Muitos falam do complexo de vira-lata do brasileiro. Contudo, talvez justamente por isso, os brasileiros querem ser os melhores em tudo. É provavelmente uma forma de compensar a miséria material, intelectual e moral em que vivem. E nesse aspecto, nosso presidente não poderia ser mais representativo. Já havia dito uma vez o ex-presidente argentino Néstor Kirchner: Lula quer eleger até o papa.
Inebriado pelo poder e a popularidade, cercado por uma corte que o cultua quase como uma figura messiânica - e que promove esse culto da personalidade país afora - enamorado por sua própria trajetória, de retirante a presidente, parecia inevitável que Lula não se contentasse apenas em ser o Messias do Brasil. Já faz algum tempo que está no ar essa idéia de indicá-lo ao prêmio Nobel da Paz. Era de fato apenas uma questão de tempo até que ela se concretizasse, como de se esperar, pelas mãos de um dos integrantes do círculo íntimo do culto lulista - no caso, o Senador Aloízio Mercadante.
O governo Lula foi um sucesso sob diversos aspectos. A economia do país cresceu, superamos uma crise econômica sem maiores traumas, houve melhora nos indicadores sociais. Pessoalmente também acho, ao contrário do que afirmam seus detratores, que sua política externa foi um sucesso. O que o governo tucano de FHC tentou pela via da associação minoritária com as grandes potências ocidentais, Lula conseguiu pela via da liderança dos desvalidos do "Sul": projetar o país como uma potência emergente, com futuro de protagonismo na Ordem Internacional. O novo desenho geopolítico já se delineia no G20, destinado a superar o G7, e no qual China e Brasil, dentre outros emergentes, são recebidos não como sócios minoritários, mas como parceiros das grandes potências.
Contudo, reconhecer esse sucesso é muito diferente de concordar com os princípios e "valores" que nosso presidente promoveu nessa caminhada. Projetar-se como porta-voz dos povos e países da periferia do capitalismo não passa de uma figura de retórica, bem sucedida, sem dúvida, mas longe de ser honesta, como querem fazer crer alguns, e menos ainda de ser coerente.
Nosso presidente vem cuidadosamente cultivando esse papel de potência benéfica, liderando uma força de paz no Haiti, buscando papel de mediação nos conflitos do Oriente Médio, projetando uma imagem de promotor da democracia, justiça, direitos humanos... Será mesmo? Olhemos o quadro mais de perto...
Não nos perguntemos tanto se Lula é merecedor do Nobel da Paz - essa questão fica mais para o final. Perguntemos primeiro se ele é um homem da paz.
É um homem da paz quem visita Cuba no dia da morte de um prisioneiro político e culpa o preso???? Que tem coragem de comparar presos políticos cubanos com criminosos comuns de São Paulo???? É um homem da paz quem defende a ditadura iraniana e chama os protestos contra fraude nas eleições de briga de torcida de futebol, ignorando, além da mobilização popular, a violenta repressão com que o tal governo respondeu aos manifestantes???? É um homem da paz quem vai à África, aperta a mão de ditadores, e tenta convencer seus governos a produzir monocultura exportadora de agrocombustíveis em países pobres, com escassez de terras férteis e flagelados pela fome???????????
Trata-se de fatos incontestes. Nosso governo se aproximou de todas as ditaduras do mundo que consigo lembrar, com as quais estabeleceu relações muito amigáveis. Ainda no primeiro mandato, fez aquela cúpula Árabe-Sul Americana, sem dúvida um grande sucesso para as relações comerciais, cujo documento final, claro, não menciona a palavra "democracia", já que a única democracia árabe no mundo é o Líbano. O próprio acordo que nosso presidente acabou de firmar com o Irã como parte dessa sua estratégia de se credenciar ao Nobel da Paz foi uma parceria com a Turquia, o mesmo país que oprime os curdos com a mesma disposição que os israelenses oprimem os palestinos, mas sem causar 10% da comoção internacional.
A única verdade ainda controversa em relação à política externa "progressista" do governo Lula refere-se à forma como ele devolveu a Cuba dois pugilistas que desertaram durante os Jogos Pan-Americanos de 2007, em circunstâncias ainda hoje nebulosas. À época alegou-se que os pugilistas "se arrependeram" e se entregaram voluntariamente. Mas ninguém da imprensa, nem organizações de direitos humanos, teve acesso aos dois, a devolução se fez em velocidade relâmpago, e o fato é que um deles voltou a desertar na segunda oportunidade que teve - certamente um "mercenário" muito volúvel...
A política externa do governo Lula pode ser um sucesso de relações públicas e de benefícios comerciais, mas certamente nada tem a ver com a promoção da paz, e sim com a promoção dos interesses de "Estado" - leia-se, os interesses de meia dúzia de parasitas que prosperam nesse país à custa da corrupção governamental e da exploração econômica.
O mesmo presidente promotor da "Paz" lá fora é aquele que, aqui dentro, não só apazigua como protege algumas das oligarquias mais atrasadas do país - os Sarney, os usineiros e toda a máfia das Alagoas contra as quais ele tanto vociferou no passado, e até mesmo políticos envolvidos em casos de escravidão humana e condições de trabalho análogas à escravidão. Agora mesmo Lula está enquadrando o PT maranhense para manter intacto o feudo dos Sarney. Basta olhar para os aliados dele para deduzir o tanto de decência e caráter dessa pessoa.
Não nego que o governo Lula deu algumas esmolas aos pobres. Não nego também que receber esmola é melhor do que morrer de fome. Mas os ricos lucraram muito mais com o seu governo, além das esmolas terem sido um ótimo negócio para o seu governo, pois lhe garantiu os votos necessários para a reeleição, e a eleição do seu preposto este ano. Se a direita brasileira fosse inteligente, teria pensado nisso antes.
Dizer que esse homem promove "ações em busca da paz, do diálogo, da democracia, da justiça social e igualdade de direitos", como dizia a corrente de email pela qual recebi a notícia da campanha pelo Nobel, não passa de um escárnio criminoso e desrespeitoso com as vítimas dos regimes que ele tanto admira, e um escárnio com os próprios cidadãos brasileiros vitimados pelo abuso de poder, a perseguição política, a hiperexploração econômica, alguns dos métodos típicos dos aliados políticos do presidente.
Diz-se que "quem cala, consente". Só que ele não silencia: ele CONSENTE abertamente, o que o torna um cúmplice ativo das violações dos direitos humanos em Cuba, na Líbia, na Turquia, no Irã, na África e também no Maranhão, Alagoas, Pernambuco e onde quer mais que ele passe nas suas lamentáveis viagens internacionais e acordos regionais.
A participação do governo na mediação de conflitos do Oriente Médio tem importância estratégica, tanto do ponto de vista político - pelos dividendos em publicidade - quanto econômico - dada a importância da região para o comércio mundial. A propalada solidariedade com a causa palestina ou contenção da sanha belicista estadunidense, agora às voltas com o Irã, pode até ter alguma motivação ideológica para além do frio cálculo estratégico, mas certamente tem muito pouco a ver com valores humanitários. A democracia que nosso governo defendeu tão acirradamente em Honduras está ausente do Irã, como está ausente de Cuba. A solidariedade com os palestinos não existe no caso de povos oprimidos em outras regiões onde combater tal opressão não é relevante ou desejável - como no caso supracitado dos curdos, ou dos tibetanos e uigures. E é um argumento pobre dizer que nosso governo não protesta diante das violações dos direitos humanos em Cuba ou Irã por respeito à autodeterminação, princípio basilar da política externa brasileira. Primeiro, porque este governo não se furtou de intervir em outras circunstâncias - como o próprio caso de Honduras. Segundo, porque o respeito pela autodeterminação não equivale à defesa aberta que Lula fez desses regimes autoritários. Ele os defendeu porque quis, por afinidade ideológica ou cálculo estratégico, e não por respeito ao princípio da autodeterminação. Em qualquer dos dois casos - afinidade ou cálculo - tal defesa mostra incontestavelmente a qualidade e credibilidade das credenciais deste governo para falar em paz, democracia e direitos humanos.
Não é questão de afirmar que nosso governo seja pior que os demais, em matéria de coerência ou compromisso com valores humanitários. Todos os regimes são hipócritas - daí porque a diferença, acima sugerida, entre ser um homem da paz e um merecedor de um Nobel da Paz.
O Nobel já foi concedido a muitos e verdadeiros lutadores e lutadoras pela paz, justiça, liberdade, direitos humanos. Contudo, ele é um símbolo poderoso, e consequentemente submetido a todo tipo de pressão e barganhas políticas. O Nobel também já foi concedido antes a belicistas como Henry Kissinger, ditadores como Anwar Sadat, imperialistas como Theodore Roosevelt, picaretas como Al Gore. Para não falar do atual Nobel da Paz, Barack Obama, que na mesma semana em que era laureado, anunciava uma escalada militar no Afeganistão...
Se formos rigorosos com os conceitos de "paz" e "promoção da paz", não haveríamos de conceder tal láurea a nenhum, ou quase nenhum, chefe de Estado - quase todos têm as mãos sujas de sangue. E nosso presidente, por associações nada sutis, está indubitavelmente incluído nesse tão "nobre" e seleto clube. Nenhuma pessoa provida de inteligência e integridade pode compactuar com essa farsa. Compactuar é lavar nossas mãos com o sangue que está nas mãos desses homens "da paz".
segunda-feira, 7 de junho de 2010
Lula e o Nobel da Paz: era só o que faltava!
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