-los e matá-los para usar os seu corpos como objeto.<br /><br /><p>E quanto às mortes colaterais de seres sencientes resultantes de nossas atividades cotidianas? Existe uma grande diferença entre causar um dano deliberadamente e causar um dano incidentalmente. No primeiro caso, temos a intenção explícita de violar um interesse alheio. No segundo caso, não temos a menor intenção de causar danos a ninguém, mas estamos cientes de que há uma grande probabilidade de que eles ocorram e de que é praticamente impossível evitá-los, pois, a não ser que nós moremos na estratosfera e nos alimentemos apenas de ar, a maior parte do espaço que ocupamos necessariamente é fruto da expulsão de outras criaturas de seu território e tudo aquilo que nós consumimos e descartamos na maioria das vezes causa danos a terceiros. Temos o dever de minimizar estes danos, mas, pelo menos com a atual tecnologia, é humanamente impossível reduzí-los a zero.<br /><br /><p>Na grande maioria das vezes, a pecuária é responsável por um número bem maior de mortes indiretas, pois, se for intensiva, implica na produção de grãos para alimentar os animais que poderiam ser consumidos diretamente por muito mais pessoas, e, se for extensiva, exige uma superfície bem maior de pastagens para gerar a mesma quantidade de nutrientes que poderia ser produzida em uma superfície bem menor com o cultivo de vegetais. Mas mesmo se a criação de animais causasse menos danos colaterais do que a agricultura, ainda assim teríamos o dever de não usar nenhum indivíduo senciente como recurso, pois os deveres diretos sempre se sobrepõem aos deveres indiretos em uma ética baseada no dever. É o que se verifica no caso das abelhas: teríamos que preferir consumir uma quantidade de melado de cana cuja produção causou a morte de milhares de indivíduos ao invés de explorar deliberadamente as abelhas para a obtenção de seu mel.</p></div>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-63276081924345258332008-10-07T18:29:00.007-03:002008-11-12T01:32:10.860-02:00O Poder que o Individuo Tem de Mudar o Mundo<p class="MsoNormal" align="justify"><span style="FONT-STYLE: italic">Bruno Müller</span><br /></p><p class="MsoNormal" align="justify"><?xml:namespace prefix = o /><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" align="justify">Essa é uma velha discussão: qual o papel do indivíduo na história? Em uma de suas mais célebres frases, Karl Marx afirma, em <i>O 18 Brumário de Luís Bonaparte</i>: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Tal afirmação geralmente é percebida como a acepção de que os indivíduos estão submetidos a estruturas e relações pré-existentes, das quais não podem escapar. Levado ao extremo do estruturalismo, tal concepção nega ao indivíduo toda e qualquer possibilidade de interferir sobre a realidade e libertar-se dos condicionamentos, tese que ganhou força no século XX sob a denominação de “morte do indivíduo”.</p><p class="MsoNormal" align="justify"><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" align="justify">Por outro lado, existem aqueles que vêm o exemplo de indivíduos como Napoleão Bonaparte, Vladimir Lenin, Adolf Hitler ou Mohandas Gandhi, e proclamam que indivíduos “extraordinários” podem mudar os rumos da história (seja qual for a conseqüência desse extraordinário).</p><p class="MsoNormal" align="justify"><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" align="justify">Na verdade, uma análise da excepcionalidade de certos indivíduos apenas reforça a tese de que “uma andorinha não faz verão”. Qual seria a capacidade de Adolf Hitler liderar um extermínio em massa de judeus se não houvesse um anti-semitismo amplamente disseminado na sociedade alemã, combinado com a percepção de que os judeus eram uma minoria privilegiada? Como Napoleão poderia liderar os exércitos da França, sendo ele um humilde plebeu, nativo da ilha da Córsega, apenas 10 anos antes, em 1789, quando apenas aristocratas poderiam ser oficiais do exército? Como Lenin poderia ter liderado uma revolução social na Rússia, se o czarismo não tivesse mergulhado esse país na miséria e numa guerra imperialista inútil para a maioria da população? Qual teria sido o sucesso da pregação de Gandhi por resistência pacífica e desobediência civil se, em vez de indiano, ele fosse alemão ou inglês? A habilidade desses homens, indiscutivelmente talentosos, consistiu em captar com precisão o espírito da época, e usá-lo em seu próprio proveito, ou das teses que defendiam. Naturalmente, esses exemplos mostram que o indivíduo pode sim, fazer diferença, mas num nível sutil e dentro dos limites impostos pela cultura, pelas estruturais sociais, pelo contexto histórico e geográfico.</p><p class="MsoNormal" align="justify"><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" align="justify">No entanto, se verificarmos o tanto que estes e outros indivíduos conseguiram operar nas suas sociedades, veremos que as mudanças promovidas por grandes líderes são, via de regra, superficiais. As estruturas apenas mudam por um processo histórico longo. Nenhum deles transformou a estrutura de poder, a forma de pensar das sociedades que lideravam – mesmo aqueles que assim desejavam. O máximo que os líderes políticos conseguem fazer é agir como artífices de uma mudança que já se delineava no horizonte.</p><p class="MsoNormal" align="justify"><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" align="justify">Isso implica dizer que, de fato, nenhum indivíduo tem o poder de mudar a realidade? Não. Geralmente limita-se o debate sobre o papel do indivíduo na história à ação dos “grandes homens”, dos “grandes líderes”. A multidão, mesmo para os supostos defensores do homem comum, é formada por uma massa amorfa, que navega inconsciente das forças históricas à sua volta. O indivíduo não é nada sem a coletividade, costumam dizer essas pessoas. A sociedade só muda coletivamente. Mas, calma... E a coletividade, o que é? A coletividade pensa, vive, sofre, sonha?</p><p class="MsoNormal" align="justify"><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" align="justify">A coletividade nada mais é do que um aglomerado de indivíduos. É o indivíduo, não a nação, a etnia ou a família, o núcleo central da sociedade. Pois é o indivíduo que pensa, vive, sofre e sonha. Não foi Lenin, mas os indivíduos russos que revolucionaram a Rússia. Não foi Gandhi, mas os indivíduos indianos que tornaram a Índia independente. Portanto, qualquer sistema social que não leve em consideração os interesses básicos, a integridade física e psíquica de TODOS os indivíduos é inerentemente injusto. Não basta que essa consideração esteja proclamada verbalmente – quase todos os sistemas de crenças precisam alegar que se preocupam com todos os indivíduos. De outra forma, estariam fadados ao fracasso. Me refiro às conseqüências concretas, para os indivíduos, da aplicação desses sistemas de crenças. É aqui que a maioria das ideologias falham, até porque todas elas estão sujeitas a lacunas. É aqui também que devemos verificar quem deve ter prioridade: se são os indivíduos que devem se ajustar às idéias, ou se são as idéias que devem se ajustar aos indivíduos, como eu acredito. Não apenas por questões de princípios, mas igualmente porque nenhuma mudança imposta de cima pra baixo é duradoura. Há uma mudança muito mais profunda, e muito mais sutil, que nenhum Napoleão, nenhum Hitler, nenhum Lenin, nem mesmo um Gandhi é capaz de liderar. Essa mudança é uma mudança social, sim. Mas dela depende uma mudança de consciência.</p><p class="MsoNormal" align="justify"><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" align="justify">Não é a coletividade abstrata que transforma a sociedade. São os indivíduos que, coletivamente, mudam a sociedade. Essa mudança não é coordenada nem precisa ser articulada verbalmente. Mas depende de uma transformação de consciência. Foi assim que, ao longo do tempo, os privilégios de nascimento e a idéia de que há seres humanos superiores a outros têm se tornado insuportáveis, após terem sido considerados com realidades naturais por séculos. E é assim que será com o reconhecimento dos animais não-humanos como portadores de direitos inerentes e invioláveis, direitos esses derivados tão somente de sua condição de seres sencientes.</p><p class="MsoNormal" align="justify"><o:p></o:p></p><p class="MsoNormal" align="justify">O caminho é árduo, entretanto. Pois o ser humano teme as mudanças como um desafio à sua identidade e à sua estabilidade, porque teme que a mudança comprometa, em última instância, sua própria integridade. Por isso, é mais fácil, mais cômodo e mais seguro manter tudo como está. É prático, atraente, e aparentemente convincente, alegar que “uma andorinha não faz verão”. Uma, não; mas muitas, sim. E é nisso que devemos pensar, quando confrontados com o desafio da transformação social. O desafio da libertação animal – humana e não-humana. Não é suficiente justificar nossa acomodação, supondo que nossa atitude desaparecerá numa multidão de conformismo: afirmar que um vegano não faz diferença. Pois são as pequenas e imperceptíveis atitudes individuais que põem a história em movimento, abalam as estruturas dominantes e transformam a realidade de forma duradoura e permanente – pois uma vez posta em movimento, a história não volta atrás. A mudança social passa necessariamente por duas fases: tomada de consciência e a coragem de agir em conformidade com ela. Para os animais, isso significa: promover os seus direitos, respeitá-los, boicotar e combater a exploração em todas as suas formas. Não podemos, portanto, fugir à responsabilidade que traz o despertar da consciência. Pois não é O indivíduo, mas são OS indivíduos que podem romper com a realidade de dominação e exploração que resume a experiência humana e promover um mundo verdadeiramente livre, não apenas para toda a humanidade, mas para todos os animais do mundo.</p>Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com3tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-22003079506388142552008-09-29T18:49:00.004-03:002008-10-07T18:28:46.471-03:00Direitos Animais: por que são tão duros de engolir?<p><span style="font-style: italic;">Cláudio de Godoy</span>*<br /><br />Muitas vezes, as discussões sobre direitos animais não chegam a lugar nenhum, pois sua essência não costuma ser compreendida de imediato para quem nunca havia pensado sobre isso. Conceitualmente, a idéia de estender nossos horizontes morais a outras espécies de modo coerente com os princípios que já adotamos não é uma das questões mais complexas que existem, mas as barreiras psicológicas são gigantescas e intimidadoras. Sem falar nas de ordem culinária.<br /><br />A raiz de qualquer pensamento ético é emocional e reside em nossa capacidade de nos colocar no lugar dos outros. Mas todo sistema ético que se preze deve se basear na razão e necessariamente seguir os princípios da universalidade, generalidade e imparcialidade. Em miúdos: todos os agentes morais devem ser capazes de compreender por que uma determinada ação é certa ou errada, as mesmas regras devem ser aplicadas em situações semelhantes e, o mais importante, deve-se analisar as conseqüências de uma determinada ação do ponto de vista de todos aqueles que são por ela afetados.<br /><br />Apesar de toda a costumeira conversa fiada sobre a suposta perda de nossa humanidade ao nos igualarmos aos “bichos”, a discussão sobre direitos animais provoca tamanho ultraje por um dos motivos mais comezinhos: a ameaça que ela traz a um dos nossos prazeres mais caros. Um autor americano, Michael Pollan, chega a comparar o vegetarianismo à abstinência sexual. Um exemplo clássico: quando se discute o uso de cobaias para se encontrar a cura dos males que afligem a humanidade, a imensa maioria dos defensores desta prática alega que jamais sacrificaria a vida de animais se houvesse uma opção viável para se chegar ao mesmo resultado nas pesquisas. Mas, a partir do momento em que são informados de que uma dieta isenta de produtos de origem animal pode ser totalmente saudável e segura, o mesmo princípio passa a não valer, pois o estômago começa a interferir no funcionamento do cérebro e começam a pipocar argumentos como o da cadeia alimentar: se o leão come gazelas, por que diabos não podemos comer o nosso bife? Alegamos que temos o direito de usar os animais não-humanos como cobaias pelo fato deles serem supostamente inferiores a nós, mas, quando convém ao nosso paladar, justificamos o fato de os comer igualando-nos a animais carnívoros que não poderiam agir de outro modo. Ou seja, para justificar os nossos prazeres à mesa, não há problema algum em sermos contraditórios e em assumirmos a nossa própria animalidade. Neste caso, a moral não passa de um subterfúgio que os vitoriosos criam para universalizar a posição que lhes convém. Sem contar que este tipo de comparação ressuscita a velha falácia naturalística, ou seja, a de que tudo aquilo que é natural seria moralmente correto. Se seguíssemos este preceito à risca, deveríamos, como bons mamíferos, legitimar a supremacia dos machos sobre as fêmeas, que é a regra entre esta classe de animais.<br /><br />Toda a discussão sobre direitos animais pode ser resumida em uma única pergunta: que característica moralmente relevante todos os seres humanos possuem para ter o direito de não serem tratados como objetos que nenhum outro animal possui? É bom observar que inteligência, raciocínio lógico, domínio da linguagem simbólica, compreensão do significado de justiça e de direitos e grau de afeição que despertam não são medidas de direitos básicos. Todos os seres humanos têm o mesmo direito em igual medida de não serem usados como objetos independentemente de terem ou não estes atributos. Capacidade de fazer escolhas morais nunca foi um pré-requisito para a posse de direitos básicos.<br /><br />Na verdade, este direito de não sermos usados como objetos se deve única e exclusivamente ao fato de que somos sencientes, ou seja, somos capazes de ter sensações e, conseqüentemente, temos consciência daquilo que acontece com os nossos próprios corpos e do que se passa à nossa volta. Em suma, nos importamos com aquilo que acontece conosco. Mesmo os comatosos podem apresentar um grau de consciência mínima. Também devemos respeitar aqueles que se encontram em estado vegetativo persistente, pois futuramente pode haver um meio de se reverter o seu quadro. Mas no caso de morte cerebral, o ser humano em questão deixa de ser alguém e os seus órgãos poderão ser usados para salvar a vida de outras pessoas.<br /><br />Como boa parte dos outros animais também é senciente, a única razão pela qual tratamos casos semelhantes de modo diferente se deve exclusivamente ao fato de que eles não pertencem à nossa espécie. Ou seja, discriminamos indivíduos que têm exatamente os mesmos interesses básicos do que nós em virtude de uma característica biológica irrelevante para este caso. Por esta razão, a analogia do especismo com o racismo e com o sexismo é perfeitamente válida. Isso de modo algum significa que quem é especista necessariamente é um racista ou um sexista em potencial. Uma pessoa pode ser racista e, ao mesmo tempo, ser a favor da igualdade dos sexos.<br /><br />É claro que os outros animais jamais poderão pertencer verdadeiramente à nossa sociedade, apesar de muitos viverem entre nós em uma situação de sujeição e dependência. Não podemos nos sentar para negociar com os ratos para que não se proliferem a torto e a direito pelas nossas cidades nem com os gafanhotos para que não ataquem as nossas lavouras. Nestes casos, existe um conflito de interesses básicos, pois estes animais estão lutando por sua sobrevivência tanto quanto nós. Se eles ainda representarem uma ameaça mesmo depois de tomadas todas as devidas medidas sanitárias e ecológicas de controle, poderemos tomar as medidas que forem necessárias para a preservação de nossa saúde e de nossos alimentos, sempre procurando causar o menor dano possível a estes animais, pois todo ser senciente deve ser respeitado na medida do possível. Também não podemos persuadir aquele Pit Bull da esquina, que é fruto da eugenia que perpetramos com as outras espécies, a não nos atacar. Neste caso, temos todo o direito de tomar as medidas que forem estritamente necessárias para nos livrarmos de seu ataque iminente. A legítima defesa é um princípio que aplicamos sem o viés especista, pois é igualmente válida se um leão ou um outro ser humano nos atacar.<br /><br />Para finalizar, a afirmação de que o uso dos outros animais como objetos é chancelado pela atual legislação é irrelevante em uma discussão sobre se este uso é eticamente condenável ou não. Direitos legais não são sinônimos de direitos morais. Não podemos nos esquecer de que a escravidão já foi perfeitamente legal e de que colaborar com a fuga de escravos alheios era crime. A única razão pela qual a “estrada de ferro subterrânea” foi bem sucedida nos Estados Unidos de meados do século XIX foi a de que boa parte da população dos estados nortistas abominava a escravidão. O que está longe de acontecer em nossa atual sociedade com relação ao uso de indivíduos sencientes não-humanos como objetos, que é visto como a coisa mais normal do mundo. O nosso trabalho deve ser necessariamente educacional e não-violento, tanto por motivos estratégicos quanto por razões de ordem moral, pois os seres humanos que colaboram e se beneficiam com esta exploração não deixam de ser animais e, na maior parte das vezes, não fazem isso por mal, apesar do grau inimaginável de violência que é deliberadamente impingido a bilhões de animais. Devemos ser coerentes e aplicar em toda a ocasião o princípio de que os fins não justificam os meios. Afinal, quase ninguém foi criado como vegano desde o nascimento. No futuro, esperamos que isso seja a norma ao invés da exceção.<br /><br /><span style="font-weight: bold; color: rgb(255, 0, 0);">*Prezados leitores. A partir dessa semana, teremos um escritor convidado, Cláudio de Godoy, que irá postar junto comigo, neste espaço, em semanas alternadas.</span><br /></p>Unknownnoreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-33821602669827032852008-09-15T11:04:00.014-03:002009-08-19T00:31:45.029-03:00Sacralização da Vida<a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj1qfjOtI358mXraHlrsjtT4FnJgrF-Endh9GtnujkoMeUT9JUCDex1ZGYbOKPeAyXo7Rx02l2AY7ossAQteZ5i47mUC9s-k0j4s_c3Cq0lxrpV3PHf1UPW193gecJj5mWoj0uNEdjnvEpZ/s1600-h/Retangulo+aureo.jpg"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5246266439250938162" style="cursor: pointer;" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEj1qfjOtI358mXraHlrsjtT4FnJgrF-Endh9GtnujkoMeUT9JUCDex1ZGYbOKPeAyXo7Rx02l2AY7ossAQteZ5i47mUC9s-k0j4s_c3Cq0lxrpV3PHf1UPW193gecJj5mWoj0uNEdjnvEpZ/s320/Retangulo+aureo.jpg" border="0" /></a><span style="font-style: italic;">Retângulo áureo...</span><br /><br /><br />Freqüentemente os defensores dos direitos não só dos animais, mas também dos seres humanos, são confrontados com críticas que têm pouco efeito prático, mas que pretendem-se de cunho desmoralizante: desqualificar o postulante de um determinado princípio, ou desqualificar o princípio em si. Já vimos alguns exemplos desse tipo. Em geral, essas críticas partem do pressuposto, como vimos aqui, de que o princípio é falso, ou hipócrita, ou utópico, e portanto não pode nem deve ser adotado como regra geral.<br /><br />Sendo que o princípio básico dos adeptos dos direitos fundamentais (humanos e não-humanos) é, necessariamente, a VIDA, é comum, e até compreensível, que os relativistas e hegemonistas, cedo ou tarde, venham com essa afirmação: "que a vida não é um valor que possa ser generalizado". Para os antropocentristas, logicamente, a questão recai (novamente) na questão da racionalidade: apenas o ser humano (supostamente) valoriza a sua vida e deve, portanto, tê-la preservada. Para os críticos da noção de direitos humanos, em geral relativistas, a coisa fica ainda pior: nem sequer para o ser humano a vida é um valor generalizável. Essa fórmula geralmente vem acompanhada de um conceito, o qual os abolicionistas e humanistas devem todos ter ouvido <span style="font-style: italic;">ad nauseam </span>(apesar de seus críticos se julgarem tão alternativos): o da "Sacralização da vida".<br /><br /><a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhS8-Hy_JIKzPHWV4FiFUm25UDHgDMBOMKJ3Zc5hif3avMyk8c9ButqRF0JTG4AyI991FwLm7bIrm_qt9dLu9u29wTqLWIPLXUcNPzgErJFTa8AHGKCkpjqB6j7_ZpYZc9N2KfCqZEov_E1/s1600-h/caracol.jpg"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5246266107727051202" style="cursor: pointer;" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEhS8-Hy_JIKzPHWV4FiFUm25UDHgDMBOMKJ3Zc5hif3avMyk8c9ButqRF0JTG4AyI991FwLm7bIrm_qt9dLu9u29wTqLWIPLXUcNPzgErJFTa8AHGKCkpjqB6j7_ZpYZc9N2KfCqZEov_E1/s320/caracol.jpg" border="0" /></a><span style="font-style: italic;">...proporção encontrada em diversas formas na natureza...</span><br /><br /><br />O que significa, e o que há por trás desse conceito? A idéia de "sacralização" significa que há algo sagrado, intocável. Que, para os abolicionistas (em relação aos animais não-humanos) e para os humanistas (em relação aos seres humanos) seria a vida. Por trás dele, há uma idéia de que a adoção desses princípios não passa de uma extrapolação, para o mundo leigo, de uma visão religiosa, e portanto, igualmente deslocada do mundo material e impossível de ser abrangida por ele em sua totalidade (uma vez que é impossível unificar toda a humanidade numa só religião), além de impositiva de uma moral particular. De modo geral, essa "sacralização" é identificada com o Cristianismo, para o qual, segundo algumas fórmulas, a morte é uma tragédia, evidenciada nos rituais fúnebres. E, a partir daí, um alvo fácil para céticos (em geral "revolucionários") e/ou "realistas" (em geral conservadores), prontos a nos acusar simultaneamente de ingenuidade, idealismo e teocratismo.<br /><br />Em primeiro lugar, gostaria de ressaltar que não há nenhuma precisão na associação entre Cristianismo e "sacralização da vida" (apesar do mandamento "Não Matarás"). Pelo menos se considerarmos exclusivamente o cristianismo institucionalizado - aquele que construiu estruturas de poder temporal, nos templos e nos palácios. Vejamos o caso do catolicismo. Para estes cristãos, o que era sagrado não era a vida, pelo menos não neste plano físico, mas a VIDA ETERNA. Um acréscimo que faz toda a diferença, pois desloca o fundamental não para trajetória completa do indivíduo, mas para o seu encerramento: o momento da morte. O que conta é, portanto, a salvação, a purificação, materializada no ritual da extrema-unção. Não quer dizer que os atos anteriores não contam - é por isso que existem os mandamentos, e o sacramento da confissão, para expiar os pecados. Mas tudo isso de pouco conta se, no momento final, o fiel negar a Deus. Se, ao contrário, no momento final ele for tomado de sincero arrependimento, sob os auspícios do Senhor, tudo lhe será perdoado, mesmo os mais torpes pecados, e ele ganhará os céus. O resultado dessa perspectiva está longe de ser inofensivo. Vertido em instrumento de poder, o Cristianismo passou a perseguir infiéis, e a purificá-los exatamente pelo recurso a uma "solução final": para o pecador renitente, apenas o sacrifício em nome da fé é redentor. Na Inquisição (o exemplo mais famoso, mas de modo algum o único), o herege ou infiel seria queimado vivo, pois o fogo o purifica dos pecados: perde-se a vida material, mas ganha-se a vida eterna. (Os relatos da conquista da América dão conta de que os índios condenados à morte que concordavam em converter-se ao Cristianismo não eram queimados, mas enforcados: o perdão espiritual não é acompanhado, necessariamente, pelo perdão material - apenas garante uma morte "cristã".)<br /><br />Em contraste, é sabido que todas as religiões e culturas tratam da questão do direito a vida e têm regras contra o assassinato. Essas regras podem variar, mas o princípio persiste. Isso por uma razão muito simples: se não há interdição do assassinato, a vida em sociedade torna-se impossível.<br /><br /><a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg6eR7R0_3VlBNRgupEb1LPTEYxwzhk_e9-OxNyt3MLaztzDIWLhFlWIQj81SI-bunqrXDWdqXeR6BbghIf8AQtcdWO1pdGqjCpkoBANsPo-q7MAbjugIxgNAfigmKmbRFfV5l8fimFobYK/s1600-h/davinci.jpg"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5246267499145465026" style="cursor: pointer;" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEg6eR7R0_3VlBNRgupEb1LPTEYxwzhk_e9-OxNyt3MLaztzDIWLhFlWIQj81SI-bunqrXDWdqXeR6BbghIf8AQtcdWO1pdGqjCpkoBANsPo-q7MAbjugIxgNAfigmKmbRFfV5l8fimFobYK/s320/davinci.jpg" border="0" /></a><span style="font-style: italic;">...inclusive no ser humano...</span><br /><br /><br />Claro, alguns defensores de animais - humanos e/ou não-humanos - de fato adotam a idéia de que a vida é "sagrada". Sem haver qualquer demérito nessa perspectiva eivada de religiosidade. No entanto, não deixa de ser instrutivo que a maioria dos defensores de animais que têm essa vinculação transcendental são, em geral, influenciados por certas religiões orientais - Budismo, Hinduísmo, Jainismo - e sua premissa da "não-violência" (Ahimsa). Que, por sua vez, segundo o historiador Rynn Berry, está na própria raiz da difusão do vegetarianismo e dos direitos animais no ocidente. Nada a ver, portanto, com o Cristianismo. Portanto, a "sacralização da vida" promovida pelos defensores dos animais nada tem a ver com uma moral cristã desproporcialmente distorcida e ampliada, pelo menos na maioria esmagadora dos casos. O princípio da não-violência, por sua vez, mesmo que tenha um substrato religioso, não pode ser imediatamente descartado em função disso, sem se avaliar os seus próprios méritos (como é, aliás, com qualquer ideologia, que é o que são, no fundo, todas as religiões).<br /><br />Restar-nos-ía ainda, entretanto, resolver por que não é tão fácil nos desfazer da "sacralização da vida", mesmo num contexto de relativização de valores e busca egoísta da satisfação, inclusive à expensa de outros indivíduos. Ora, a resposta para isso é muito fácil. Defendemos a vida não porque ela é "sagrada", mas porque ela é o que o indivíduo (humano e não-humano) tem de mais importante, de mais precioso. Pelo simples fato de que se não há vida, não há mais nada para postular. E, uma vez vivo, há que ser LIVRE para poder desfrutar de fato da vida que se possui. Sem Liberdade, a vida é uma dádiva inútil. Qualquer um que alegue se importar com animais (humanos e não-humanos) e, ao mesmo tempo, rejeita o tese da inviolabilidade da vida, está praticando a pior forma de hipocrisia. Não há respeito possível para com um indivíduo quando lhe negamos aquilo que lhe é mais importante: a vida, a liberdade e a integridade. O respeito torna-se um princípio inútil se admitimos "relativizar" as circunstâncias em que ele é aplicado. E isso fica muito claro ao analisarmos as tragédias que decorreram de ideologias políticas que, sob apelo humanistas, colocaram sua utopia acima dos indivíduos.<br /><br />Seja como for, o respeito à vida e à liberdade são, necessariamente, os pilares de nossa conduta com nossos semelhantes. Independente dos caminhos que alguém vislumbre para alcançar o ideal de uma sociedade justa, este alguém, se alega promover o respeito e a plenitude dos direitos animais (humanos e/ou não-humanos), deve partir destes dois pilares. Pelo menos neste plano físico. E, se existe outro plano, não cabe a ninguém dizer por outrem. E, seja em nome de qualquer ideologia, religiosa ou laica, ninguém pode arrogar-se o direito de decidir sobre a interrupção de vidas que não a sua própria.<br /><br /><a onblur="try {parent.deselectBloggerImageGracefully();} catch(e) {}" href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiqUN0eQzGSxZ2qRKWT-LIMO566206JTZkZtkTMcT-9Yc3uCcwqtkMkQ7bZ_TyNXy9YIKNwyVWsy60pWQXWlV0_v4qvbK9U9ehzpS7Fvp69bEja_ji9uw9l3r_VvHZCqFbE9oYRpiLPdSE7/s1600-h/escadaria.jpg"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5246267385480512866" style="cursor: pointer;" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiqUN0eQzGSxZ2qRKWT-LIMO566206JTZkZtkTMcT-9Yc3uCcwqtkMkQ7bZ_TyNXy9YIKNwyVWsy60pWQXWlV0_v4qvbK9U9ehzpS7Fvp69bEja_ji9uw9l3r_VvHZCqFbE9oYRpiLPdSE7/s320/escadaria.jpg" border="0" /></a><span style="font-style: italic;">...e em suas obras.</span><br /><br /><br />* * * * *<br /><br /><span style="font-weight: bold; color: rgb(255, 0, 0);">PREVISÃO PARA A PRÓXIMA POSTAGEM: 29 de Setembro de 2008.</span>Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-34894197239035190702008-09-03T01:01:00.011-03:002008-10-28T01:40:11.368-02:00Libertação em MovimentoHoje gostaria de falar sobre outro aspecto das críticas dos defensores da exploração animal: a suposta impossibilidade de se alcançar a abolição da exploração animal, o irrealismo e o ridículo de nossos objetivos.<br /><br />Geralmente esse raciocínio se desdobra nos seguintes argumentos:<br /><br />1. A imensa maioria das pessoas não está disposta a se tornar vegana.<br /><br />2. O que nós fazemos não passa de ilusão - nunca poderemos alcançar um estágio de abolição porque simplesmente é "impossível" acabar com a exploração animal: ela está em todos os lugares.<br /><br />3. Sendo impossível, inviável e utópico alcançar a abolição, o mais lógico, o mais prático e mais "coerente" (na visão deles) para os defensores dos animais seria defender medidas de bem-estar: prover conforto e saúde, administrar anestésicos, abater "humanitariamente", etc.<br /><br />Daí faz-se um adendo para salientar a impressionante convergência de raciocínio entre exploradores e bem-estaristas: a linha de argumentação é praticamente idêntica. A única diferença é que os bem-estaristas substituiriam o "eternamente impossível" pelo "momentaneamente impossível" para, a partir daí, defender absolutamente os mesmos preceitos: se não há como abolir, vamos torná-la menos cruel.<br /><br />Os "exemplos" da impraticabilidade do veganismo são inúmeros: a carne e outros alimentos de origem animal são essenciais e apreciados pela imensa maioria dos seres humanos; a abolição dos testes em animais impediria o avanço da ciência médica; todas as empresas testam produtos em animais e as que alegam não fazê-lo apenas estão usando de uma estratégia de marketing para atrair um determinado público; os diversos ramos da exploração animal geram renda e emprego e seu abandono resultaria numa catástrofe para a economia e o bem-estar da humanidade; animais domesticados ou mantidos em zoológicos precisam de carne de outros animais abatidos para sobreviver. Conclusão: libertação animal não passa de um delírio de mentes adolescentes, mimadas, rebeldes e doentias.<br /><br />Daí, claro, podemos passar à realidade dos fatos.<br /><br />Em primeiro lugar, como já argumentei em parte na postagem <a href="http://sereslivres.blogspot.com/2008/08/questao-de-coerencia.html">"Questão de Coerência"</a> , certo está que muitos aspectos da exploração animal são difíceis, senão impossíveis, de evitar no mundo contemporâneo. É preciso, porém, uma boa dose de ignorância histórica para assumir que necessariamente será assim para sempre (e de cretinismo para supor que a impossibilidade da plenitude neutraliza e desmerece a importância de fazer o máximo possível). A humanidade, suas sociedades, suas tradições, estão em permanente transformação, e uma após a outra as pretensões de imutabilidade se fizeram em pó, a despeito da arrogância dos portadores de diversos impérios, regimes, práticas e ideologias que se supunham eternos. Os veganos contemporâneos são, neste sentido, desbravadores, abrindo caminhos, mostrando novas formas de ver e fazer, certamente incompletos no contexto geral, mas em progresso constante - e eu diria, inclusive, rápido - para viabilizar que, no espaço de algumas gerações, o estilo de vida 100% vegano seja uma realidade ao alcance de boa parte da população humana, ao menos aquela com acesso à educação e informação, e com razoável controle sobre seus meios de vida - seja no espaço urbano, seja no espaço rural. Vejam bem, eu disse "ao alcance", não disse que todas as pessoas nessas condições serão veganas - quando chegarmos no hipotético estágio de universalização do veganismo entre esse grupo social, certamente estaremos em condições de dar um passo adiante para a eliminação total da exploração animal - o que, para dissipar quaisquer dúvidas, sempre afirmo que precisa ocorrer de forma não-violenta, pois de qualquer outra forma será eticamente condenável e incoerente.<br /><br />Podemos fazer uma refutação ponto a ponto: a carne e outros alimentos de origem animal NÃO são essenciais, e muitos dos que antes tanto os apreciavam foram capazes de racionalmente se dar conta da irracionalidade de infligir sofrimento desnecessário por uma dose de prazer fugaz - além de tudo tão facilmente substituído, pois a culinária vegetariana estrita está longe de restringir-se à salada e ser desprovida de sabor. A abolição dos testes em animais não só não impediria o progresso da ciência, como o estimularia, como qualquer desafio que se interpõe ao espírito criativo e inquisidor do ser humano; além do mais, são grandes as objeções de caráter estritamente científico à vivissecção, contando a luta antivivissecionista com o respaldo de um número ainda restrito, mas respeitável de cientistas. Os testes em animais na indústria JÁ ESTÃO EM FASE DE ABOLIÇÃO e é apenas uma questão de tempo até que sejam totalmente abandonados, quiçá sem mesmo sequer dependermos de legislação para tanto; da mesma forma que a ciência, a economia humana apenas tem a ganhar com a abolição de uma prática ineficiente, concentradora de renda e poluente; o ser humano, inteligente e adaptável como é, certamente encontrará formas de viabilizar-se e reinventar-se; da mesma forma que a tecnologia, a abolição da exploração animal pode tornar-se uma oportunidade para impulsionar uma nova abordagem das relações sócio-econômicas, e - também da mesma forma que a tecnologia - só não o fará se as próprias relações humanas mantiverem-se assimétricas, desiguais, iníquas e injustas. No caso dos animais domesticados ou mantidos em zoológicos, a ciência da nutrição já avançou bastante, e certamente dispomos, hoje, de conhecimento, tecnologia e recursos para desenvolver rações veganas; isso apenas ainda não é feito porque a mentalidade dominante não se questiona sobre as implicações éticas da alimentação de animais domésticos - afinal, eles mal se questionam sobre as implicações éticas da própria alimentação e do próprio estatuto de "animal doméstico", fatores que NECESSARIAMENTE vêm antes de se obter consciência sobre o absurdo moral de matar alguns animais para alimentar outros. Mesmo muitos vegetarianos não fizeram essa transição - alguns acham que é uma "violação da natureza" de certos animais, esquecendo que enclausurá-los também é.<br /><br />Em suma, à medida que o número de veganos cresce, e eles se tornam mais visíveis, mais unidos e mais ativos, fatalmente as mudanças virão, seja por meio do mercado, seja por meio das mudanças na legislação.<br /><br />O que nos leva, aliás, ao segundo ponto: as evidências muito atuais dos progressos da luta pela abolição da exploração animal, a despeito da afirmação assoberdada de quem acha que não passa de mero delírio juvenil. Talvez alguém achasse em um tempo remoto que era impossível que negros, índios, estrangeiros ou mulheres pudessem ter os mesmos direitos que homens brancos. Aliás, na Europa querem tirar os direitos mais básicos dos imigrantes, e uma das desculpas é justamente dizer que "não é possível" uma Europa que garanta direitos a todos, prospere e seja pacífica ao mesmo tempo.<br /><br />Trata-se de uma típica chantagem de exploradores e detentores do poder, portadores da ideologia dominante, tentando afetar psicologicamente os adversários, desqualificá-los e à sua luta. Enquanto isso, nós pressionamos, ganhamos espaço, forçamos o debate, conseguimos pequenas concessões, e num futuro próximo teremos adeptos e poder para emplacar mudanças.<br /><br />Basta mencionar alguns exemplos. Casos como a proibição de animais em circos e da vivissecção são emblemáticos: quem imaginaria que poderíamos avançar nessa matéria, 50 anos atrás? E ainda assim, o debate avança. Mesmo que não tenhamos vencido, leis antivivissecção foram aprovadas no Rio de Janeiro e Florianópolis, antes de serem desfiguradas e vetadas. O simples fato de estarmos pondo as questões na agenda já indica uma auspiciosa mudança de ventos. A reação dos exploradores também não tardou - como se era de esperar - e os vivisseccionistas criam eventos, mesas redondas, publicam artigos, fazem lobby e canalizam recursos para defender seus interesses, seu meio de vida, sua visão de mundo e seu poder constituído - afinal, esta também é, principalmente, uma disputa por PODER. Estranho seria se não fosse assim! No entanto, a própria reação em si já significa uma vitória para nós: eles que antes tinham sua posição legitimada a priori, agora têm que se esforçar em convencer a sociedade de que seu ofício é legítimo, e que não pode ser de outro modo. Claro está que a pressão irá aumentar nos próximos anos, inclusive de dentro das universidades: o uso de animais vivos já está sendo abolido no ensino, e como mencionei, existem cientistas de respeito que se opõem ao modelo animal também na pesquisa. Também entre os estudantes o questionamento ético do uso de animais é crescente. Nesse mesmo perído, a União Européia já proibiu testes da indústria de cosméticos a partir de 2009, e na UE e América do Norte já existem selos que atestam que determinados produtos não foram testados em animais - um tipo de certificação que estamos tentando implementar aqui no Brasil.<br /><br />E é questão de tempo até chegarmos na pecuária. Esta semana já tivemos, num veículo de comunicação de massas de grande circulação, pela primeira vez, uma matéria tratando da controvérsia do abate humanitário e o embate entre abolicionistas e bem-estaristas:<br /><br /><a href="http://vista-se.com.br/arquivos/revistafolha.htm">http://vista-se.com.br/arquivos/revistafolha.htm</a><br /><br />Pode levar anos, e deverá levar MUITOS anos, mas chegaremos ao ponto de veicularmos seriamente nossa oposição à criação de animais para a alimentação e nos fazermos ouvir. Quando isto acontecer, os pecuaristas estarão na defensiva, como estão hoje os vivisseccionistas.<br /><br />Claro, foram apenas pequenos passos dados até agora. E absolutamente não está garantido que seremos vitoriosos, nem quando. A história é feita de progressos e retrocessos, contradições e conflitos. Mas é com pequenos passos que se começa uma longa jornada, e eu acredito que a história humana tende a caminhar para sistemas mais livres: sempre que surge a tirania, onde quer que se imponha, ela sempre é desafiada, e acaba sucumbindo. A liberdade e sua busca são condições <em>sine qua non</em> da existência. A causa abolicionista se move, e progride: lenta, mas continuamente.<br /><br />* * * * *<br /><br /><strong><span style="color:#ff0000;">PREVISÃO PARA A PRÓXIMA POSTAGEM: 16 de Setembro de 2008</span></strong>Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com0tag:blogger.com,1999:blog-1843383159816299275.post-9331490983376934162008-08-20T22:05:00.007-03:002008-09-06T21:10:37.718-03:00O Abatedor (Adaptação)<a href="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiP0orbBVtxt6TVhkaBcVa9oT4HB76jU1IpGWKxpjRwVmijUb7AnDOz0g3XghVi6TyGklK7MMN7aEjxR5kfrYRfqhqtTEhv7rnppaXwgbwGMeRDns_ouvFGuL1EyW-6iJQJHNjs7I24qE-U/s1600-h/isaac_bashevis_singer.jpg"><img id="BLOGGER_PHOTO_ID_5236774018829440690" style="DISPLAY: block; MARGIN: 0px auto 10px; CURSOR: hand; TEXT-ALIGN: center" alt="" src="https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiP0orbBVtxt6TVhkaBcVa9oT4HB76jU1IpGWKxpjRwVmijUb7AnDOz0g3XghVi6TyGklK7MMN7aEjxR5kfrYRfqhqtTEhv7rnppaXwgbwGMeRDns_ouvFGuL1EyW-6iJQJHNjs7I24qE-U/s320/isaac_bashevis_singer.jpg" border="0" /></a><br /><br /><p><em>Hoje vou postar uma adaptação de um conto de Isaac Bashevis Singer. Não fiz alterações no texto, apenas condensei-o para caber numa postagem.</em><br /><br /><p><em>Isaac Bashevis Singer (1902-1991) foi um judeu polonês, filho de rabino, que emigrou para os Estados Unidos em 1935, fugindo do anti-semitismo. Consagrou-se como contista. Escrevia em iídiche, idioma dos judeus da Europa central que combina elementos de hebraico, alemão e idiomas eslavos. Foi laureado com o Nobel de Literatura em 1978 e é considerado um dos maiores escritores de tradição judaica.</em><br /><br /><p><em>Bashevis Singer era também um adepto e entusiasta do vegetarianismo, que definiu como "a questão moral de nosso tempo".</em><br /><br /><p><em>Foi dele - um judeu - a famosa frase: "Em seu comportamento com os animais, todos os homens são nazistas".</em><br /><br /><p><em>A íntegra do conto pode ser encontrada na coletânea "47 Contos de Isaac Bashevis Singer", da Companhia das Letras.</em><br /><br />* * * * *<br /><br /><p><strong>O Abatedor<br /><br /><em>Isaac Bashevis Singer</em><br /></strong><br />Yoineh Meir devia ter sido o rabino de Kolomir. Seu pai e seu avô tinham ambos sentado na cadeira rabínica de Kolomir. Porém, os seguidores da corte de Kuzmir tinham assumido uma teimosa posição: dessa vez não iam permitir que um hassidista de Trisk fosse rabino da cidade. Subornaram um funcionário distrital e mandaram uma petição ao governador. Depois de demorada contenta, os hassidistas de Kuzmir finalmente conseguiram o que queriam e instalaram seu próprio rabino. Para não deixar Yoineh Meir sem uma fonte de rendimentos, nomearam-no abatedor ritual da cidade.<br /><br />Quando Yoineh Meir soube disso, ficou ainda mais pálido que o normal. Protestou que abater animais não era coisa para ele. Que tinha o coração mole; que não suportava a visão de sangue. Mas todo mundo se juntou para convencê-lo: os líderes da comunidade; os membros da sinagoga de Trisk; seu sogro, Reb Getz Frampoler; e Reitze Doshe, sua esposa. O novo rabino, Reb Sholem Levi Halberstam, também insistiu com ele para aceitar. Reb Sholem Levi, neto do rabino de Sondz, estava incomodado com o pecado de tirar o meio de vida de outrem, não queria que o homem mais novo ficasse sem sustento. O rabino de Trisk, Reb Yakov Leibele, escreveu uma carta para Yoineh Meir dizendo que o homem não pode ser mais compassivo que o Todo-Poderoso, fonte de toda compaixão. Quando se mata um animal com uma faca pura e com piedade, libera-se a alma que nele reside. Pois é bem sabido que as almas dos santos muitas vezes transmigram para os corpos das vacas, aves e peixes para se penitenciar de alguma ofensa.<br /><br />Depois da carta do rabino, Yoineh Meir cedeu. Tinha sido ordenado muito tempo antes. Então se pôs a estudar as leis do abate conforme explicadas no Natureza do boi, no Shulchan Aruch e nos Comentários. O primeiro parágrafo do Natureza do boi dizia que o abatedor ritual tem de ser um homem temente a Deus, e Yoineh Meir dedicou-se à Lei com mais zelo do que nunca.<br /><br />Yoineh Meir, pequeno, magro, rosto pálido, uma rala barba amarela na do queixo, nariz adunco, boca caída e olhos amarelos apavorados muito juntos, era famoso por sua religiosidade. Quando rezava, usava três pares de filactérios : os de Rashi, os do rabino Tam e os do rabino Sherira Gaon. Logo depois de completar sua estada em casa do sogro, começara a respeitar todas as datas de jejum e a acordar para os serviços da meia-noite.<br /><br />Sua esposa, Reitze Doshe, reclamava sempre que Yoineh Meir não era deste mundo. Reclamava com a mãe que ele nunca lhe falava uma palavra e que nunca prestava atenção nela, nem em seus dias puros. Só ia a ela nas noites depois que ela visitava o banho ritual, uma vez por mês. Disse que ele não lembrava os nomes das próprias filhas.<br /><br />Depois que concordou em ser o abatedor ritual, Yoineh Meir impôs a si mesmo novos rigores. Comia cada vez menos. Quase parou de falar. Quando um mendigo vinha à porta, Yoineh Meir corria a lhe dar boas-vindas e entregava-lhe seu último groschen . A verdade é que transformar-se em abatedor mergulhou Yoineh Meir na melancolia, porém ele não ousava opor-se à vontade rabino. Era para ser assim, Yoineh Meir dizia a si mesmo; era seu destino provocar tormento e sofrer tormento. E só o Céu sabia o quanto Yoineh Meir sofria.<br /><br />Yoineh Meir temia que pudesse desmaiar ao abater sua primeira ave, que sua mão não ficasse firme. Ao mesmo tempo, em algum lugar do seu coração, esperava cometer um erro. Isso o liberaria da ordem do rabino. Porém, tudo correu de acordo com as regras.<br /><br />Muitas vezes por dia, Yoineh Meir repetia para si mesmo as palavras do rabino: “Um homem não pode ser mais compassivo que a Fonte de toda compaixão”. A Torá diz: “Deves matar teu rebanho e tua manada conforme te ordenei”. No monte Sinai, a Moisés foram ensinados os modos de matar e abrir o animal em busca de impurezas. É tudo um mistério de mistérios: vida, morte, homem, animal. Os que não são abatidos morrem de qualquer forma, de doenças variadas, muitas vezes sofrendo semanas ou meses. Na floresta, as feras se devoram umas às outras. Nos mares, peixe engole peixe. A casa dos pobres de Kolomir está cheia de aleijados e paralíticos que ali ficam anos, se sujando. Nenhum homem escapa às tristezas deste mundo.<br /><br />E, no entanto, Yoineh Meir não encontrava consolação. Cada tremor da ave abatida provocava em Yoineh Meir um igual tremor nas entranhas. A morte de cada animal, grande ou pequeno, causava-lhe tanta dor quanto se estivesse cortando sua própria garganta. De todos os castigos que podiam se abater sobre ele, matar era o pior.<br /><br />*****<br /><br />Mal haviam se passado três meses desde que Yoineh Meir se tornara abatedor, porém o tempo parecia esticar-se, sem fim. Sentia que estava mergulhado em sangue e linfa. Seus ouvidos eram atacados pelo cacarejar de galinhas, pelo canto dos galos, pelo grasnar dos gansos, pelo mugir dos bois, pelo bramir e blaterar de novilhas e cabritos; asas adejando, garras batendo o chão. Os corpos se recusavam a aceitar qualquer justificativa ou desculpa, cada corpo resistia a seu jeito, tentava escapar, e parecia discutir com o Criador até o último alento.<br /><br />E a cabeça de Yoineh Meir se enchia de questões. Verdadeiramente, para criar o mundo, Aquele que é Infinito teve de encolher Sua luz; não podia haver livre-arbítrio sem dor. Mas uma vez que os animais não eram dotados de livre-arbítrio, por que tinham de sofrer? Yoineh Meir observava, tremia, enquanto os açougueiros esquartejavam as vacas com seus machados e pelavam as carcaças antes de elas terem exalado o último suspiro. As mulheres depenavam as galinhas ainda vivas.<br /><br />É costume o abatedor receber o baço e o bucho de toda vaca. A casa de Yoineh Meir ficou cheia de carne. Reitze Doshe fazia sopas em panelas grandes como caldeiras. Na grande cozinha havia um constante frenesi de cozinhar, grelhar, fritar, assar, mexer e cozer. Reitze Doshe estava grávida de novo e sua barriga projetava em ponta. Grande e atarracada, tinha cinco irmãs, todas tão volumosas quanto ela. As irmãs vinham com os filhos. Todo dia, a mãe de Reitze Doshe trazia novas pastelarias e quitutes feitos por ela. Uma mulher não devia fizer ouvir sua voz, mas a criada de Reitze Doshe, filha de um aguadeiro, cantava, andava por todo lado descalça, com os cabelos soltos, e ria tão alto que o barulho ressoava por todos os quartos.<br /><br />Yoineh Meir queria escapar do mundo material, mas o mundo material o perseguia. O cheiro da casa de abate não saía de suas narinas. Tentava esquecer-se na Torá, mas descobriu que a própria Torá estava cheia de assuntos terrenos. Interessou-se pela Cabala, embora soubesse que nenhum homem deve mergulhar nos mistérios antes de chegar à idade de quarenta anos. Mesmo assim, continuava a folhear o Tratado do hassidismo, O pomar, O livro da Criação, e A árvore da vida. Lá, nas altas esferas, não havia morte, nem abate, nem dor, nem estômagos e intestinos, nem corações, pulmões ou fígados, nem membranas, nem impurezas.<br /><br />Nessa noite em particular, Yoineh Meir foi à janela e olhou o céu. A lua espalhava sua radiação em torno dele. As estrelas brilhavam e cintilavam, cada uma com seu segredo celestial. Em algum lugar acima do Mundo dos Atos, acima das constelações, Anjos voavam, e Serafins e Rodas Sagradas e Animais sagrados. No Paraíso, os mistérios da Torá eram revelados às almas. Todo zaddick sagrado herdava trezentos e dez mundos e tecia coroas para a Divina Presença. Quanto mais perto do Trono de Glória, mais brilhante a luz, mais pura a radiação, menos numerosas as hostes profanas.<br /><br />Yoineh Meir sabia que o homem não pode pedir pela morte, mas no de si mesmo ansiava pelo fim. Tinha desenvolvido uma repugnância por tudo o que tinha a ver com o corpo. Não conseguia nem forçar-se a ir ao banho ritual com os outros homens. Debaixo de toda pele via sangue. Cada pescoço fazia Yoineh Meir se lembrar da faca. Seres humanos, como animais, tinham lombo, veias, entranhas, nádegas. Um corte com a faca e esses sólidos chefes de família tombariam como bois. Como diz o Talmude, tudo o que se destina a ser queimado já está queimado. Se o fim do homem é a corrupção, os vermes, o fedor, então ele nada mais era que um pedaço de carne pútrida já de início.<br /><br />Yoineh Meir entendia agora por que os sábios de antigamente comparavam o corpo a uma jaula, uma prisão onde a alma está cativa, ansiando pelo dia da libertação. Só agora entendia verdadeiramente o sentido das palavras do Talmude: “Muito bem, isto é morte”. Porém o homem estava proibido de escapar de sua prisão. Tem de esperar que o carcereiro remova as correntes, abra o portão.<br /><br />Yoineh Meir voltou para a cama. A vida inteira havia dormido em uma cama de penas, debaixo de um acolchoado de penas, a cabeça repousando sobre um travesseiro; agora, de repente, dava-se conta de que estava deitado sobre penas e penugem arrancada de aves. Na outra cama, junto à de Yoineh Meir, Reitze Doshe roncava. De quando em quando, saía um assobio de suas narinas e formava-se uma bolha em seus lábios. As filhas de Yoineh Meir iam ao penico, os pés nus correndo pelo chão. Dormiam juntas e às vezes cochichavam e riam metade da noite.<br /><br />Yoineh Meir havia desejado filhos que estudassem a Torá, mas Reitze Doshe produzia menina após menina. Enquanto eram pequenas, Yoineh Meir de vez em quando lhes beliscava a bochecha. Sempre que comparecia a uma circuncisão, trazia-lhes um pedaço de bolo. Às vezes, até beijava na cabeça uma das menores. Mas agora estavam crescidas. Pareciam ter puxado à mãe. Tinham se expandido em largura. Reitze Doshe reclamava que comiam muito e estavam ficando gordas. Roubavam lambiscos dos potes. A mais velha, Bashe, já recebera proposta de casamento. Num momento, as meninas brigavam e se insultavam, no momento seguinte uma penteava o cabelo da outra e fazia tranças. Estavam sempre matraqueando sobre vestidos, sapatos, meias, paletós, calcinhas. Choravam e riam. Catavam piolhos, brigavam, lavavam-se, beijavam-se.<br /><br />Quando Yoineh Meir tentava ralhar com elas, Reitze Doshe gritava: “Não se meta! Deixe as meninas sossegadas!”. Ou ralhava: “Melhor seria você cuidar que suas filhas não saíssem por aí descalças e nuas!”.<br /><br />“Por que precisavam de tanta coisa? Por que era preciso vestir e adornar tanto o corpo?”, Yoineh Meir pensava consigo mesmo.<br /><br />Antes de ser abatedor, raramente estava em casa e mal sabia o que acontecia. Mas agora começara a ficar em casa e via o que elas estavam fazendo. As meninas corriam para apanhar frutinhas e cogumelos; juntavam-se às filhas das casas comuns. Traziam para casa cestos de gravetos secos. Reitze Doshe preparava geléia. Costureiras vinham fazer provas. Sapateiros mediam os pés das mulheres. Reitze Doshe e a mãe discutiam por causa do enxoval de Bashe. Yoineh Meir ouvia falar de um vestido de seda, um vestido de veludo, toda sorte de saias, mantos, casacos de pele.<br /><br />Agora que ficava acordado, essas palavras todas ressoavam em seus ouvidos. Elas rolavam em luxos porque ele, Yoineh Meir, tinha começado a ganhar dinheiro. Em algum lugar no útero de Reitze Doshe, uma nova criança estava crescendo, mas Yoineh Meir sentia claramente que seria outra menina. “Bom, é preciso receber bem tudo o que o Céu mandar”, aconselhava a si mesmo.<br /><br />Tinha se coberto, mas agora estava quente demais. O travesseiro sob a cabeça ficara estranhamente duro, como se houvesse uma pedra entre as penas. Yoineh Meir era ele próprio um corpo: pés, barriga, peito, cotovelos. Sentiu uma pontada nas entranhas. A boca seca.<br /><br />Yoineh Meir sentou-se. “Pai do Céu, não consigo respirar!”<br /><br /><strong>II.</strong><br /><br />Elul é um mês de arrependimento. Em anos passados, Elul trazia uma sensação de exaltada serenidade. Yoineh Meir adorava as brisas frescas que vinham da floresta e dos campos colhidos. Ficava olhando longo tempo o céu azul-pálido com as nuvens esgarçadas que lembravam o tecido em que eram embrulhados os limões para a Festa do Tabernáculo . No ar voejavam fibras. Nas árvores, as folhas ficavam amarelo-açafrão. No trinar dos passarinhos ouvia a melancolia dos Dias Solenes, quando o homem faz uma avaliação de sua alma.<br /><br />Mas, para o abatedor, Elul era outra coisa muito diferente. Muitos animais eram abatidos para o ano-novo. Antes do Dia da Reconciliação, todo mundo oferecia uma ave sacrificial. Em cada pátio, galos cantavam e galinhas cacarejavam, e todos tinham de ser mortos. Então chegava a Festa dos Caldos, o Dia dos Gravetos de Salgueiro, a Festa de Azereth, o Dia do Regozijo com a Lei, o shabat do Gênesis. Cada feriado trazia sua própria mortandade. Milhões de aves e gado agora vivos estavam condenados a ser mortos.<br /><br />Yoineh Meir não dormia mais de noite. Se cochilava, era imediatamente assolado por pesadelos. Vacas assumiam forma humana, com barbas e cachos laterais e solidéus em cima dos chifres. Yoineh Meir estava matando uma vitela e ela se transformava em uma moça. O pescoço latejava e ela implorava ser poupada. Corria para a casa de estudos e salpicava o chão com seu sangue. Ele chegou a sonhar que estava matando Reitze Doshe no lugar de uma ovelha.<br /><br />Em um de seus pesadelos, ouviu uma voz humana saindo de um cabrito abatido. O cabrito, com a garganta cortada, saltou sobre Yoineh Meir e tentou chifrá-lo, xingando em hebraico e aramaico, cuspindo e espumando em cima dele. Yoineh Meir acordou suando. Um galo cantou como um sino. Outros responderam, como uma congregação respondendo ao cantor. Para Yoineh Meir pareceu que as aves estavam gritando perguntas, protestando, lamentando em coro o infortúnio que pairava sobre elas.<br /><br />Yoineh Meir não conseguia descansar. Sentou-se na cama, agarrou os cachos com as duas mãos e oscilou o corpo.<br /><br />Reitze Doshe acordou. “O que foi?”<br /><br />“Nada, nada.”<br /><br />“Por que está balançando assim?”<br /><br />“Me deixe.”<br /><br />“Está me assustando!”<br /><br />Depois de algum tempo, Reitze Doshe começou a roncar de novo. Yoineh Meir saiu da cama, lavou as mãos e se vestiu. Queria colocar cinza na testa e recitar a oração da meia-noite, mas seus lábios recusaram-se a pronunciar as palavras. Como podia lamentar a destruição do Templo quando uma carnificina estava sendo preparada ali em Kolomir e ele, Yoineh Meir, era Tito, era Nabucodonosor!?<br /><br />O ar da casa estava sufocante. Cheirava a suor, gordura, roupa de baixo suja, urina. Uma de suas filhas resmungou alguma coisa no sono, outra gemeu. As camas rangeram. Do armário veio um farfalhar. Na gaiola debaixo do fogão, havia aves que Reitze Doshe tinha prendido para o Dia da Reconciliação. Yoineh Meir ouviu o raspar de um rato, o cricrilar de um grilo. Pareceu-lhe que conseguia ouvir os vermes cavando no teto e no soalho. Inúmeras criaturas cercavam o homem, cada uma em sua própria natureza, cada uma clamando ao Criador.<br /><br />Yoineh Meir saiu para o quintal. Ali tudo estava fresco e frio. Havia sereno. No céu, as estrelas da meia-noite cintilavam. Yoineh Meir respirou fundo. Andou pela grama molhada, entre as folhas e os arbustos. Suas meias ficaram molhadas acima do calçado. Chegou a uma árvore e parou. Parecia haver alguns ninhos nos galhos. Ouviu o piar dos filhotes despertados. Coaxaram sapos no brejo além da montanha. “Será que não dormem nunca, esses sapos?”, Yoineh Meir perguntou a si mesmo. “Têm voz de homem.”<br /><br />Desde que Yoineh Meir começara a abater, seus pensamentos eram obcecados por criaturas vivas. Lutava com todo tipo de pergunta. De onde vinham as moscas? Nasciam do ventre da mãe ou de dentro de ovos? Se todas as moscas morriam no inverno, de onde vinham as novas no verão? E a coruja que fizera o ninho debaixo do teto da sinagoga, o que fazia quando vinha a neve? Ficava lá? Ou voava para países mais quentes? E como podia qualquer coisa viver no gelo que queimava, quando mal era possível esquentar-se debaixo do cobertor?<br /><br />Dentro de Yoineh Meir, cresceu um amor desconhecido por tudo o que rasteja e voa, procria e enxameia. Até pelos camundongos. Era culpa deles serem ratos? Que mal faz um camundongo? Tudo o que ele quer é uma casca de pão ou um pedaço de queijo. Por que o gato é tão inimigo dele?<br /><br />Yoineh Meir balançava para frente e para trás no escuro. O rabino pode ter razão. O homem não pode e não deve ter mais compaixão do que o Mestre do universo. Ele, porém, Yoineh Meir, estava doente de pena. Como se pode rezar pela vida no ano que vem, ou por um registro favorável no Céu, quando se está roubando a outros o alento da vida?<br /><br />Yoineh Meir achava que nem o próprio Messias podia redimir o mundo enquanto se praticasse injustiça contra os animais. O certo era que tudo pudesse renascer dos mortos: cada bezerro, peixe, mosquito, borboleta. Até no verme que rasteja na terra fulgura uma centelha divina. Quando se abate uma criatura, abate-se Deus...<br /><br />“Ai de mim, estou perdendo a cabeça!”, murmurou Yoineh Meir.<br /><br />Uma semana antes do Ano-Novo, houve um aumento nos abates. O dia inteiro Yoineh Meir passava ao lado de uma fossa abatendo galinhas, galo gansos, patos. Mulheres empurravam, discutiam, tentavam chegar primeiro ao abatedor. Outras faziam piadas, riam, brincavam; Voavam penas, o pátio cheio de grasnidos, de tagarelice, do canto dos galos. De vez em quando, uma ave gritava como um ser humano.<br /><br />Yoineh Meir estava tomado por um aperto de dor. Até esse dia, ainda esperava que fosse se acostumar com o abate. Mas agora sabia que mesmo que continuasse durante cem anos seu sofrimento não cessaria. Seus joelhos tremiam. Sentia a barriga distendida. A boca cheia de fluidos amargos. Reitze Doshe e suas irmãs também estavam no pátio, conversando com as mulheres, desejando a cada uma um ano-novo abençoado, e formulando os piedosos votos de se reencontrarem no ano seguinte.<br /><br />Yoineh Meir temeu não estar mais abatendo de acordo com a Lei. Num momento, um negror flutuava diante de seus olhos; no momento seguinte, tudo ficava verde-dourado. Testava constantemente a lâmina da faca na unha do indicador para ter certeza de que ela não estava cega. Tinha de ir urinar a cada quinze minutos. Mosquitos o picavam. Corvos crocitavam para ele entre os galhos.<br /><br />Lá ficou até o pôr-do-sol, e o fosso se encheu de sangue.<br /><br />Depois das preces da noite, Reitze Doshe serviu para Yoineh Meir sopa de trigo sarraceno com assado de panela. Mas embora não tivesse tocado em comida desde a manhã, não conseguiu comer. Sentiu a garganta fechada, tinha um pelote no esôfago e mal conseguiu engolir o primeiro bocado. Recitou o Shemá do rabino Isaac Luria, fez sua confissão e bateu no peito como um homem que está mortalmente doente.<br /><br />Yoineh Meir pensou que não ia conseguir dormir essa noite, mas seus olhos se fecharam assim que tocou a cabeça no travesseiro e recitou a última bênção antes de adormecer. Pareceu-lhe que estava examinando uma vaca abatida em busca de impurezas, abrindo sua barriga, arrancando os pulmões e soprando dentro deles. O que queria dizer aquilo? Porque isso em geral era trabalho do açougueiro. Os pulmões foram ficando maiores e maiores; cobriram a mesa inteira e incharam para cima até o teto. Yoineh Meir parou de soprar, mas os lóbulos continuaram se expandindo. O lóbulo menor, que é chamado de “ladrão”, sacudiu e oscilou, como se quisesse escapar. De repente, um assobio, uma tosse, um grunhido de lamentação escapou da traquéia. Um dybbuk começou a falar, gritar, cantar, a derramar uma torrente de versos, citações do Talmude, passagens do Zohar . Os pulmões subiram e voaram, batendo como asas. Yoineh Meir queria escapar, mas a porta estava bloqueada por um touro negro de olhos vermelhos e chifres pontudos. O touro bufou e abriu uma bocarra cheia de dentes compridos.<br /><br />Yoineh Meir estremeceu e acordou. Estava com o corpo banhado em suor. A cabeça inchada, cheia de areia. Os pés pousados na enxerga de palha, inertes com pau. Fez um esforço e sentou-se. Vestiu o robe e saiu. A noite estava pesada e impenetrável, grossa com a escuridão de hora antes do amanhecer. De tempo em tempo, uma lufada de ar vinha de algum lugar, como o suspiro de alguém invisível.<br /><br />Um arrepio percorreu-lhe a espinha, como se alguém tivesse passado uma pena por ela. Algo dentro dele chorava e ria. “Bom, e daí que o rabino disse isso?”, falou a si mesmo. “E se o Deus Todo-Poderoso ordenou, o que é que tem? Posso passar sem recompensas no próximo mundo! Não quero nenhum Paraíso, nenhum Leviatã, nenhum Touro Selvagem! Eles que me deitem numa cama de pregos. Que me joguem no Vazio da Funda. Não quero nenhum dos Seus favores, Deus! Não tenho mais medo do Seu Juízo! Sou um traidor de Israel, um transgressor por vontade própria!” Yoineh Meir gritou: “Tenho mais compaixão que o Deus Todo-Poderoso, mais, mais! Ele é um Deus cruel, um Homem de Guerra, um Deus de Vingança. A Ele não sirvo! O mundo está abandonado!”. Yoineh Meir riu, mas as lágrimas correram por suas faces como gotas ferventes.<br /><br />Yoineh Meir foi até a despensa onde guardava as facas, a pedra de amolar, a faca de circuncisão. Recolheu tudo e jogou na fossa externa. Sabia que estava blasfemando, que estava profanando instrumentos sagrados, que estava louco, mas não queria mais ser são.<br /><br />Saiu e começou a caminhar para o rio, para a ponte, para a floresta. A estola de oração e os filactérios? Não precisava mais deles! O pergaminho era feito de couro de vaca. As caixas dos filactérios eram feitas de couro de vitela. A própria Torá era feita de pele de animal. “Pai do Céu, sois um matador!”, gritou uma voz dentro de Yoineh Meir. “Sois um matador e o Anjo da Morte! O mundo inteiro é um matadouro!”<br /><br />Um dos sapatos saiu do pé de Yoineh Meir, mas ele deixou ficar para trás, andando só com um pé de sapato e uma meia. Começou a gritar, a barrar, cantar. Estou enlouquecendo a mim mesmo, pensou. Mas mesmo isso era sinal de loucura...<br /><br />Tinha aberto uma porta em sua mente, e a loucura entrou, inundando tudo. De momento a momento, Yoineh Meir ficava mais rebelde, Jogou fora o solidéu, agarrou as franjas de oração e arrancou-as, rasgou pedaços do colete. Estava possuído por uma força, pela inquietação de alguém que se livrou de todas as cargas.<br /><br />Cães o perseguiam, latindo, mas ele os afastou. Portas se abriam. Homens corriam para fora descalços, com penas grudadas nos solidéus. Mulheres saíam de combinação e touca de dormir. Todos gritavam, tentando impedir sua passagem, mas Yoineh Meir escapou de todos.<br /><br />O céu ficou vermelho feito sangue, e um crânio redondo emergiu do mar de sangue como do útero de uma mulher ao dar à luz.<br /><br />Alguém tinha ido contar aos açougueiros que Yoineh Meir enlouquecera. Eles vieram correndo com varas e cordas, mas Yoineh Meir já estava em cima da ponte, indo depressa para os campos colhidos. Corria e vomitava. Caiu e levantou, machucado pela grama. Pastores que levam os cavalos para pastar de noite caçoaram dele e jogaram esterco de cavalo em cima dele. As vacas no pasto correram atrás dele. Sinos tocaram como num incêndio.<br /><br />Yoineh Meir ouviu gritos, berros, pés correndo. A terra começou a descer e Yoineh Meir rolou encosta abaixo. Chegou à floresta, saltou correndo tufos de musgo, pedras, ribeirões. Yoineh Meir sabia a verdade: aquilo não era o rio à sua frente; era um charco de sangue. Corria sangue do sol, manchando o tronco das árvores. Dos galhos pendiam intestinos, figados, rins. Os quartos dianteiros de animais se punham em pé e o salpicavam de bile e lodo. Yoineh Meir não podia escapar. Miríades de vacas e aves o cercavam, prontas para se vingar de cada corte, cada ferida, cada moela aberta, cada pena arrancada. Com os pescoços sangrando, todas entoavam: “Todos podem matar e toda matança é permitida”.<br /><br />Yoineh Meir cau num choro que ecoou pela floresta em muitas vozes. Levantou o punho ao céu: “Demônio! Assassino! Fera devoradora!”.<br /><br />***<br /><br />Durante dois dias os açougueiros procuraram por ele, mas não o encontraram. Então, Zeivel, que era dono do moinho, chegou à cidade com a notícia de que o corpo de Yoineh Meir havia aparecido no rio, perto da represa. Tinha se afogado.<br /><br />Os membros da Sociedade Funerária foram imediatamente buscar o corpo. Havia muitas testemunhas de que Yoineh Meir tinha se comportado como louco, e o rabino determinou que o falecido não era um suicida. O corpo do morto foi lavado e sepultado perto dos túmulos de seu pai e sua avó. O próprio rabino fez a apologia.<br /><br />Como era a estação de festas e havia o perigo de Kolomir ficar sem carne, a comunidade despachou depressa dois mensageiros para trazer um novo abatedor.<br /><br />* * * * *<br /><br /><span style="color:#ff0000;"><strong>PREVISÃO PARA A PRÓXIMA POSTAGEM: 1 de Setembro de 2008</strong></span></p>Bruno Müllerhttp://www.blogger.com/profile/16110829536848945967noreply@blogger.com1