quinta-feira, 4 de julho de 2013

Quem são os verdadeiros fascistas?

Introdução

Este texto é uma reflexão baseada na minha experiência e nas minhas observações como ativista libertário nas manifestações de rua que tomaram conta do país no último mês. Existem muitas possibilidades de análise de um fenômeno tão rico. Eu escolhi aquele que me pareceu mais peculiar, me atingiu pessoalmente, mas que é também simbólico dos tempos de crise política que vivemos em todo mundo ocidental (pelo menos) e não só no Brasil: a crise da forma partidária de organização e a ascenção de movimentos sociais de tendência não-hierárquica e valores libertários. Eu distingui três grupos proeminentes nessas manifestações, além dos velhos militantes partidários: uma grande multidão despolitizada; os movimentos libertários, que eu defino aqui de forma abrangente, incluindo grupos que vão além dos anarquistas “clássicos” e ativistas independentes com demandas variadas.

Resumindo uma longa história, esses grupos, no início das manifestações fizeram uma requisição inusitada: que os militantes partidários não levassem suas bandeiras aos protestos. De fato foi o que se verificou em muitas delas, mas não sem confronto. Militantes que tentavam erguer suas bandeiras foram vaiados e ouviram gritos de “abaixa” ou “oportunista”. Táticas comuns em manifestações onde o tempo para o debate e convencimento é curto. Houve relatos de militantes agredidos em outros estados, mas foi em São Paulo que a violência, com forte infiltração de grupos ultradireitistas, foi mais grave.

No meio deste drama, militantes e simpatizantes começaram a espalhar que os protestos eram reacionários, seus integrantes, fascistas e massa de manobra da mídia e da direita. Depois começaram a pipocar os “sinais” de que um Golpe de Estado estava sendo preparado no Brasil. Muitos ativistas indepedentes e libertários se acabaram de tanto ser vilipendiados. Outros, contudo, se deixaram levar pelo discurso alarmista. Sem falar no seu possível efeito, de impedir a catalização da força do movimento e o esclarecimento da multidão que saiu às ruas com ideias vagas de insatisfação e mudança na cabeça, e que não deveriam ser hostilizadas, mas chamadas ao diálogo. Daí a importância do texto abaixo, que é tanto uma análise quanto uma resposta à reação partidária ao desafio da hegemonia que até hoje detinham de forma inquestionável no campo das forças contestatórias.

Uma questão de definição

Quem são o
s fascistas? Onde estão eles? De onde eles saíram e como se organizaram tão rapidamente?


Antes de xingar alguém de fascista, você já se perguntou o sentido do termo?

O fascismo é uma ideologia e um movimento político nascido na Europa da década de 1920, em meio à confusão política e econômica, e aos distúrbios sociais do entre-guerras. Ele consiste basicamente em: um movimento que defende teses ultranacionalistas, faz uso da violência sistemática e organizada, frequentemente apoiado em forças para-militares, tendências belicistas, xenofobia e uma aspiração de “pureza” (étnica, racial e nacional), e populista. Diferente de outros movimentos conservadores, que têm horror ao povo, os fascistas discursam e apelam para o povo, e o arregimentam como força auxiliar para o que é seu objetivo final: a tomada do poder. Uma vez no poder, os fascistas instauram uma ditadura de partido único, eliminam ou silenciam a oposição. Essa definição é mais ou menos baseada naquela oferecida pelo sociólogo Michael Mann, em seu livro “Fascistas”.

Além da ideologia fascista, havemos de destacar seus métodos de ação política. A violência, obviamente, é tanto um pressuposto quanto seu método principal; essa violência pode ser não apenas direta, mas instigada – guardemos essa informação; mentiras, igualmente sistemáticas, para criar confusão e atrair simpatizantes (“uma mentira dita mil vezes vira verdade”, dizia o nazista Joseph Goebbels); provocação e intimidação dos inimigos; grandes exibições de poder e força (pensem nas paradas nazistas em Nuremberg); espalhar boatos e rumores, de novo com o fim de eliminar os adversários (após incendiar o Reichstag, os nazistas candidamente responsabilizaram os comunistas pelo ato, para melhor persegui-los).

Depois de muita conversa e observação com ativistas do Rio e de outros estados, cheguei à conclusão que a direita radical só tem espaço em São Paulo – e mesmo lá, é minoritária. Então, qualquer observador ausente e inteligente verá que os grupos ou indivíduos desvinculados de partidos políticos não são fascistas nem defendem teses fascistas.

Não existe um fascismo forte e organizado na maioria das capitais brasileiras. E as características que definem um movimento fascista estão amplamente ausentes. Não há ultranacionalismo nas ruas; nenhuma tese defendendo a expulsão de imigrantes ou culpando grupos étnicos internos ou externos pelos problemas nacionais; a nacionalização e estatização – tese, aliás, amplamente defendida pela esquerda – FELIZMENTE foi coadjuvante nos movimentos presentes. Quanto à arregimentação popular, isso é a última forma como se pode definir um movimento que se organizou semi-espontaneamente, pelas redes sociais, pelo boca-a-boca, pelo esforço de dezenas de organizações – partidárias ou não. Note-se, portanto, que quando a esquerda NOS acusa de fascista é ELA QUE FAZ O JOGO DA DIREITA. Ela deslegitima a si mesma, reproduzindo todos os estereótipos usados por liberais e conservadores para combater movimentos sociais e políticos que clamam pela transformação da sociedade. Com uma esquerda dessas, quem precisa de direita?

Uma questão metodológica 

No entanto, há mais. Contemplemos a ironia... Para preservar sua hegemonia no campo das forças contestatórias, os partidos de esquerda – senão todos, quase todos – usaram SISTEMATICAMENTE métodos fascistas para combater, e se possível eliminar, seus adversários: o povo “desorganizado” e os grupos organizados sob bases não-hierárquicas e que não aceitam nem respeitam sua “liderança”.
Senão, vejamos:

A VIOLÊNCIA – aqui, como qualquer cientista social, eu peço licença para fazer uma releitura adequada ao contexto. Não tivemos casos de militantes partidários agredindo manifestantes não partidários – antes o contrário. Mas, na história recente do Brasil, a violência SIMBÓLICA com que responderam aos críticos foi sem precedentes. Usaram todo tipo de termo pejorativo, ofensivo, agressivo, mais as táticas sujas para difamar e manchar a reputação, a inteligência e a integridade daqueles que defenderam um movimento sem partidos.

Além disso, tivemos o caso emblemático dos militantes do PT que se infiltraram – não há outro termo para defini-lo – numa manifestação de São Paulo do dia posterior ao anúncio da revogação do aumento das passagens. Isso é uma tática fascista clara de provocação e instigação à violência. Os nazistas e fascistas italianos iam de encontro às manifestações socialistas e comunistas para incitar ao combate. Não estou defendendo as agressões físicas sofridas pelos petistas. Antes lamento que eles tenham servido de massa de manobra da liderança do partido, que mandou seu rebanho para o sacrifício, com o claro intuito de mudar a simpatia da opinião pública e deslegitimar os protestos.

MENTIRAS – Foram tantas, que é difícil de elencar. Os partidos mentem ao qualificar o movimento de fascista. Mentem ao dizer que ser antipartidário é ser fascista. Mentem ao chamar a massa despolitizada, que eles deviam saudar e chamar para uma conversa, de massa de manobra da direita ou da mídia. Mentem ao dizer que relegando as bandeiras partidárias estamos a estimular o nacionalismo que eles, em décadas de luta, falharam ou não quiseram combater. Mentem ao dizer que somos antidemocráticos ou que os queremos “fora” das manifestações. Não. Não temos o poder de excluí-los, apenas pedimos que não levassem suas bandeiras, e participassem como cidadãos que desejam mudanças. Lá haveria pleno espaço para dialogar e propagar suas ideias. Mas eles não conseguem pensar fora da moldura. Fora do papel autoatribuído de vanguarda do proletariado. Sem bandeira, não têm ideias. Eles mentem, por fim, ao dizer que são imprescindíveis, seja para manter a democracia, seja para reformar ou revolucionar o país em nome do povo.

Eles mentem ao dizer isso porque esquecem, convenientemente, do passado, e da lista de fracassos da política partidária de esquerda no Brasil – que só chegou ao poder quando se vendeu ao sistema. E eles mentem porque esquecem – ou desconhecem – o conjunto de movimentos e iniciativas políticas, antigos e recentes, que não se valem da forma de organização vertical, hierárquica, dos partidos, que têm avançado no mundo todo, e têm sido muito influentes em países como os Estados Unidos e Espanha, e conquistado vitórias, como na Islândia. Informem-se a respeito, para rebater as mentiras esquerdistas!

BOATOS – Ao incitar o terror na população, espalhando boatos de golpe de Estado (militar ou das elites), eles usam a tática fascista do medo. Medo para manter o rebanho quieto, para que ele volte docilmente para sua proteção, para que voltem para o estábulo. A liberdade é uma das ideias mais perigosas do mundo. Os partidos, novamente, mostram que odeiam a liberdade, quando fazem a chantagem de que o povo escolha entre exercer sua liberdade (e ampliá-la; e conquistá-la) e a modorra da democracia de baixa-intensidade em que vivemos. Sim, muitas lutas travadas em nome da liberdade abriram caminho para golpes de Estado. Mas estas lutas nunca são em vão. Pensemos apenas alguns exemplos: Revolução Francesa, 1789; Guerra Civil Espanhola, 1936-39; Brasil, 1964. Deveríamos dizer àqueles que lutaram contra o Antigo Regime, contra a Monarquia e o Capitalismo, e pelas Reformas de Base, que era melhor, antes, ficar em casa? De jeito nenhum. Mesmo as lutas perdidas valem a pena. Elas deixam sementes, e algo melhor dali sempre há de brotar. A tirania está fadada a morrer – por isso ela tende a se defender com brutalidade. Ao menor sinal de fraqueza, à menor concessão, sua morte é inevitável. A liberdade triunfa, nem que por um minuto, antes das forças conservadores restabelecerem uma ordem negociada com medo da massa inquieta.

Mas, voltando à questão atual... Aqueles que espalham boatos não ficam só aí. Eles dizem que nós mesmos somos instrumentos mais ou menos conscientes do antecipado Golpe de Estado. Isso faz parte da campanha de difamação. Desestimula outros a saírem de casa e faz muitas pessoas desistirem da luta: pelo desgaste de se defender de tamanhas acusações; pelo nojo diante de tanta manipulação; pelo desejo de não ser visto como colaborador, ou não colaborar de fato, com um golpe de Estado. Em suma, os partidos de esquerda protegem um governo das elites, protegem as próprias elites, se voltam contra o povo e os direitos que dizem defender. Eles fazem o jogo do sistema. Nesse sentido, ELES SÃO OS VERDADEIROS REACIONÁRIOS.

O que está em jogo 

Partidos de esquerda, PT (pseudoesquerda), elite e imprensa, na verdade, foram todos pegos de surpresa pelas recentes manifestações. Por diferentes motivos, elas são inconvenientes para todos esses grupos. Eles querem a mim, a você, a todos os independentes, a todos os que PENSAM de forma independente, fora das ruas. SÃO TODOS FORÇAS DO SISTEMA – mesmo o mais radical, pretensamente revolucionário dos partidos, está, neste momento, servindo ao sistema de exploração contínua, acumulação incessante, consumismo histérico, desigualdades aberrantes, injustiças notórias e liberdades precárias.

É desse sistema que você quer participar? É com seus acólitos que pretende colaborar?

Estou contente. As últimas semanas mostraram com muita clareza aquilo que a experiência e a história me mostraram, mas o cotidiano alienante por vezes me fazia esquecer. Isto é: NÃO PODEMOS CONFIAR NOS PARTIDOS POLÍTICOS, NA SUA ORGANIZAÇÃO HIERÁRQUICA E AUTORITÁRIA, NA SUA IDEOLOGIA. Como disse antes, fora do poder, a esquerda só pode usar táticas sórdidas de difamação e contra-informação. No poder, ela usaria a violência pura.

Desesperada, a esquerda tradicional autoritária está se organizando contra nós, em vez de combater o suposto inimigo comum: o SISTEMA CAPITALISTA e o ESTADO.

O TEMPO DAS VANGUARDAS ESTÁ A ACABAR. Seu tempo já passou. Suas ideias são obsoletas e venenosas. Seus métodos, violentos, autoritários, inaceitáveis numa sociedade realmente livre. A colaboração com partidos está, do meu ponto de vista, sujeita a dois critérios: que a aliança seja igualitária, sem líderes; e vinculada a causas muito específicas, de modo a que nem a autonomia dos libertários se perca, nem nos arrisquemos a colocar mais perto do poder aqueles que também usariam da violência sistemática para se manter – inclusive, claro, contra nós –, e que não destruiriam o Estado, mas o inchariam com uma burocracia autoritária e privilegiada.

SIM, SOU CONTRA PARTIDOS. NÃO, NÃO SOU FASCISTA. NEM ALIENADO. SOU LIBERTÁRIO. Uso “libertário” aqui num sentido amplo: me identifico não apenas com os anarquistas strictu sensu, mas todos os indivíduos e movimentos que acreditam na organização livre e não-hierárquica.

Temos que romper com essa poderosa dicotomia que se criou entre a esquerda tradicional, vanguardista, marxista-leninista, e o capitalismo liberal. Eu acredito no poder de auto-organização popular, na autogestão, na autonomia e nos movimentos sociais abertos e não hierárquicos. Temos de nos valer do aprendizado da história, a consciência de que ela nem sempre se repete, e nos apoiar tanto nas ideias novas, quanto nas antigas, tentando atualizá-las. E que, dessa tensão criativa, sejamos capazes de pensar alternativas e construir um novo mundo.

POR UM MUNDO:
SEM OPRESSÃO, SEM ESTADO, SEM PARTIDO.
LIVRE, IGUAL, FRATERNO E JUSTO.