Cláudio de Godoy*
Muitas vezes, as discussões sobre direitos animais não chegam a lugar nenhum, pois sua essência não costuma ser compreendida de imediato para quem nunca havia pensado sobre isso. Conceitualmente, a idéia de estender nossos horizontes morais a outras espécies de modo coerente com os princípios que já adotamos não é uma das questões mais complexas que existem, mas as barreiras psicológicas são gigantescas e intimidadoras. Sem falar nas de ordem culinária.
A raiz de qualquer pensamento ético é emocional e reside em nossa capacidade de nos colocar no lugar dos outros. Mas todo sistema ético que se preze deve se basear na razão e necessariamente seguir os princípios da universalidade, generalidade e imparcialidade. Em miúdos: todos os agentes morais devem ser capazes de compreender por que uma determinada ação é certa ou errada, as mesmas regras devem ser aplicadas em situações semelhantes e, o mais importante, deve-se analisar as conseqüências de uma determinada ação do ponto de vista de todos aqueles que são por ela afetados.
Apesar de toda a costumeira conversa fiada sobre a suposta perda de nossa humanidade ao nos igualarmos aos “bichos”, a discussão sobre direitos animais provoca tamanho ultraje por um dos motivos mais comezinhos: a ameaça que ela traz a um dos nossos prazeres mais caros. Um autor americano, Michael Pollan, chega a comparar o vegetarianismo à abstinência sexual. Um exemplo clássico: quando se discute o uso de cobaias para se encontrar a cura dos males que afligem a humanidade, a imensa maioria dos defensores desta prática alega que jamais sacrificaria a vida de animais se houvesse uma opção viável para se chegar ao mesmo resultado nas pesquisas. Mas, a partir do momento em que são informados de que uma dieta isenta de produtos de origem animal pode ser totalmente saudável e segura, o mesmo princípio passa a não valer, pois o estômago começa a interferir no funcionamento do cérebro e começam a pipocar argumentos como o da cadeia alimentar: se o leão come gazelas, por que diabos não podemos comer o nosso bife? Alegamos que temos o direito de usar os animais não-humanos como cobaias pelo fato deles serem supostamente inferiores a nós, mas, quando convém ao nosso paladar, justificamos o fato de os comer igualando-nos a animais carnívoros que não poderiam agir de outro modo. Ou seja, para justificar os nossos prazeres à mesa, não há problema algum em sermos contraditórios e em assumirmos a nossa própria animalidade. Neste caso, a moral não passa de um subterfúgio que os vitoriosos criam para universalizar a posição que lhes convém. Sem contar que este tipo de comparação ressuscita a velha falácia naturalística, ou seja, a de que tudo aquilo que é natural seria moralmente correto. Se seguíssemos este preceito à risca, deveríamos, como bons mamíferos, legitimar a supremacia dos machos sobre as fêmeas, que é a regra entre esta classe de animais.
Toda a discussão sobre direitos animais pode ser resumida em uma única pergunta: que característica moralmente relevante todos os seres humanos possuem para ter o direito de não serem tratados como objetos que nenhum outro animal possui? É bom observar que inteligência, raciocínio lógico, domínio da linguagem simbólica, compreensão do significado de justiça e de direitos e grau de afeição que despertam não são medidas de direitos básicos. Todos os seres humanos têm o mesmo direito em igual medida de não serem usados como objetos independentemente de terem ou não estes atributos. Capacidade de fazer escolhas morais nunca foi um pré-requisito para a posse de direitos básicos.
Na verdade, este direito de não sermos usados como objetos se deve única e exclusivamente ao fato de que somos sencientes, ou seja, somos capazes de ter sensações e, conseqüentemente, temos consciência daquilo que acontece com os nossos próprios corpos e do que se passa à nossa volta. Em suma, nos importamos com aquilo que acontece conosco. Mesmo os comatosos podem apresentar um grau de consciência mínima. Também devemos respeitar aqueles que se encontram em estado vegetativo persistente, pois futuramente pode haver um meio de se reverter o seu quadro. Mas no caso de morte cerebral, o ser humano em questão deixa de ser alguém e os seus órgãos poderão ser usados para salvar a vida de outras pessoas.
Como boa parte dos outros animais também é senciente, a única razão pela qual tratamos casos semelhantes de modo diferente se deve exclusivamente ao fato de que eles não pertencem à nossa espécie. Ou seja, discriminamos indivíduos que têm exatamente os mesmos interesses básicos do que nós em virtude de uma característica biológica irrelevante para este caso. Por esta razão, a analogia do especismo com o racismo e com o sexismo é perfeitamente válida. Isso de modo algum significa que quem é especista necessariamente é um racista ou um sexista em potencial. Uma pessoa pode ser racista e, ao mesmo tempo, ser a favor da igualdade dos sexos.
É claro que os outros animais jamais poderão pertencer verdadeiramente à nossa sociedade, apesar de muitos viverem entre nós em uma situação de sujeição e dependência. Não podemos nos sentar para negociar com os ratos para que não se proliferem a torto e a direito pelas nossas cidades nem com os gafanhotos para que não ataquem as nossas lavouras. Nestes casos, existe um conflito de interesses básicos, pois estes animais estão lutando por sua sobrevivência tanto quanto nós. Se eles ainda representarem uma ameaça mesmo depois de tomadas todas as devidas medidas sanitárias e ecológicas de controle, poderemos tomar as medidas que forem necessárias para a preservação de nossa saúde e de nossos alimentos, sempre procurando causar o menor dano possível a estes animais, pois todo ser senciente deve ser respeitado na medida do possível. Também não podemos persuadir aquele Pit Bull da esquina, que é fruto da eugenia que perpetramos com as outras espécies, a não nos atacar. Neste caso, temos todo o direito de tomar as medidas que forem estritamente necessárias para nos livrarmos de seu ataque iminente. A legítima defesa é um princípio que aplicamos sem o viés especista, pois é igualmente válida se um leão ou um outro ser humano nos atacar.
Para finalizar, a afirmação de que o uso dos outros animais como objetos é chancelado pela atual legislação é irrelevante em uma discussão sobre se este uso é eticamente condenável ou não. Direitos legais não são sinônimos de direitos morais. Não podemos nos esquecer de que a escravidão já foi perfeitamente legal e de que colaborar com a fuga de escravos alheios era crime. A única razão pela qual a “estrada de ferro subterrânea” foi bem sucedida nos Estados Unidos de meados do século XIX foi a de que boa parte da população dos estados nortistas abominava a escravidão. O que está longe de acontecer em nossa atual sociedade com relação ao uso de indivíduos sencientes não-humanos como objetos, que é visto como a coisa mais normal do mundo. O nosso trabalho deve ser necessariamente educacional e não-violento, tanto por motivos estratégicos quanto por razões de ordem moral, pois os seres humanos que colaboram e se beneficiam com esta exploração não deixam de ser animais e, na maior parte das vezes, não fazem isso por mal, apesar do grau inimaginável de violência que é deliberadamente impingido a bilhões de animais. Devemos ser coerentes e aplicar em toda a ocasião o princípio de que os fins não justificam os meios. Afinal, quase ninguém foi criado como vegano desde o nascimento. No futuro, esperamos que isso seja a norma ao invés da exceção.
*Prezados leitores. A partir dessa semana, teremos um escritor convidado, Cláudio de Godoy, que irá postar junto comigo, neste espaço, em semanas alternadas.
segunda-feira, 29 de setembro de 2008
Direitos Animais: por que são tão duros de engolir?
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