sábado, 3 de julho de 2010

Copa do Mundo, Ufanismo e Fascismo

Desde a ditadura militar discute-se muito a relação entre futebol (e Copa do Mundo) e política. A influência é mútua, mas nem sempre tão óbvia e mecânica quanto alguns supõem. O esporte pode ser um espelho da sociedade e dos sentimentos, princípios que ela acalenta, dos seus contrastes, qualidades e defeitos. Isso fica evidente nos exemplos do Brasil, França e Alemanha na Copa de 2010.

Brasil

Como disse no texto anterior, no Brasil, temos uma sociedade injusta com uma elite corrupta, que só descobre a solidariedade nacional em época de Copa do Mundo. E, infelizmente, um povo que compra essa farsa. Como não me vejo representado por essa sociedade, e menos ainda pela sua elite, e como tenho total aversão pelo nacionalismo e ufanismo, não me contento em não torcer pelo Brasil. Eu torço contra, mesmo. Com orgulho.

Ver o Brasil eliminado vai além da satisfação de calar a boca do Galvão Bueno. Melhor que estancar a verborragia do narrador, é estancar aquilo que ele cospe: o ufanismo, o supremacismo, a paixão cega, a presunção de superioridade, a vontade de ganhar a qualquer custo, mesmo com gol de mão, a complacência com os erros que beneficiam associados à indignação quase homicida com que denuncia o erros que prejudicam. Qualidades que seriam muito úteis em caso de guerra, e que caem como uma luva sobre as aspirações imperialistas do Estado brasileiro.

Ah, que delícia ver tudo isso cair por terra. Pena que, assim como a vitória no futebol é apenas simbólica, a derrota também é. O ufanismo apenas adormeceu, mas continua vivo, pronto para despertar novamente, daqui a quatro anos, ou na próxima crise diplomática ou, pior, em caso de uma improvável guerra ou, o que é bastante provável, à medida que o Brasil vai ocupando o seu lugar de direito na arena internacional: o de potência imperialista. O Brasil é um Estado imperialista, não tenham dúvida disso. Os brasileiros, que amam odiar os norte-americanos, como eu disse na postagem anterior, compartilham com eles os mesmos defeitos da arrogância, da empáfia, do ufanismo, do preconceito, e por aí vai... Apenas não tiveram tantas oportunidades de demonstrá-lo quanto nosso vizinho do Hemisfério Norte.

França

Na Europa, o que temos visto em campo é o confronto entre racismo e multiculturalismo. Se no Brasil a Copa do Mundo desperta o ufanismo, na França, tem despertado o racismo. Os dois fenômenos, que para o observador desatento parecem tão distintos, são na verdade lados de uma mesma moeda. A Copa do Mundo é como uma guerra, uma guerra estilizada, coreografada, domesticada. Mas os sentimentos primais que ela desperta são aqueles do conflito armado. Será melhor canalizá-los em ambiente controlado para que não transbordem no mundo real? Talvez. Mas a semelhança é atordoante.

E, em tempos de globalização e pós-colonialismo, na Copa, além do tradicional conflito entre “nações”, testemunhamos os conflitos de um país contra si mesmo. Foi o que vimos na França, dividida entre os “puros” e a “escória”, como o presidente francês chamou os jovens da periferia que se rebelaram em 2005. E quem é essa escória? Os imigrantes, os descendentes de árabes, de africanos, das ex-colônias, filhos de um problema que os franceses, como outras potências colonialistas, criaram, com o racismo, imperialismo, ganância e espoliação que fizeram da África o continente mais pobre do mundo. Agora, os franceses e outros países europeus não querem assumir o problema que eles próprios criaram, acolhendo os imigrantes dos países que um dia dominaram.

A eliminação da seleção francesa despertou o fascismo adormecido no seio da sociedade francesa, logo ela, terra da Liberdade, Igualdade e Fraternidade. A crise e as brigas entre jogadores, e técnico, em vez de retrato de um time decadente, ruim, e de um treinador incompetente, viraram questão de Estado: falta de patriotismo, de identidade nacional, de respeito pela bandeira francesa. Ou seja: o perfeito espelho do que comentei antes sobre como o nacionalismo e o patriotismo são a antessala do fascismo, e o quanto isso está latente no esporte, quando se colocam um país contra o outro.

Me chamou atenção numa das reportagens de TV explorando o furor xenófobo da extrema direita francesa, motivado pelo fracasso da sua seleção, as palavras de um menino da periferia, de origem africana, dizendo: “eu não torço pela França”. Eu me vi naquele menino. Se eu fosse um menino francês da periferia, certamente também não torceria, como não torço pelo Brasil.

Na Copa da 1998 a França foi campeã com uma equipe saudada internacionalmente como o triunfo do multiculturalismo, uma seleção composta por esses jovens pobres da periferia, muitos deles descendentes de árabes e negros. O melhor jogador daquela equipe, o melhor jogador de sua geração, Zinedine Zidane, é filho de argelinos – ele foi o primeiro da sua família efetivamente nascido na França. No entanto, a extrema direita não comemorou a vitória. Ela não via naquela seleção, e no sonho de integração que ela representava, a “verdadeira” França. Agora, tiveram a oportunidade de contra-atacar.

Alemanha

E o filme vem se repetindo com a Alemanha, já nas semifinais da Copa. Na Alemanha a cidadania é regida por direito do sangue (jus sanguinis): só é cidadão alemão quem tem sangue alemão. Se você é descendente de imigrantes, mesmo nascido em território alemão, não tem direito a cidadania. Se isso não é racismo, então eu não sei o que mais pode ser. Pois bem, a seleção alemã é composta por três poloneses (incluindo os dois atacantes titulares) e um brasileiro, todos naturalizados, e um descendente de turcos (Özil, um dos destaques do time), outro de espanhóis, um terceiro de tunisianos, um quarto de ganeses (Boateng, também titular) e, por fim, de nigerianos. Nenhum deles teria direito à cidadania alemã se não tivessem uma utilidade para o Estado alemão, para o orgulho alemão, para o patriotismo alemão, na figura de um título mundial de futebol. A estagnação do futebol alemão “puro” abriu as comportas da cidadania para estes jovens que, de outro modo, seriam estrangeiros no país onde vivem – mesmo tendo nascido lá, ou lá vivido desde a infância, como é caso dos poloneses Klose, Podolski e Trochowski.

É bom que isso aconteça? É bom que esses jovens, que de outro modo seriam excluídos, se tornem instrumentos do patriotismo alemão? Talvez. Quem sabe eles não ajudem a reduzir o fosso que separa os alemães “étnicos” dos “falsos” alemães? Seria ótimo se isso acontecesse, e ajudasse a promover uma sociedade inclusiva e multicultural, em vez de movida por um racismo anacrônico. Mas, como o caso da França demonstra, o racismo e protofascismo latentes podem não aceitar essa “derrota”, à espreita do momento do contra-ataque.

Nós e Eles

Quero ressaltar, com muita clareza, que não se deve generalizar o racismo europeu, um argumento muito brandido no Brasil para alimentar nosso próprio ufanismo – e, portanto, ele mesmo uma forma de racismo: “nós” e “eles”. “Nós”, o Brasil, o país hospitaleiro, de povo caloroso e democracia racial. “Eles”, a Europa, o continente frio, composto por brancos fascistas e racistas.

Aqui no Brasil também existe não só racismo, como xenofobia. Os imigrantes da América do Sul, bolivianos, paraguaios, chilenos, também são vistos com desconfiança e desprezo. Dois fatos demonstram isso com clareza: uma pesquisa recente que mostrou que a maioria dos brasileiros é a favor de leis restritivas de imigração; e o abjeto caso de imigrantes bolivianos que viviam em situação de escravidão na CIDADE de São Paulo, a MAIOR cidade do país, e também a de maior diversidade cultural.

Por outro lado, a juventude européia é bastante progressista. Conheci jovens portugueses e alemães que conviviam bem entre si, e com os descendentes das ex-colônias, e execravam o racismo de seus pais e avós. Essa juventude que, graças à União Europeia, está em constante contato com jovens de outros países – há um programa oficial da UE de intercâmbio estudantil que leva muitos estudantes de um país a outro – e também de outras culturas.

Não deixa de ser auspicioso que Europa, tão execrada por seu passado colonial e imperialista, e seu racismo histórico, esteja começando a derrubar as amarras irracionais da identidade nacional, através da integração regional na União Europeia. Há três problemas nesse processo: primeiro, que a própria UE tem se constituído como um Estado supranacional burocrático, e não democrático; que esse Estado está a serviço do capital, e não do povo comum; que exclui não só os estrangeiros, mas também os pobres, da plena cidadania e participação na prosperidade – mas que são forçados a compartilhar a crise gerada pela ganância, corrupção e incompetência dos capitalistas e governantes; e que a propalada “identidade europeia” que pode suplantar as identidades nacionais particulares de cada país pode acabar sendo apenas uma versão pós-moderna, multicultural, do mesmo nacionalismo excludente de tudo aquilo que for estranho, diferente, “estrangeiro” – no caso, de tudo que não for europeu.

Não obstante, o efeito que essa integração pode ir muito além disso. O efetivo contato entre os jovens desses diferentes países, esses jovens acostumados ao contato transcultural, pode conduzir a Europa para além dos limites impostos pelo Estado e os burocratas. É possível que essa nova geração enterre de vez o mito da superioridade ariana, não apenas nos gramados, mas, muito mais significativamente, nas escolas, locais de trabalho, parlamentos? Talvez...

Mas não podemos esquecer, novamente, que esse não é um problema exclusivamente europeu. Aqui no Brasil, também temos um Estado mais burocrático que democrático; mais elitista que popular; mais excludente que inclusivo; e muito propenso a um nacionalismo ufanista e levemente xenófobo. Levemente, diga-se de passagem, porque tem poucas oportunidades de se manifestar em todo o seu brilho – como se manifestou em outras épocas, contra imigrantes portugueses no início do século XX, e contra imigrantes alemães e japoneses, na época da Segundo Guerra Mundial.

Tais problemas não são específicos deste ou aquele país, desta ou aquela cultura. O racismo e a xenofobia são fenômenos universais que podem ser explicados pelo ponto de vista histórico e antropológico. Justamente por isso, é bom estarmos atentos ao nosso próprio fascismo interno, em vez de apenas apontarmos o dedo acusador. Da forma como construímos o discurso a partir de uma dicotomia “Nós” e “Eles”, ao mesmo momento em que execramos o racismo e a xenofobia europeia, estamos reproduzindo e estimulando um racismo e xenofobia genuinamente brasileiros.

Como se vê, a realidade nunca é tão simples como se quer crer – como geralmente querem crer os ufanistas de plantão e fascistas enrustidos. A visão de mundo simplória apenas favorece essas ideologias irracionais, excludentes e violentas. Disso tudo, fica a esperança de que realmente cada um desses países aprenda a sua lição: superar o racismo, deixar de lado o nacionalismo e, se seria demais pedir que abrissem mão desse patriotismo arcaico que move os Estados “nação”, que pelo menos não o usem como ferramenta de exclusão. Que reconheçam que a cidadania é um direito humano, que independe de origem e de nascimento – aliás, um direito humano reconhecido pela Declaração Universal de 1948.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Cinco motivos para torcer contra o Brasil nesta Copa do Mundo (e em todas as outras)

1. O patriotismo, nacionalismo e ufanismo são as ideologias mais desprezíveis do mundo. “Mas e quanto ao racismo e o fascismo?”, dirão alguns. Bem, o fascismo nasce justamente do cruzamento do racismo imemorial com o orgulho nacional do século XIX. patriotismo, ufanismo e nacionalismo são a antessala do fascismo. Nessa Copa, em especial, nunca vi uma abordagem tão belicista e ufanista, estimulados pela imprensa, a propaganda, a comissão técnica dessa seleção. Parece que estamos indo para a guerra. Pois bem, se vamos pra guerra, eu estou desertando desde já.

“O patriotismo é o último refúgio de um canalha” Samuel Johnson

“O nacionalismo é uma doença infantil; é o sarampo da humanidade” Albert Einstein

2. O Brasil é os Estados Unidos do futebol: a potência imperialista, gananciosa e supremacista. Quando se trata de futebol, os brasileiros sentem-se superiores, contam vantagem, querem ganhar sempre e em tudo. Nossa arrogância, preconceito e ganância futebolísticas deixam antever o que nós seremos no dia em que formos potência em alguma coisa realmente importante. E tome da ridícula rivalidade com a Argentina, da gananciosa ambição de vencer sempre, de se sentir melhor que todos os demais povos e países só porque temos mais títulos no futebol.

3. Não existe essa história de “a seleção representa o seu povo”. Balela. A seleção representa o Estado. Existem Estados sem povo, e povos sem Estado. Quem tem bandeira e representação na ONU, FIFA e COI são os Estados, não os povos. E o Estado brasileiro é um dos mais detestáveis dentre todos, controlado por uma elite abastada que vive à custa da espoliação, exploração, injustiça, violência. Corrupção, trabalho escravo, voto de cabresto, clientelismo, coronelismo, autoritarismo: isso (e muito mais) é o Brasil. Não serei eu a torcer para que esse Estado conquiste láureas e honrarias, mesmo que simbólicas.

4. O futebol é como um tumor cerebral: estupidifica e aliena. Enquanto houver uma bola rolando, o brasileiro esquece da espoliação e exploração acima mencionadas. Se você der ao brasileiro a opção de ter o padrão de vida sueco, e a seleção de futebol medíocre daquele país, o brasileiro vai optar por continuar miserável e craque de bola. Ainda que seja justamente a carência de motivos de alegria que torne o brasileiro tão dependente do futebol, será apenas quando superarmos essa obsessão futebolística que iremos progredir em termos políticos, sociais, éticos, etc.

5. Além de alienante, o futebol é irritante. Quanto antes acabarem os fogos de artifício, gritos e cornetadas, melhor. Vamos voltar à realidade e, quem sabe, fazer alguma coisa de útil com as nossas vidas.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Lula e o Nobel da Paz: era só o que faltava!

Muitos falam do complexo de vira-lata do brasileiro. Contudo, talvez justamente por isso, os brasileiros querem ser os melhores em tudo. É provavelmente uma forma de compensar a miséria material, intelectual e moral em que vivem. E nesse aspecto, nosso presidente não poderia ser mais representativo. Já havia dito uma vez o ex-presidente argentino Néstor Kirchner: Lula quer eleger até o papa.

Inebriado pelo poder e a popularidade, cercado por uma corte que o cultua quase como uma figura messiânica - e que promove esse culto da personalidade país afora - enamorado por sua própria trajetória, de retirante a presidente, parecia inevitável que Lula não se contentasse apenas em ser o Messias do Brasil. Já faz algum tempo que está no ar essa idéia de indicá-lo ao prêmio Nobel da Paz. Era de fato apenas uma questão de tempo até que ela se concretizasse, como de se esperar, pelas mãos de um dos integrantes do círculo íntimo do culto lulista - no caso, o Senador Aloízio Mercadante.

O governo Lula foi um sucesso sob diversos aspectos. A economia do país cresceu, superamos uma crise econômica sem maiores traumas, houve melhora nos indicadores sociais. Pessoalmente também acho, ao contrário do que afirmam seus detratores, que sua política externa foi um sucesso. O que o governo tucano de FHC tentou pela via da associação minoritária com as grandes potências ocidentais, Lula conseguiu pela via da liderança dos desvalidos do "Sul": projetar o país como uma potência emergente, com futuro de protagonismo na Ordem Internacional. O novo desenho geopolítico já se delineia no G20, destinado a superar o G7, e no qual China e Brasil, dentre outros emergentes, são recebidos não como sócios minoritários, mas como parceiros das grandes potências.

Contudo, reconhecer esse sucesso é muito diferente de concordar com os princípios e "valores" que nosso presidente promoveu nessa caminhada. Projetar-se como porta-voz dos povos e países da periferia do capitalismo não passa de uma figura de retórica, bem sucedida, sem dúvida, mas longe de ser honesta, como querem fazer crer alguns, e menos ainda de ser coerente.

Nosso presidente vem cuidadosamente cultivando esse papel de potência benéfica, liderando uma força de paz no Haiti, buscando papel de mediação nos conflitos do Oriente Médio, projetando uma imagem de promotor da democracia, justiça, direitos humanos... Será mesmo? Olhemos o quadro mais de perto...

Não nos perguntemos tanto se Lula é merecedor do Nobel da Paz - essa questão fica mais para o final. Perguntemos primeiro se ele é um homem da paz.

É um homem da paz quem visita Cuba no dia da morte de um prisioneiro político e culpa o preso???? Que tem coragem de comparar presos políticos cubanos com criminosos comuns de São Paulo???? É um homem da paz quem defende a ditadura iraniana e chama os protestos contra fraude nas eleições de briga de torcida de futebol, ignorando, além da mobilização popular, a violenta repressão com que o tal governo respondeu aos manifestantes???? É um homem da paz quem vai à África, aperta a mão de ditadores, e tenta convencer seus governos a produzir monocultura exportadora de agrocombustíveis em países pobres, com escassez de terras férteis e flagelados pela fome???????????

Trata-se de fatos incontestes. Nosso governo se aproximou de todas as ditaduras do mundo que consigo lembrar, com as quais estabeleceu relações muito amigáveis. Ainda no primeiro mandato, fez aquela cúpula Árabe-Sul Americana, sem dúvida um grande sucesso para as relações comerciais, cujo documento final, claro, não menciona a palavra "democracia", já que a única democracia árabe no mundo é o Líbano. O próprio acordo que nosso presidente acabou de firmar com o Irã como parte dessa sua estratégia de se credenciar ao Nobel da Paz foi uma parceria com a Turquia, o mesmo país que oprime os curdos com a mesma disposição que os israelenses oprimem os palestinos, mas sem causar 10% da comoção internacional.

A única verdade ainda controversa em relação à política externa "progressista" do governo Lula refere-se à forma como ele devolveu a Cuba dois pugilistas que desertaram durante os Jogos Pan-Americanos de 2007, em circunstâncias ainda hoje nebulosas. À época alegou-se que os pugilistas "se arrependeram" e se entregaram voluntariamente. Mas ninguém da imprensa, nem organizações de direitos humanos, teve acesso aos dois, a devolução se fez em velocidade relâmpago, e o fato é que um deles voltou a desertar na segunda oportunidade que teve - certamente um "mercenário" muito volúvel...

A política externa do governo Lula pode ser um sucesso de relações públicas e de benefícios comerciais, mas certamente nada tem a ver com a promoção da paz, e sim com a promoção dos interesses de "Estado" - leia-se, os interesses de meia dúzia de parasitas que prosperam nesse país à custa da corrupção governamental e da exploração econômica.

O mesmo presidente promotor da "Paz" lá fora é aquele que, aqui dentro, não só apazigua como protege algumas das oligarquias mais atrasadas do país - os Sarney, os usineiros e toda a máfia das Alagoas contra as quais ele tanto vociferou no passado, e até mesmo políticos envolvidos em casos de escravidão humana e condições de trabalho análogas à escravidão. Agora mesmo Lula está enquadrando o PT maranhense para manter intacto o feudo dos Sarney. Basta olhar para os aliados dele para deduzir o tanto de decência e caráter dessa pessoa.

Não nego que o governo Lula deu algumas esmolas aos pobres. Não nego também que receber esmola é melhor do que morrer de fome. Mas os ricos lucraram muito mais com o seu governo, além das esmolas terem sido um ótimo negócio para o seu governo, pois lhe garantiu os votos necessários para a reeleição, e a eleição do seu preposto este ano. Se a direita brasileira fosse inteligente, teria pensado nisso antes.

Dizer que esse homem promove "ações em busca da paz, do diálogo, da democracia, da justiça social e igualdade de direitos", como dizia a corrente de email pela qual recebi a notícia da campanha pelo Nobel, não passa de um escárnio criminoso e desrespeitoso com as vítimas dos regimes que ele tanto admira, e um escárnio com os próprios cidadãos brasileiros vitimados pelo abuso de poder, a perseguição política, a hiperexploração econômica, alguns dos métodos típicos dos aliados políticos do presidente.

Diz-se que "quem cala, consente". Só que ele não silencia: ele CONSENTE abertamente, o que o torna um cúmplice ativo das violações dos direitos humanos em Cuba, na Líbia, na Turquia, no Irã, na África e também no Maranhão, Alagoas, Pernambuco e onde quer mais que ele passe nas suas lamentáveis viagens internacionais e acordos regionais.

A participação do governo na mediação de conflitos do Oriente Médio tem importância estratégica, tanto do ponto de vista político - pelos dividendos em publicidade - quanto econômico - dada a importância da região para o comércio mundial. A propalada solidariedade com a causa palestina ou contenção da sanha belicista estadunidense, agora às voltas com o Irã, pode até ter alguma motivação ideológica para além do frio cálculo estratégico, mas certamente tem muito pouco a ver com valores humanitários. A democracia que nosso governo defendeu tão acirradamente em Honduras está ausente do Irã, como está ausente de Cuba. A solidariedade com os palestinos não existe no caso de povos oprimidos em outras regiões onde combater tal opressão não é relevante ou desejável - como no caso supracitado dos curdos, ou dos tibetanos e uigures. E é um argumento pobre dizer que nosso governo não protesta diante das violações dos direitos humanos em Cuba ou Irã por respeito à autodeterminação, princípio basilar da política externa brasileira. Primeiro, porque este governo não se furtou de intervir em outras circunstâncias - como o próprio caso de Honduras. Segundo, porque o respeito pela autodeterminação não equivale à defesa aberta que Lula fez desses regimes autoritários. Ele os defendeu porque quis, por afinidade ideológica ou cálculo estratégico, e não por respeito ao princípio da autodeterminação. Em qualquer dos dois casos - afinidade ou cálculo - tal defesa mostra incontestavelmente a qualidade e credibilidade das credenciais deste governo para falar em paz, democracia e direitos humanos.

Não é questão de afirmar que nosso governo seja pior que os demais, em matéria de coerência ou compromisso com valores humanitários. Todos os regimes são hipócritas - daí porque a diferença, acima sugerida, entre ser um homem da paz e um merecedor de um Nobel da Paz.

O Nobel já foi concedido a muitos e verdadeiros lutadores e lutadoras pela paz, justiça, liberdade, direitos humanos. Contudo, ele é um símbolo poderoso, e consequentemente submetido a todo tipo de pressão e barganhas políticas. O Nobel também já foi concedido antes a belicistas como Henry Kissinger, ditadores como Anwar Sadat, imperialistas como Theodore Roosevelt, picaretas como Al Gore. Para não falar do atual Nobel da Paz, Barack Obama, que na mesma semana em que era laureado, anunciava uma escalada militar no Afeganistão...

Se formos rigorosos com os conceitos de "paz" e "promoção da paz", não haveríamos de conceder tal láurea a nenhum, ou quase nenhum, chefe de Estado - quase todos têm as mãos sujas de sangue. E nosso presidente, por associações nada sutis, está indubitavelmente incluído nesse tão "nobre" e seleto clube. Nenhuma pessoa provida de inteligência e integridade pode compactuar com essa farsa. Compactuar é lavar nossas mãos com o sangue que está nas mãos desses homens "da paz".

segunda-feira, 29 de março de 2010

O PT e a Nova Classe Dominante

O marxismo ortodoxo já dava conta do fenômeno que quero abordar nesse texto. Não chega a ser, portanto, uma novidade. Trata-se da transformação social e política que vemos hoje acontecer com o PT, mas que tem relação inclusive com a própria origem do partido.

O PT já nasceu com o impulso de uma categoria privilegiada dentro da classe operária, os metalúrgicos de São Paulo, trabalhadores do estado mais rico do país, uma categoria estratégica pela indústria em que atuavam e a importância dela para o desenvolvimento do país, um dos sindicatos mais bem organizados e salários comparativamente acima da média do proletariado nacional. Aquilo que Marx chamou de aristocracia operária, que pode ser facilmente cooptada pelo sistema e passar a agir segundo os interesses da conservação do mesmo.

Com o tempo, os sindicalistas que deram origem ao PT, quanto mais se distanciavam do trabalho operário e mesmo da ação sindical, foram se constituindo em um alto clero operário, cada vez mais passíveis de acomodação dentro do sistema, o que se revela na crescente moderação do discurso político do PT e a tendência à conciliação, que culminou na Carta aos Brasileiros de 2002, antes das eleições que elegeram, pela primeira vez, Lula como presidente do Brasil.

Àquela altura Lula era já líder nas pesquisas com uma vantagem relativamente sólida. É questionável a eficácia eleitoral da Carta, diante de uma população desiludida com 4 anos de estagnação que se viu no segundo mandato do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Desde o início do segundo mandato de FHC, com a maxidesvalorização do Real que empobreceu as classes média e baixa da população, logo após a reeleição (embora já fosse evidente sua inevitabilidade antes das eleições de 1998, mas adiada para não prejudicar a candidatura à reeleição, o que constitui um verdadeiro estelionato eleitoral), seu governo, desacreditado e sem força, não aprovou nenhuma reforma, não adotou nenhuma política significativa, apenas se arrastou lentamente até o fim, estagnado política e economicamente, com altas taxas de desemprego e baixo índice de crescimento econômico. Estava nítido que aquela era a eleição que Lula tinha mais chances de vitória, e de fato contribuiu para isso a crescente moderação de seu discurso. A Carta aos Brasileiros, porém, serviu muito mais para apaziguar a classe financeira e empresarial brasileira e estrangeira, acenar para sua tranqüilidade, e uma colaboração, após a eleição.

Malgrado essa moderação e crescente acomodação dentro do sistema, o ativo do PT, sua credencial política, continuou (e continuará, por alguns anos) sendo a defesa dos “interesses” do trabalhador e dos mais pobres, assim como na esfera internacional o governo Lula se projeta como um porta-voz dos países pobres e excluídos das benesses da ordem internacional. É esse o discurso que legitima o partido, o credencia a ser competitivo nas eleições majoritárias e, em última instância, lhe dá sentido e razão de ser. Porque na prática, seu governo pouco difere do governo do PSDB, seu arquirrival.

O escândalo do mensalão apenas desnudou o projeto petista de perpetuação no poder, e o tão alardeado aparelhamento do Estado resulta menos de um projeto revolucionário de infiltração insidiosa, como sugere a imprensa conservadora, e mais de um vício patrimonialista que sempre ocorreu, com qualquer partido que ocupou o poder na Nova República. Enfraquecido pelo escândalo, o que o PT fez foi acenar ainda mais para a direita e as bancadas corporativistas do Poder Legislativo, abrindo mais espaço para o PMDB e algumas oligarquias das quais sempre foi adversário ideológico, notamente os Sarney no Maranhão, Collor, Calheiros e usineiros em Alagoas. E até deputados envolvidos em casos de trabalho escravo. Triste ironia para um Partido que se intitula “dos Trabalhadores”.

Hoje, as únicas características que entregam a origem esquerdista do partido são os seus vícios, e não suas virtudes: o autoritarismo, a estatolatria, o antiamericanismo (controlado e moderado, mas latente) e a simpatia mal disfarçada por regimes autoritários que desafiam a ordem internacional, mesmo que a ordem alternativa que eles vislumbram seja, no mínimo, igualmente questionável e, em verdade, retrógrada, reacionária e igualmente demófoba. Até mesmo a tão propalada política estatizante (não confundir com a estatolatria acima mencionada), as medidas de expansão de crédito e do mercado interno adotado para confrontar a crise financeira internacional não credenciam o PT como um partido de esquerda, e sim com uma social democracia capitalista e desenvolvimentista. Tanto ou até mais que a classe média, tais medidas favoreceram o empresariado industrial, que se tornou o grande fiador político e eleitoral do PT.

Já foi dito também que o PT se tornou uma máquina eleitoral apoiada sobre quatro pilares. Primeiro, as medidas assistencialistas e populistas como o Bolsa Família, que em vez de promoverem uma verdadeira emancipação política e econômica tornam os mais pobres dependentes e, em última instância, funciona como uma grande chantagem eleitoral e esquema de compra de votos. Intimamente vinculada a esta, a aliança com oligarquias e forças conservadores e retrógradas nas regiões mais pobres do país, notadamente o Nordeste, mas também no Centro-Oeste e no Norte do país. A política desenvolvimentista já mencionada, que angaria o apoio do empresariado industrial relegado pelo governo tucano. E, por fim, o fenômeno ainda por ser estudado dos fundos de pensão. A elite financeira, por sua vez, não tem muito do que reclamar. Enquanto as migalhas do Bolsa Família criam um novo clientelismo entre os pobres, os milhões (e a política ortodoxa dos juros) mantêm os banqueiros domesticados e satisfeitos. Não se pode negar a astúcia política do PT, o que é algo totalmente diferente de dizer que essa inteligência seja pautada por ideais emancipatórios.

Os fundos de pensão, nesse esquema, funcionam como foco de influência e captação de recursos, como o recente escândalo do Bancoop revela. Porém, ele revela um outro fato, para mim muito mais importante, porém obviamente pouco explorado pela imprensa conservadora. O PT passa a roubar da própria classe da qual é oriunda, e à qual diz representar, a classe trabalhadora. Os grandes sindicatos, a CUT e até mesmo o MST foram mantidos sob controle, não por chantagem ou repressão, mas pelo simples fatos de serem parceiros do atual governo. A CUT sempre foi o braço sindical do PT, isso é de domínio público. Dizer que a CUT se tornou “pelega” significa tão somente a decorrência lógica desse fato. Não foi compra nem cooptação, pois ambos, CUT e PT, partilham dos mesmos princípios. A CUT é a própria personificação da aristocracia operária. O que isso demonstra de forma nítida, e de importância sociológica fundamental, é que os líderes sindicais vinculados ao PT deixaram, há muito, de ser representantes das suas categorias e da classe trabalhadora de modo geral. Eles se tornaram, isso sim, uma fração da classe dominante, uma nova elite que, do mesmo modo que o PT, credencia-se ao poder pelo ativo da “representação” dos trabalhadores e a força política e os recursos econômicos daí advindos, mesmo que pelo meio da pilhagem.

Isso fica ainda mais óbvio quando analisamos a mudança da posição histórica do PT contra o imposto sindical. É esse imposto que financia a elite sindical e a permite viver eternamente do sindicalismo, afastado do dia-a-dia da classe que diz representar, e absolutamente descompromissada com a defesa dos interesses e direitos da mesma. A nossa estrutura sindical foi habilmente montada pelo falecido Getúlio Vargas para submeter e apaziguar a classe operária, tendo a liderança sindical como intermediária (daí o termo “pelego”, que é originalmente a sela que é usada para apoiar o cavaleiro sobre o cavalo, ou seja, o “intermediário” que torna a montadura mais suave para o cavalo e o cavaleiro).

Como ouvi certa vez de um trabalhador de linha de montagem, um proletário clássico: essa estrutura sindical desenhada para promover o peleguismo tem como sua pedra fundamental o imposto sindical compulsório, pago mesmo pelos trabalhadores não sindicalizados. Ele garante a sobrevivência do sindicato, enriquece a ele e aos seus dirigentes, torna-os subsidiários e, consequentemente, sustentáculos do sistema e, por fim, desobriga-os de defender sua classe de origem. Ele concluiu: se a contribuição fosse voluntária, os sindicatos precisariam correr atrás da filiação e contribuição do trabalhador, e para isso teriam que mostrar “serviço”. Teriam de ser muito mais aguerridos, coerentes e radicais na defesa de suas categoria e classe. Acabaria, portanto, essa promiscuidade com governos populistas como foram os da República Média (entre 1945 e 1964) e, agora, do governo Lula. Não se pode nem mesmo dizer que seja um fenômeno recente, portanto.

Essa domesticação dos sindicatos, verificável em todas as democracias ocidentais modernas, resultou precisamente da elitização e aristocratização de sua liderança, resultando em elite sindical moderada, de retórica por vezes afiada, mas prática conservadora, pois não apresenta um desafio de fato à estrutura política e econômica desses países. No século XIX os sindicatos arrecadavam dinheiro justamente para proteger os trabalhadores nos momentos mais críticos – naquela época, não se podia contar com o salário em caso de greve. Isso só era possível porque então os sindicatos eram genuinamente constituídos pelos trabalhadores. O que era um instrumento de luta, com a moderna estrutura sindical tornou-se um instrumento de enriquecimento. Se no século XIX as greves eram momentos de enfrentamento, hoje elas são acontecimentos pontuais destinados a obter concessões pontuais da classe dominante, ou questionar injustiças mais flagrantes. Foi assim que, graças à social democracia e domesticação do pós-Guerra, à qual apenas os Partidos Comunistas opunham resistência, a luta por justiça social passou a viver numa estéril e falsa dicotomia entre legalismo e revolução violenta. A esquerda radical vive de pregar a revolução armada, mesmo que jamais tenha as condições ou disposição de fazê-lo, alienando-se completamente da classe da qual diz ser vanguarda. Os grandes sindicatos e partidos “dos” trabalhadores, por sua vez, jamais ousam questionar a legalidade, mesmo que por meios pacíficos e de modo não-violento. O princípio da não-violência e da resistência pacífica foi completamente abandonado e esquecido.

No governo do PT, nem mesmo o reformismo tem espaço. Por mais lesados que possam ser, os trabalhadores reféns da estrutura de poder sindical petista se vêem absolutamente impotentes diante do atual governo. Apenas alguns questionamentos pontuais são possíveis, como no combate ao fator previdenciário e a defesa da redução da jornada de trabalho. Mas são estas mais peças de retórica do que efetivas bandeiras, pois as grandes mobilizações estão de lado, a pressão sobre o governo é tímida, quase envergonhada. Nenhum questionamento estrutural, enquanto o governo segue com uma política francamente elitista e se apóia sobre as forças mais conservadoras e antipopulares. Isso ficou nítido na defesa do ex-presidente Sarney, mesmo diante de repetidas acusações de corrupção, mesmo diante da sua prática inquestionavelmente antidemocrática no seu feudo particular que é o Maranhão, onde a imprensa é amordaçada e a população vive na miséria. E o mesmo governo que dá guarita a este tipo de política tem o disparate de afirmar que é defensor dos excluídos e da democratização da imprensa. Mentira que é ratificada pelas grandes centrais sindicais e lideranças de movimentos sociais, o que prova que, longe de serem comprometidos com a classe trabalhadora, estes são cúmplices e sócios minoritários de um projeto de poder de elite.

E é esta a conclusão que podemos chegar: as ditas lideranças populares da classe trabalhadora há muito deixaram de fazer parte da mesma, para se transformarem elas mesmas numa fração da classe dominante, parte da elite. O confronto entre PT e PSDB reproduz não um confronto ideológico, nem tampouco um confronto de classes, mas um confronto entre facções da elite, fenômeno também descrito por Karl Marx já no século XIX e que define a política dos países ocidentais altamente industrializados, na Europa e América do Norte. Assim o Brasil entra na “modernidade” política...