Ao examinar as opções de sobremesas em um restaurante vegetariano, uma conhecida minha vegana se deparou com a ubiqüidade do mel em sua preparação. Ao sugerir aumentar o número de sobremesas veganas ao dono do estabelecimento e, subliminarmente, questionar o uso do mel em praticamente todas elas, ela se defrontou com o seguinte argumento: o número de animais mortos incidentalmente na produção de açúcar supera de longe o de abelhas mortas para a produção de mel. Ou seja, seria legítimo explorar seres sencientes caso a opção vegana fosse mais danosa em termos globais.
Por trás deste aparente dilema existem duas abordagens éticas distintas. Se nos preocupamos mais com o resultado global das ações dos agentes morais do que com as suas intenções e não reconhecemos a existência de direitos morais, adotamos uma ética conseqüencialista, onde o que importa é o resultado global dessas ações, independentemente dos meios pelos quais eles foram alcançados. Já em uma ética deôntica ou do dever, as ações dos agentes morais devem se basear na observância estrita de algumas normas, independentemente de suas conseqüências globais.
Voltando à justificativa levantada no primeiro parágrafo, as mortes causadas pela agricultura nada mais são do que uma velha desculpa de quem não quer abrir mão de produtos advindos da exploração animal. Se nossas fontes de alimento são atacadas, é óbvio que podemos agir em legítima defesa. Ou melhor, seria mais uma questão de conflito de interesses básicos, pois as “pragas” também estão legitimamente à procura de alimento. Como não podemos persuadi-las racionalmente a não "roubar" os nossos alimentos, temos que tomar alguma medida, de preferência a que cause o menor dano possível a elas. Há métodos melhores do que o uso de agrotóxicos para proteger as nossas plantações do ponto de vista destes animais, como o da agricultura orgânica, que inclusive reduziriam consideravelmente os danos incidentais, mas, em uma sociedade que usa deliberadamente seres sencientes como recursos, a sorte das "pragas" seria uma de suas últimas preocupações. Mas uma coisa é certa: violar deliberadamente os interesses de indivíduos sencientes em uma situação de conflito de interesses básicos é bem diferente de aprisioná-los, explorá-los e matá-los para usar os seu corpos como objeto.
E quanto às mortes colaterais de seres sencientes resultantes de nossas atividades cotidianas? Existe uma grande diferença entre causar um dano deliberadamente e causar um dano incidentalmente. No primeiro caso, temos a intenção explícita de violar um interesse alheio. No segundo caso, não temos a menor intenção de causar danos a ninguém, mas estamos cientes de que há uma grande probabilidade de que eles ocorram e de que é praticamente impossível evitá-los, pois, a não ser que nós moremos na estratosfera e nos alimentemos apenas de ar, a maior parte do espaço que ocupamos necessariamente é fruto da expulsão de outras criaturas de seu território e tudo aquilo que nós consumimos e descartamos na maioria das vezes causa danos a terceiros. Temos o dever de minimizar estes danos, mas, pelo menos com a atual tecnologia, é humanamente impossível reduzí-los a zero.
Na grande maioria das vezes, a pecuária é responsável por um número bem maior de mortes indiretas, pois, se for intensiva, implica na produção de grãos para alimentar os animais que poderiam ser consumidos diretamente por muito mais pessoas, e, se for extensiva, exige uma superfície bem maior de pastagens para gerar a mesma quantidade de nutrientes que poderia ser produzida em uma superfície bem menor com o cultivo de vegetais. Mas mesmo se a criação de animais causasse menos danos colaterais do que a agricultura, ainda assim teríamos o dever de não usar nenhum indivíduo senciente como recurso, pois os deveres diretos sempre se sobrepõem aos deveres indiretos em uma ética baseada no dever. É o que se verifica no caso das abelhas: teríamos que preferir consumir uma quantidade de melado de cana cuja produção causou a morte de milhares de indivíduos ao invés de explorar deliberadamente as abelhas para a obtenção de seu mel.
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