Bruno Müller
Essa é uma velha discussão: qual o papel do indivíduo na história? Em uma de suas mais célebres frases, Karl Marx afirma, em O 18 Brumário de Luís Bonaparte: “Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem como querem, não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado”. Tal afirmação geralmente é percebida como a acepção de que os indivíduos estão submetidos a estruturas e relações pré-existentes, das quais não podem escapar. Levado ao extremo do estruturalismo, tal concepção nega ao indivíduo toda e qualquer possibilidade de interferir sobre a realidade e libertar-se dos condicionamentos, tese que ganhou força no século XX sob a denominação de “morte do indivíduo”.
Por outro lado, existem aqueles que vêm o exemplo de indivíduos como Napoleão Bonaparte, Vladimir Lenin, Adolf Hitler ou Mohandas Gandhi, e proclamam que indivíduos “extraordinários” podem mudar os rumos da história (seja qual for a conseqüência desse extraordinário).
Na verdade, uma análise da excepcionalidade de certos indivíduos apenas reforça a tese de que “uma andorinha não faz verão”. Qual seria a capacidade de Adolf Hitler liderar um extermínio em massa de judeus se não houvesse um anti-semitismo amplamente disseminado na sociedade alemã, combinado com a percepção de que os judeus eram uma minoria privilegiada? Como Napoleão poderia liderar os exércitos da França, sendo ele um humilde plebeu, nativo da ilha da Córsega, apenas 10 anos antes, em 1789, quando apenas aristocratas poderiam ser oficiais do exército? Como Lenin poderia ter liderado uma revolução social na Rússia, se o czarismo não tivesse mergulhado esse país na miséria e numa guerra imperialista inútil para a maioria da população? Qual teria sido o sucesso da pregação de Gandhi por resistência pacífica e desobediência civil se, em vez de indiano, ele fosse alemão ou inglês? A habilidade desses homens, indiscutivelmente talentosos, consistiu em captar com precisão o espírito da época, e usá-lo em seu próprio proveito, ou das teses que defendiam. Naturalmente, esses exemplos mostram que o indivíduo pode sim, fazer diferença, mas num nível sutil e dentro dos limites impostos pela cultura, pelas estruturais sociais, pelo contexto histórico e geográfico.
No entanto, se verificarmos o tanto que estes e outros indivíduos conseguiram operar nas suas sociedades, veremos que as mudanças promovidas por grandes líderes são, via de regra, superficiais. As estruturas apenas mudam por um processo histórico longo. Nenhum deles transformou a estrutura de poder, a forma de pensar das sociedades que lideravam – mesmo aqueles que assim desejavam. O máximo que os líderes políticos conseguem fazer é agir como artífices de uma mudança que já se delineava no horizonte.
Isso implica dizer que, de fato, nenhum indivíduo tem o poder de mudar a realidade? Não. Geralmente limita-se o debate sobre o papel do indivíduo na história à ação dos “grandes homens”, dos “grandes líderes”. A multidão, mesmo para os supostos defensores do homem comum, é formada por uma massa amorfa, que navega inconsciente das forças históricas à sua volta. O indivíduo não é nada sem a coletividade, costumam dizer essas pessoas. A sociedade só muda coletivamente. Mas, calma... E a coletividade, o que é? A coletividade pensa, vive, sofre, sonha?
A coletividade nada mais é do que um aglomerado de indivíduos. É o indivíduo, não a nação, a etnia ou a família, o núcleo central da sociedade. Pois é o indivíduo que pensa, vive, sofre e sonha. Não foi Lenin, mas os indivíduos russos que revolucionaram a Rússia. Não foi Gandhi, mas os indivíduos indianos que tornaram a Índia independente. Portanto, qualquer sistema social que não leve em consideração os interesses básicos, a integridade física e psíquica de TODOS os indivíduos é inerentemente injusto. Não basta que essa consideração esteja proclamada verbalmente – quase todos os sistemas de crenças precisam alegar que se preocupam com todos os indivíduos. De outra forma, estariam fadados ao fracasso. Me refiro às conseqüências concretas, para os indivíduos, da aplicação desses sistemas de crenças. É aqui que a maioria das ideologias falham, até porque todas elas estão sujeitas a lacunas. É aqui também que devemos verificar quem deve ter prioridade: se são os indivíduos que devem se ajustar às idéias, ou se são as idéias que devem se ajustar aos indivíduos, como eu acredito. Não apenas por questões de princípios, mas igualmente porque nenhuma mudança imposta de cima pra baixo é duradoura. Há uma mudança muito mais profunda, e muito mais sutil, que nenhum Napoleão, nenhum Hitler, nenhum Lenin, nem mesmo um Gandhi é capaz de liderar. Essa mudança é uma mudança social, sim. Mas dela depende uma mudança de consciência.
Não é a coletividade abstrata que transforma a sociedade. São os indivíduos que, coletivamente, mudam a sociedade. Essa mudança não é coordenada nem precisa ser articulada verbalmente. Mas depende de uma transformação de consciência. Foi assim que, ao longo do tempo, os privilégios de nascimento e a idéia de que há seres humanos superiores a outros têm se tornado insuportáveis, após terem sido considerados com realidades naturais por séculos. E é assim que será com o reconhecimento dos animais não-humanos como portadores de direitos inerentes e invioláveis, direitos esses derivados tão somente de sua condição de seres sencientes.
O caminho é árduo, entretanto. Pois o ser humano teme as mudanças como um desafio à sua identidade e à sua estabilidade, porque teme que a mudança comprometa, em última instância, sua própria integridade. Por isso, é mais fácil, mais cômodo e mais seguro manter tudo como está. É prático, atraente, e aparentemente convincente, alegar que “uma andorinha não faz verão”. Uma, não; mas muitas, sim. E é nisso que devemos pensar, quando confrontados com o desafio da transformação social. O desafio da libertação animal – humana e não-humana. Não é suficiente justificar nossa acomodação, supondo que nossa atitude desaparecerá numa multidão de conformismo: afirmar que um vegano não faz diferença. Pois são as pequenas e imperceptíveis atitudes individuais que põem a história em movimento, abalam as estruturas dominantes e transformam a realidade de forma duradoura e permanente – pois uma vez posta em movimento, a história não volta atrás. A mudança social passa necessariamente por duas fases: tomada de consciência e a coragem de agir em conformidade com ela. Para os animais, isso significa: promover os seus direitos, respeitá-los, boicotar e combater a exploração em todas as suas formas. Não podemos, portanto, fugir à responsabilidade que traz o despertar da consciência. Pois não é O indivíduo, mas são OS indivíduos que podem romper com a realidade de dominação e exploração que resume a experiência humana e promover um mundo verdadeiramente livre, não apenas para toda a humanidade, mas para todos os animais do mundo.
3 comentários:
gosto muito de sua abordagem ampla e trans-disciplinar em suas discussões, bruno.
valeu!
Obrigado pelo comentário, Maurício. Sempre um prazer tê-lo por aqui. ;)
Gostei muito de estar aqui vcs sabem argumentar sobre um assunto. Essa minha pesquisa foi muito valiosa pois obstrai muito conhecimento.
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