segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Direitos Animais: por que são tão duros de engolir?

Cláudio de Godoy*

Muitas vezes, as discussões sobre direitos animais não chegam a lugar nenhum, pois sua essência não costuma ser compreendida de imediato para quem nunca havia pensado sobre isso. Conceitualmente, a idéia de estender nossos horizontes morais a outras espécies de modo coerente com os princípios que já adotamos não é uma das questões mais complexas que existem, mas as barreiras psicológicas são gigantescas e intimidadoras. Sem falar nas de ordem culinária.

A raiz de qualquer pensamento ético é emocional e reside em nossa capacidade de nos colocar no lugar dos outros. Mas todo sistema ético que se preze deve se basear na razão e necessariamente seguir os princípios da universalidade, generalidade e imparcialidade. Em miúdos: todos os agentes morais devem ser capazes de compreender por que uma determinada ação é certa ou errada, as mesmas regras devem ser aplicadas em situações semelhantes e, o mais importante, deve-se analisar as conseqüências de uma determinada ação do ponto de vista de todos aqueles que são por ela afetados.

Apesar de toda a costumeira conversa fiada sobre a suposta perda de nossa humanidade ao nos igualarmos aos “bichos”, a discussão sobre direitos animais provoca tamanho ultraje por um dos motivos mais comezinhos: a ameaça que ela traz a um dos nossos prazeres mais caros. Um autor americano, Michael Pollan, chega a comparar o vegetarianismo à abstinência sexual. Um exemplo clássico: quando se discute o uso de cobaias para se encontrar a cura dos males que afligem a humanidade, a imensa maioria dos defensores desta prática alega que jamais sacrificaria a vida de animais se houvesse uma opção viável para se chegar ao mesmo resultado nas pesquisas. Mas, a partir do momento em que são informados de que uma dieta isenta de produtos de origem animal pode ser totalmente saudável e segura, o mesmo princípio passa a não valer, pois o estômago começa a interferir no funcionamento do cérebro e começam a pipocar argumentos como o da cadeia alimentar: se o leão come gazelas, por que diabos não podemos comer o nosso bife? Alegamos que temos o direito de usar os animais não-humanos como cobaias pelo fato deles serem supostamente inferiores a nós, mas, quando convém ao nosso paladar, justificamos o fato de os comer igualando-nos a animais carnívoros que não poderiam agir de outro modo. Ou seja, para justificar os nossos prazeres à mesa, não há problema algum em sermos contraditórios e em assumirmos a nossa própria animalidade. Neste caso, a moral não passa de um subterfúgio que os vitoriosos criam para universalizar a posição que lhes convém. Sem contar que este tipo de comparação ressuscita a velha falácia naturalística, ou seja, a de que tudo aquilo que é natural seria moralmente correto. Se seguíssemos este preceito à risca, deveríamos, como bons mamíferos, legitimar a supremacia dos machos sobre as fêmeas, que é a regra entre esta classe de animais.

Toda a discussão sobre direitos animais pode ser resumida em uma única pergunta: que característica moralmente relevante todos os seres humanos possuem para ter o direito de não serem tratados como objetos que nenhum outro animal possui? É bom observar que inteligência, raciocínio lógico, domínio da linguagem simbólica, compreensão do significado de justiça e de direitos e grau de afeição que despertam não são medidas de direitos básicos. Todos os seres humanos têm o mesmo direito em igual medida de não serem usados como objetos independentemente de terem ou não estes atributos. Capacidade de fazer escolhas morais nunca foi um pré-requisito para a posse de direitos básicos.

Na verdade, este direito de não sermos usados como objetos se deve única e exclusivamente ao fato de que somos sencientes, ou seja, somos capazes de ter sensações e, conseqüentemente, temos consciência daquilo que acontece com os nossos próprios corpos e do que se passa à nossa volta. Em suma, nos importamos com aquilo que acontece conosco. Mesmo os comatosos podem apresentar um grau de consciência mínima. Também devemos respeitar aqueles que se encontram em estado vegetativo persistente, pois futuramente pode haver um meio de se reverter o seu quadro. Mas no caso de morte cerebral, o ser humano em questão deixa de ser alguém e os seus órgãos poderão ser usados para salvar a vida de outras pessoas.

Como boa parte dos outros animais também é senciente, a única razão pela qual tratamos casos semelhantes de modo diferente se deve exclusivamente ao fato de que eles não pertencem à nossa espécie. Ou seja, discriminamos indivíduos que têm exatamente os mesmos interesses básicos do que nós em virtude de uma característica biológica irrelevante para este caso. Por esta razão, a analogia do especismo com o racismo e com o sexismo é perfeitamente válida. Isso de modo algum significa que quem é especista necessariamente é um racista ou um sexista em potencial. Uma pessoa pode ser racista e, ao mesmo tempo, ser a favor da igualdade dos sexos.

É claro que os outros animais jamais poderão pertencer verdadeiramente à nossa sociedade, apesar de muitos viverem entre nós em uma situação de sujeição e dependência. Não podemos nos sentar para negociar com os ratos para que não se proliferem a torto e a direito pelas nossas cidades nem com os gafanhotos para que não ataquem as nossas lavouras. Nestes casos, existe um conflito de interesses básicos, pois estes animais estão lutando por sua sobrevivência tanto quanto nós. Se eles ainda representarem uma ameaça mesmo depois de tomadas todas as devidas medidas sanitárias e ecológicas de controle, poderemos tomar as medidas que forem necessárias para a preservação de nossa saúde e de nossos alimentos, sempre procurando causar o menor dano possível a estes animais, pois todo ser senciente deve ser respeitado na medida do possível. Também não podemos persuadir aquele Pit Bull da esquina, que é fruto da eugenia que perpetramos com as outras espécies, a não nos atacar. Neste caso, temos todo o direito de tomar as medidas que forem estritamente necessárias para nos livrarmos de seu ataque iminente. A legítima defesa é um princípio que aplicamos sem o viés especista, pois é igualmente válida se um leão ou um outro ser humano nos atacar.

Para finalizar, a afirmação de que o uso dos outros animais como objetos é chancelado pela atual legislação é irrelevante em uma discussão sobre se este uso é eticamente condenável ou não. Direitos legais não são sinônimos de direitos morais. Não podemos nos esquecer de que a escravidão já foi perfeitamente legal e de que colaborar com a fuga de escravos alheios era crime. A única razão pela qual a “estrada de ferro subterrânea” foi bem sucedida nos Estados Unidos de meados do século XIX foi a de que boa parte da população dos estados nortistas abominava a escravidão. O que está longe de acontecer em nossa atual sociedade com relação ao uso de indivíduos sencientes não-humanos como objetos, que é visto como a coisa mais normal do mundo. O nosso trabalho deve ser necessariamente educacional e não-violento, tanto por motivos estratégicos quanto por razões de ordem moral, pois os seres humanos que colaboram e se beneficiam com esta exploração não deixam de ser animais e, na maior parte das vezes, não fazem isso por mal, apesar do grau inimaginável de violência que é deliberadamente impingido a bilhões de animais. Devemos ser coerentes e aplicar em toda a ocasião o princípio de que os fins não justificam os meios. Afinal, quase ninguém foi criado como vegano desde o nascimento. No futuro, esperamos que isso seja a norma ao invés da exceção.

*Prezados leitores. A partir dessa semana, teremos um escritor convidado, Cláudio de Godoy, que irá postar junto comigo, neste espaço, em semanas alternadas.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Sacralização da Vida

Retângulo áureo...


Freqüentemente os defensores dos direitos não só dos animais, mas também dos seres humanos, são confrontados com críticas que têm pouco efeito prático, mas que pretendem-se de cunho desmoralizante: desqualificar o postulante de um determinado princípio, ou desqualificar o princípio em si. Já vimos alguns exemplos desse tipo. Em geral, essas críticas partem do pressuposto, como vimos aqui, de que o princípio é falso, ou hipócrita, ou utópico, e portanto não pode nem deve ser adotado como regra geral.

Sendo que o princípio básico dos adeptos dos direitos fundamentais (humanos e não-humanos) é, necessariamente, a VIDA, é comum, e até compreensível, que os relativistas e hegemonistas, cedo ou tarde, venham com essa afirmação: "que a vida não é um valor que possa ser generalizado". Para os antropocentristas, logicamente, a questão recai (novamente) na questão da racionalidade: apenas o ser humano (supostamente) valoriza a sua vida e deve, portanto, tê-la preservada. Para os críticos da noção de direitos humanos, em geral relativistas, a coisa fica ainda pior: nem sequer para o ser humano a vida é um valor generalizável. Essa fórmula geralmente vem acompanhada de um conceito, o qual os abolicionistas e humanistas devem todos ter ouvido ad nauseam (apesar de seus críticos se julgarem tão alternativos): o da "Sacralização da vida".

...proporção encontrada em diversas formas na natureza...


O que significa, e o que há por trás desse conceito? A idéia de "sacralização" significa que há algo sagrado, intocável. Que, para os abolicionistas (em relação aos animais não-humanos) e para os humanistas (em relação aos seres humanos) seria a vida. Por trás dele, há uma idéia de que a adoção desses princípios não passa de uma extrapolação, para o mundo leigo, de uma visão religiosa, e portanto, igualmente deslocada do mundo material e impossível de ser abrangida por ele em sua totalidade (uma vez que é impossível unificar toda a humanidade numa só religião), além de impositiva de uma moral particular. De modo geral, essa "sacralização" é identificada com o Cristianismo, para o qual, segundo algumas fórmulas, a morte é uma tragédia, evidenciada nos rituais fúnebres. E, a partir daí, um alvo fácil para céticos (em geral "revolucionários") e/ou "realistas" (em geral conservadores), prontos a nos acusar simultaneamente de ingenuidade, idealismo e teocratismo.

Em primeiro lugar, gostaria de ressaltar que não há nenhuma precisão na associação entre Cristianismo e "sacralização da vida" (apesar do mandamento "Não Matarás"). Pelo menos se considerarmos exclusivamente o cristianismo institucionalizado - aquele que construiu estruturas de poder temporal, nos templos e nos palácios. Vejamos o caso do catolicismo. Para estes cristãos, o que era sagrado não era a vida, pelo menos não neste plano físico, mas a VIDA ETERNA. Um acréscimo que faz toda a diferença, pois desloca o fundamental não para trajetória completa do indivíduo, mas para o seu encerramento: o momento da morte. O que conta é, portanto, a salvação, a purificação, materializada no ritual da extrema-unção. Não quer dizer que os atos anteriores não contam - é por isso que existem os mandamentos, e o sacramento da confissão, para expiar os pecados. Mas tudo isso de pouco conta se, no momento final, o fiel negar a Deus. Se, ao contrário, no momento final ele for tomado de sincero arrependimento, sob os auspícios do Senhor, tudo lhe será perdoado, mesmo os mais torpes pecados, e ele ganhará os céus. O resultado dessa perspectiva está longe de ser inofensivo. Vertido em instrumento de poder, o Cristianismo passou a perseguir infiéis, e a purificá-los exatamente pelo recurso a uma "solução final": para o pecador renitente, apenas o sacrifício em nome da fé é redentor. Na Inquisição (o exemplo mais famoso, mas de modo algum o único), o herege ou infiel seria queimado vivo, pois o fogo o purifica dos pecados: perde-se a vida material, mas ganha-se a vida eterna. (Os relatos da conquista da América dão conta de que os índios condenados à morte que concordavam em converter-se ao Cristianismo não eram queimados, mas enforcados: o perdão espiritual não é acompanhado, necessariamente, pelo perdão material - apenas garante uma morte "cristã".)

Em contraste, é sabido que todas as religiões e culturas tratam da questão do direito a vida e têm regras contra o assassinato. Essas regras podem variar, mas o princípio persiste. Isso por uma razão muito simples: se não há interdição do assassinato, a vida em sociedade torna-se impossível.

...inclusive no ser humano...


Claro, alguns defensores de animais - humanos e/ou não-humanos - de fato adotam a idéia de que a vida é "sagrada". Sem haver qualquer demérito nessa perspectiva eivada de religiosidade. No entanto, não deixa de ser instrutivo que a maioria dos defensores de animais que têm essa vinculação transcendental são, em geral, influenciados por certas religiões orientais - Budismo, Hinduísmo, Jainismo - e sua premissa da "não-violência" (Ahimsa). Que, por sua vez, segundo o historiador Rynn Berry, está na própria raiz da difusão do vegetarianismo e dos direitos animais no ocidente. Nada a ver, portanto, com o Cristianismo. Portanto, a "sacralização da vida" promovida pelos defensores dos animais nada tem a ver com uma moral cristã desproporcialmente distorcida e ampliada, pelo menos na maioria esmagadora dos casos. O princípio da não-violência, por sua vez, mesmo que tenha um substrato religioso, não pode ser imediatamente descartado em função disso, sem se avaliar os seus próprios méritos (como é, aliás, com qualquer ideologia, que é o que são, no fundo, todas as religiões).

Restar-nos-ía ainda, entretanto, resolver por que não é tão fácil nos desfazer da "sacralização da vida", mesmo num contexto de relativização de valores e busca egoísta da satisfação, inclusive à expensa de outros indivíduos. Ora, a resposta para isso é muito fácil. Defendemos a vida não porque ela é "sagrada", mas porque ela é o que o indivíduo (humano e não-humano) tem de mais importante, de mais precioso. Pelo simples fato de que se não há vida, não há mais nada para postular. E, uma vez vivo, há que ser LIVRE para poder desfrutar de fato da vida que se possui. Sem Liberdade, a vida é uma dádiva inútil. Qualquer um que alegue se importar com animais (humanos e não-humanos) e, ao mesmo tempo, rejeita o tese da inviolabilidade da vida, está praticando a pior forma de hipocrisia. Não há respeito possível para com um indivíduo quando lhe negamos aquilo que lhe é mais importante: a vida, a liberdade e a integridade. O respeito torna-se um princípio inútil se admitimos "relativizar" as circunstâncias em que ele é aplicado. E isso fica muito claro ao analisarmos as tragédias que decorreram de ideologias políticas que, sob apelo humanistas, colocaram sua utopia acima dos indivíduos.

Seja como for, o respeito à vida e à liberdade são, necessariamente, os pilares de nossa conduta com nossos semelhantes. Independente dos caminhos que alguém vislumbre para alcançar o ideal de uma sociedade justa, este alguém, se alega promover o respeito e a plenitude dos direitos animais (humanos e/ou não-humanos), deve partir destes dois pilares. Pelo menos neste plano físico. E, se existe outro plano, não cabe a ninguém dizer por outrem. E, seja em nome de qualquer ideologia, religiosa ou laica, ninguém pode arrogar-se o direito de decidir sobre a interrupção de vidas que não a sua própria.

...e em suas obras.


* * * * *

PREVISÃO PARA A PRÓXIMA POSTAGEM: 29 de Setembro de 2008.

quarta-feira, 3 de setembro de 2008

Libertação em Movimento

Hoje gostaria de falar sobre outro aspecto das críticas dos defensores da exploração animal: a suposta impossibilidade de se alcançar a abolição da exploração animal, o irrealismo e o ridículo de nossos objetivos.

Geralmente esse raciocínio se desdobra nos seguintes argumentos:

1. A imensa maioria das pessoas não está disposta a se tornar vegana.

2. O que nós fazemos não passa de ilusão - nunca poderemos alcançar um estágio de abolição porque simplesmente é "impossível" acabar com a exploração animal: ela está em todos os lugares.

3. Sendo impossível, inviável e utópico alcançar a abolição, o mais lógico, o mais prático e mais "coerente" (na visão deles) para os defensores dos animais seria defender medidas de bem-estar: prover conforto e saúde, administrar anestésicos, abater "humanitariamente", etc.

Daí faz-se um adendo para salientar a impressionante convergência de raciocínio entre exploradores e bem-estaristas: a linha de argumentação é praticamente idêntica. A única diferença é que os bem-estaristas substituiriam o "eternamente impossível" pelo "momentaneamente impossível" para, a partir daí, defender absolutamente os mesmos preceitos: se não há como abolir, vamos torná-la menos cruel.

Os "exemplos" da impraticabilidade do veganismo são inúmeros: a carne e outros alimentos de origem animal são essenciais e apreciados pela imensa maioria dos seres humanos; a abolição dos testes em animais impediria o avanço da ciência médica; todas as empresas testam produtos em animais e as que alegam não fazê-lo apenas estão usando de uma estratégia de marketing para atrair um determinado público; os diversos ramos da exploração animal geram renda e emprego e seu abandono resultaria numa catástrofe para a economia e o bem-estar da humanidade; animais domesticados ou mantidos em zoológicos precisam de carne de outros animais abatidos para sobreviver. Conclusão: libertação animal não passa de um delírio de mentes adolescentes, mimadas, rebeldes e doentias.

Daí, claro, podemos passar à realidade dos fatos.

Em primeiro lugar, como já argumentei em parte na postagem "Questão de Coerência" , certo está que muitos aspectos da exploração animal são difíceis, senão impossíveis, de evitar no mundo contemporâneo. É preciso, porém, uma boa dose de ignorância histórica para assumir que necessariamente será assim para sempre (e de cretinismo para supor que a impossibilidade da plenitude neutraliza e desmerece a importância de fazer o máximo possível). A humanidade, suas sociedades, suas tradições, estão em permanente transformação, e uma após a outra as pretensões de imutabilidade se fizeram em pó, a despeito da arrogância dos portadores de diversos impérios, regimes, práticas e ideologias que se supunham eternos. Os veganos contemporâneos são, neste sentido, desbravadores, abrindo caminhos, mostrando novas formas de ver e fazer, certamente incompletos no contexto geral, mas em progresso constante - e eu diria, inclusive, rápido - para viabilizar que, no espaço de algumas gerações, o estilo de vida 100% vegano seja uma realidade ao alcance de boa parte da população humana, ao menos aquela com acesso à educação e informação, e com razoável controle sobre seus meios de vida - seja no espaço urbano, seja no espaço rural. Vejam bem, eu disse "ao alcance", não disse que todas as pessoas nessas condições serão veganas - quando chegarmos no hipotético estágio de universalização do veganismo entre esse grupo social, certamente estaremos em condições de dar um passo adiante para a eliminação total da exploração animal - o que, para dissipar quaisquer dúvidas, sempre afirmo que precisa ocorrer de forma não-violenta, pois de qualquer outra forma será eticamente condenável e incoerente.

Podemos fazer uma refutação ponto a ponto: a carne e outros alimentos de origem animal NÃO são essenciais, e muitos dos que antes tanto os apreciavam foram capazes de racionalmente se dar conta da irracionalidade de infligir sofrimento desnecessário por uma dose de prazer fugaz - além de tudo tão facilmente substituído, pois a culinária vegetariana estrita está longe de restringir-se à salada e ser desprovida de sabor. A abolição dos testes em animais não só não impediria o progresso da ciência, como o estimularia, como qualquer desafio que se interpõe ao espírito criativo e inquisidor do ser humano; além do mais, são grandes as objeções de caráter estritamente científico à vivissecção, contando a luta antivivissecionista com o respaldo de um número ainda restrito, mas respeitável de cientistas. Os testes em animais na indústria JÁ ESTÃO EM FASE DE ABOLIÇÃO e é apenas uma questão de tempo até que sejam totalmente abandonados, quiçá sem mesmo sequer dependermos de legislação para tanto; da mesma forma que a ciência, a economia humana apenas tem a ganhar com a abolição de uma prática ineficiente, concentradora de renda e poluente; o ser humano, inteligente e adaptável como é, certamente encontrará formas de viabilizar-se e reinventar-se; da mesma forma que a tecnologia, a abolição da exploração animal pode tornar-se uma oportunidade para impulsionar uma nova abordagem das relações sócio-econômicas, e - também da mesma forma que a tecnologia - só não o fará se as próprias relações humanas mantiverem-se assimétricas, desiguais, iníquas e injustas. No caso dos animais domesticados ou mantidos em zoológicos, a ciência da nutrição já avançou bastante, e certamente dispomos, hoje, de conhecimento, tecnologia e recursos para desenvolver rações veganas; isso apenas ainda não é feito porque a mentalidade dominante não se questiona sobre as implicações éticas da alimentação de animais domésticos - afinal, eles mal se questionam sobre as implicações éticas da própria alimentação e do próprio estatuto de "animal doméstico", fatores que NECESSARIAMENTE vêm antes de se obter consciência sobre o absurdo moral de matar alguns animais para alimentar outros. Mesmo muitos vegetarianos não fizeram essa transição - alguns acham que é uma "violação da natureza" de certos animais, esquecendo que enclausurá-los também é.

Em suma, à medida que o número de veganos cresce, e eles se tornam mais visíveis, mais unidos e mais ativos, fatalmente as mudanças virão, seja por meio do mercado, seja por meio das mudanças na legislação.

O que nos leva, aliás, ao segundo ponto: as evidências muito atuais dos progressos da luta pela abolição da exploração animal, a despeito da afirmação assoberdada de quem acha que não passa de mero delírio juvenil. Talvez alguém achasse em um tempo remoto que era impossível que negros, índios, estrangeiros ou mulheres pudessem ter os mesmos direitos que homens brancos. Aliás, na Europa querem tirar os direitos mais básicos dos imigrantes, e uma das desculpas é justamente dizer que "não é possível" uma Europa que garanta direitos a todos, prospere e seja pacífica ao mesmo tempo.

Trata-se de uma típica chantagem de exploradores e detentores do poder, portadores da ideologia dominante, tentando afetar psicologicamente os adversários, desqualificá-los e à sua luta. Enquanto isso, nós pressionamos, ganhamos espaço, forçamos o debate, conseguimos pequenas concessões, e num futuro próximo teremos adeptos e poder para emplacar mudanças.

Basta mencionar alguns exemplos. Casos como a proibição de animais em circos e da vivissecção são emblemáticos: quem imaginaria que poderíamos avançar nessa matéria, 50 anos atrás? E ainda assim, o debate avança. Mesmo que não tenhamos vencido, leis antivivissecção foram aprovadas no Rio de Janeiro e Florianópolis, antes de serem desfiguradas e vetadas. O simples fato de estarmos pondo as questões na agenda já indica uma auspiciosa mudança de ventos. A reação dos exploradores também não tardou - como se era de esperar - e os vivisseccionistas criam eventos, mesas redondas, publicam artigos, fazem lobby e canalizam recursos para defender seus interesses, seu meio de vida, sua visão de mundo e seu poder constituído - afinal, esta também é, principalmente, uma disputa por PODER. Estranho seria se não fosse assim! No entanto, a própria reação em si já significa uma vitória para nós: eles que antes tinham sua posição legitimada a priori, agora têm que se esforçar em convencer a sociedade de que seu ofício é legítimo, e que não pode ser de outro modo. Claro está que a pressão irá aumentar nos próximos anos, inclusive de dentro das universidades: o uso de animais vivos já está sendo abolido no ensino, e como mencionei, existem cientistas de respeito que se opõem ao modelo animal também na pesquisa. Também entre os estudantes o questionamento ético do uso de animais é crescente. Nesse mesmo perído, a União Européia já proibiu testes da indústria de cosméticos a partir de 2009, e na UE e América do Norte já existem selos que atestam que determinados produtos não foram testados em animais - um tipo de certificação que estamos tentando implementar aqui no Brasil.

E é questão de tempo até chegarmos na pecuária. Esta semana já tivemos, num veículo de comunicação de massas de grande circulação, pela primeira vez, uma matéria tratando da controvérsia do abate humanitário e o embate entre abolicionistas e bem-estaristas:

http://vista-se.com.br/arquivos/revistafolha.htm

Pode levar anos, e deverá levar MUITOS anos, mas chegaremos ao ponto de veicularmos seriamente nossa oposição à criação de animais para a alimentação e nos fazermos ouvir. Quando isto acontecer, os pecuaristas estarão na defensiva, como estão hoje os vivisseccionistas.

Claro, foram apenas pequenos passos dados até agora. E absolutamente não está garantido que seremos vitoriosos, nem quando. A história é feita de progressos e retrocessos, contradições e conflitos. Mas é com pequenos passos que se começa uma longa jornada, e eu acredito que a história humana tende a caminhar para sistemas mais livres: sempre que surge a tirania, onde quer que se imponha, ela sempre é desafiada, e acaba sucumbindo. A liberdade e sua busca são condições sine qua non da existência. A causa abolicionista se move, e progride: lenta, mas continuamente.

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PREVISÃO PARA A PRÓXIMA POSTAGEM: 16 de Setembro de 2008