segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Sacralização da Vida

Retângulo áureo...


Freqüentemente os defensores dos direitos não só dos animais, mas também dos seres humanos, são confrontados com críticas que têm pouco efeito prático, mas que pretendem-se de cunho desmoralizante: desqualificar o postulante de um determinado princípio, ou desqualificar o princípio em si. Já vimos alguns exemplos desse tipo. Em geral, essas críticas partem do pressuposto, como vimos aqui, de que o princípio é falso, ou hipócrita, ou utópico, e portanto não pode nem deve ser adotado como regra geral.

Sendo que o princípio básico dos adeptos dos direitos fundamentais (humanos e não-humanos) é, necessariamente, a VIDA, é comum, e até compreensível, que os relativistas e hegemonistas, cedo ou tarde, venham com essa afirmação: "que a vida não é um valor que possa ser generalizado". Para os antropocentristas, logicamente, a questão recai (novamente) na questão da racionalidade: apenas o ser humano (supostamente) valoriza a sua vida e deve, portanto, tê-la preservada. Para os críticos da noção de direitos humanos, em geral relativistas, a coisa fica ainda pior: nem sequer para o ser humano a vida é um valor generalizável. Essa fórmula geralmente vem acompanhada de um conceito, o qual os abolicionistas e humanistas devem todos ter ouvido ad nauseam (apesar de seus críticos se julgarem tão alternativos): o da "Sacralização da vida".

...proporção encontrada em diversas formas na natureza...


O que significa, e o que há por trás desse conceito? A idéia de "sacralização" significa que há algo sagrado, intocável. Que, para os abolicionistas (em relação aos animais não-humanos) e para os humanistas (em relação aos seres humanos) seria a vida. Por trás dele, há uma idéia de que a adoção desses princípios não passa de uma extrapolação, para o mundo leigo, de uma visão religiosa, e portanto, igualmente deslocada do mundo material e impossível de ser abrangida por ele em sua totalidade (uma vez que é impossível unificar toda a humanidade numa só religião), além de impositiva de uma moral particular. De modo geral, essa "sacralização" é identificada com o Cristianismo, para o qual, segundo algumas fórmulas, a morte é uma tragédia, evidenciada nos rituais fúnebres. E, a partir daí, um alvo fácil para céticos (em geral "revolucionários") e/ou "realistas" (em geral conservadores), prontos a nos acusar simultaneamente de ingenuidade, idealismo e teocratismo.

Em primeiro lugar, gostaria de ressaltar que não há nenhuma precisão na associação entre Cristianismo e "sacralização da vida" (apesar do mandamento "Não Matarás"). Pelo menos se considerarmos exclusivamente o cristianismo institucionalizado - aquele que construiu estruturas de poder temporal, nos templos e nos palácios. Vejamos o caso do catolicismo. Para estes cristãos, o que era sagrado não era a vida, pelo menos não neste plano físico, mas a VIDA ETERNA. Um acréscimo que faz toda a diferença, pois desloca o fundamental não para trajetória completa do indivíduo, mas para o seu encerramento: o momento da morte. O que conta é, portanto, a salvação, a purificação, materializada no ritual da extrema-unção. Não quer dizer que os atos anteriores não contam - é por isso que existem os mandamentos, e o sacramento da confissão, para expiar os pecados. Mas tudo isso de pouco conta se, no momento final, o fiel negar a Deus. Se, ao contrário, no momento final ele for tomado de sincero arrependimento, sob os auspícios do Senhor, tudo lhe será perdoado, mesmo os mais torpes pecados, e ele ganhará os céus. O resultado dessa perspectiva está longe de ser inofensivo. Vertido em instrumento de poder, o Cristianismo passou a perseguir infiéis, e a purificá-los exatamente pelo recurso a uma "solução final": para o pecador renitente, apenas o sacrifício em nome da fé é redentor. Na Inquisição (o exemplo mais famoso, mas de modo algum o único), o herege ou infiel seria queimado vivo, pois o fogo o purifica dos pecados: perde-se a vida material, mas ganha-se a vida eterna. (Os relatos da conquista da América dão conta de que os índios condenados à morte que concordavam em converter-se ao Cristianismo não eram queimados, mas enforcados: o perdão espiritual não é acompanhado, necessariamente, pelo perdão material - apenas garante uma morte "cristã".)

Em contraste, é sabido que todas as religiões e culturas tratam da questão do direito a vida e têm regras contra o assassinato. Essas regras podem variar, mas o princípio persiste. Isso por uma razão muito simples: se não há interdição do assassinato, a vida em sociedade torna-se impossível.

...inclusive no ser humano...


Claro, alguns defensores de animais - humanos e/ou não-humanos - de fato adotam a idéia de que a vida é "sagrada". Sem haver qualquer demérito nessa perspectiva eivada de religiosidade. No entanto, não deixa de ser instrutivo que a maioria dos defensores de animais que têm essa vinculação transcendental são, em geral, influenciados por certas religiões orientais - Budismo, Hinduísmo, Jainismo - e sua premissa da "não-violência" (Ahimsa). Que, por sua vez, segundo o historiador Rynn Berry, está na própria raiz da difusão do vegetarianismo e dos direitos animais no ocidente. Nada a ver, portanto, com o Cristianismo. Portanto, a "sacralização da vida" promovida pelos defensores dos animais nada tem a ver com uma moral cristã desproporcialmente distorcida e ampliada, pelo menos na maioria esmagadora dos casos. O princípio da não-violência, por sua vez, mesmo que tenha um substrato religioso, não pode ser imediatamente descartado em função disso, sem se avaliar os seus próprios méritos (como é, aliás, com qualquer ideologia, que é o que são, no fundo, todas as religiões).

Restar-nos-ía ainda, entretanto, resolver por que não é tão fácil nos desfazer da "sacralização da vida", mesmo num contexto de relativização de valores e busca egoísta da satisfação, inclusive à expensa de outros indivíduos. Ora, a resposta para isso é muito fácil. Defendemos a vida não porque ela é "sagrada", mas porque ela é o que o indivíduo (humano e não-humano) tem de mais importante, de mais precioso. Pelo simples fato de que se não há vida, não há mais nada para postular. E, uma vez vivo, há que ser LIVRE para poder desfrutar de fato da vida que se possui. Sem Liberdade, a vida é uma dádiva inútil. Qualquer um que alegue se importar com animais (humanos e não-humanos) e, ao mesmo tempo, rejeita o tese da inviolabilidade da vida, está praticando a pior forma de hipocrisia. Não há respeito possível para com um indivíduo quando lhe negamos aquilo que lhe é mais importante: a vida, a liberdade e a integridade. O respeito torna-se um princípio inútil se admitimos "relativizar" as circunstâncias em que ele é aplicado. E isso fica muito claro ao analisarmos as tragédias que decorreram de ideologias políticas que, sob apelo humanistas, colocaram sua utopia acima dos indivíduos.

Seja como for, o respeito à vida e à liberdade são, necessariamente, os pilares de nossa conduta com nossos semelhantes. Independente dos caminhos que alguém vislumbre para alcançar o ideal de uma sociedade justa, este alguém, se alega promover o respeito e a plenitude dos direitos animais (humanos e/ou não-humanos), deve partir destes dois pilares. Pelo menos neste plano físico. E, se existe outro plano, não cabe a ninguém dizer por outrem. E, seja em nome de qualquer ideologia, religiosa ou laica, ninguém pode arrogar-se o direito de decidir sobre a interrupção de vidas que não a sua própria.

...e em suas obras.


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PREVISÃO PARA A PRÓXIMA POSTAGEM: 29 de Setembro de 2008.

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