segunda-feira, 29 de março de 2010

O PT e a Nova Classe Dominante

O marxismo ortodoxo já dava conta do fenômeno que quero abordar nesse texto. Não chega a ser, portanto, uma novidade. Trata-se da transformação social e política que vemos hoje acontecer com o PT, mas que tem relação inclusive com a própria origem do partido.

O PT já nasceu com o impulso de uma categoria privilegiada dentro da classe operária, os metalúrgicos de São Paulo, trabalhadores do estado mais rico do país, uma categoria estratégica pela indústria em que atuavam e a importância dela para o desenvolvimento do país, um dos sindicatos mais bem organizados e salários comparativamente acima da média do proletariado nacional. Aquilo que Marx chamou de aristocracia operária, que pode ser facilmente cooptada pelo sistema e passar a agir segundo os interesses da conservação do mesmo.

Com o tempo, os sindicalistas que deram origem ao PT, quanto mais se distanciavam do trabalho operário e mesmo da ação sindical, foram se constituindo em um alto clero operário, cada vez mais passíveis de acomodação dentro do sistema, o que se revela na crescente moderação do discurso político do PT e a tendência à conciliação, que culminou na Carta aos Brasileiros de 2002, antes das eleições que elegeram, pela primeira vez, Lula como presidente do Brasil.

Àquela altura Lula era já líder nas pesquisas com uma vantagem relativamente sólida. É questionável a eficácia eleitoral da Carta, diante de uma população desiludida com 4 anos de estagnação que se viu no segundo mandato do então presidente Fernando Henrique Cardoso. Desde o início do segundo mandato de FHC, com a maxidesvalorização do Real que empobreceu as classes média e baixa da população, logo após a reeleição (embora já fosse evidente sua inevitabilidade antes das eleições de 1998, mas adiada para não prejudicar a candidatura à reeleição, o que constitui um verdadeiro estelionato eleitoral), seu governo, desacreditado e sem força, não aprovou nenhuma reforma, não adotou nenhuma política significativa, apenas se arrastou lentamente até o fim, estagnado política e economicamente, com altas taxas de desemprego e baixo índice de crescimento econômico. Estava nítido que aquela era a eleição que Lula tinha mais chances de vitória, e de fato contribuiu para isso a crescente moderação de seu discurso. A Carta aos Brasileiros, porém, serviu muito mais para apaziguar a classe financeira e empresarial brasileira e estrangeira, acenar para sua tranqüilidade, e uma colaboração, após a eleição.

Malgrado essa moderação e crescente acomodação dentro do sistema, o ativo do PT, sua credencial política, continuou (e continuará, por alguns anos) sendo a defesa dos “interesses” do trabalhador e dos mais pobres, assim como na esfera internacional o governo Lula se projeta como um porta-voz dos países pobres e excluídos das benesses da ordem internacional. É esse o discurso que legitima o partido, o credencia a ser competitivo nas eleições majoritárias e, em última instância, lhe dá sentido e razão de ser. Porque na prática, seu governo pouco difere do governo do PSDB, seu arquirrival.

O escândalo do mensalão apenas desnudou o projeto petista de perpetuação no poder, e o tão alardeado aparelhamento do Estado resulta menos de um projeto revolucionário de infiltração insidiosa, como sugere a imprensa conservadora, e mais de um vício patrimonialista que sempre ocorreu, com qualquer partido que ocupou o poder na Nova República. Enfraquecido pelo escândalo, o que o PT fez foi acenar ainda mais para a direita e as bancadas corporativistas do Poder Legislativo, abrindo mais espaço para o PMDB e algumas oligarquias das quais sempre foi adversário ideológico, notamente os Sarney no Maranhão, Collor, Calheiros e usineiros em Alagoas. E até deputados envolvidos em casos de trabalho escravo. Triste ironia para um Partido que se intitula “dos Trabalhadores”.

Hoje, as únicas características que entregam a origem esquerdista do partido são os seus vícios, e não suas virtudes: o autoritarismo, a estatolatria, o antiamericanismo (controlado e moderado, mas latente) e a simpatia mal disfarçada por regimes autoritários que desafiam a ordem internacional, mesmo que a ordem alternativa que eles vislumbram seja, no mínimo, igualmente questionável e, em verdade, retrógrada, reacionária e igualmente demófoba. Até mesmo a tão propalada política estatizante (não confundir com a estatolatria acima mencionada), as medidas de expansão de crédito e do mercado interno adotado para confrontar a crise financeira internacional não credenciam o PT como um partido de esquerda, e sim com uma social democracia capitalista e desenvolvimentista. Tanto ou até mais que a classe média, tais medidas favoreceram o empresariado industrial, que se tornou o grande fiador político e eleitoral do PT.

Já foi dito também que o PT se tornou uma máquina eleitoral apoiada sobre quatro pilares. Primeiro, as medidas assistencialistas e populistas como o Bolsa Família, que em vez de promoverem uma verdadeira emancipação política e econômica tornam os mais pobres dependentes e, em última instância, funciona como uma grande chantagem eleitoral e esquema de compra de votos. Intimamente vinculada a esta, a aliança com oligarquias e forças conservadores e retrógradas nas regiões mais pobres do país, notadamente o Nordeste, mas também no Centro-Oeste e no Norte do país. A política desenvolvimentista já mencionada, que angaria o apoio do empresariado industrial relegado pelo governo tucano. E, por fim, o fenômeno ainda por ser estudado dos fundos de pensão. A elite financeira, por sua vez, não tem muito do que reclamar. Enquanto as migalhas do Bolsa Família criam um novo clientelismo entre os pobres, os milhões (e a política ortodoxa dos juros) mantêm os banqueiros domesticados e satisfeitos. Não se pode negar a astúcia política do PT, o que é algo totalmente diferente de dizer que essa inteligência seja pautada por ideais emancipatórios.

Os fundos de pensão, nesse esquema, funcionam como foco de influência e captação de recursos, como o recente escândalo do Bancoop revela. Porém, ele revela um outro fato, para mim muito mais importante, porém obviamente pouco explorado pela imprensa conservadora. O PT passa a roubar da própria classe da qual é oriunda, e à qual diz representar, a classe trabalhadora. Os grandes sindicatos, a CUT e até mesmo o MST foram mantidos sob controle, não por chantagem ou repressão, mas pelo simples fatos de serem parceiros do atual governo. A CUT sempre foi o braço sindical do PT, isso é de domínio público. Dizer que a CUT se tornou “pelega” significa tão somente a decorrência lógica desse fato. Não foi compra nem cooptação, pois ambos, CUT e PT, partilham dos mesmos princípios. A CUT é a própria personificação da aristocracia operária. O que isso demonstra de forma nítida, e de importância sociológica fundamental, é que os líderes sindicais vinculados ao PT deixaram, há muito, de ser representantes das suas categorias e da classe trabalhadora de modo geral. Eles se tornaram, isso sim, uma fração da classe dominante, uma nova elite que, do mesmo modo que o PT, credencia-se ao poder pelo ativo da “representação” dos trabalhadores e a força política e os recursos econômicos daí advindos, mesmo que pelo meio da pilhagem.

Isso fica ainda mais óbvio quando analisamos a mudança da posição histórica do PT contra o imposto sindical. É esse imposto que financia a elite sindical e a permite viver eternamente do sindicalismo, afastado do dia-a-dia da classe que diz representar, e absolutamente descompromissada com a defesa dos interesses e direitos da mesma. A nossa estrutura sindical foi habilmente montada pelo falecido Getúlio Vargas para submeter e apaziguar a classe operária, tendo a liderança sindical como intermediária (daí o termo “pelego”, que é originalmente a sela que é usada para apoiar o cavaleiro sobre o cavalo, ou seja, o “intermediário” que torna a montadura mais suave para o cavalo e o cavaleiro).

Como ouvi certa vez de um trabalhador de linha de montagem, um proletário clássico: essa estrutura sindical desenhada para promover o peleguismo tem como sua pedra fundamental o imposto sindical compulsório, pago mesmo pelos trabalhadores não sindicalizados. Ele garante a sobrevivência do sindicato, enriquece a ele e aos seus dirigentes, torna-os subsidiários e, consequentemente, sustentáculos do sistema e, por fim, desobriga-os de defender sua classe de origem. Ele concluiu: se a contribuição fosse voluntária, os sindicatos precisariam correr atrás da filiação e contribuição do trabalhador, e para isso teriam que mostrar “serviço”. Teriam de ser muito mais aguerridos, coerentes e radicais na defesa de suas categoria e classe. Acabaria, portanto, essa promiscuidade com governos populistas como foram os da República Média (entre 1945 e 1964) e, agora, do governo Lula. Não se pode nem mesmo dizer que seja um fenômeno recente, portanto.

Essa domesticação dos sindicatos, verificável em todas as democracias ocidentais modernas, resultou precisamente da elitização e aristocratização de sua liderança, resultando em elite sindical moderada, de retórica por vezes afiada, mas prática conservadora, pois não apresenta um desafio de fato à estrutura política e econômica desses países. No século XIX os sindicatos arrecadavam dinheiro justamente para proteger os trabalhadores nos momentos mais críticos – naquela época, não se podia contar com o salário em caso de greve. Isso só era possível porque então os sindicatos eram genuinamente constituídos pelos trabalhadores. O que era um instrumento de luta, com a moderna estrutura sindical tornou-se um instrumento de enriquecimento. Se no século XIX as greves eram momentos de enfrentamento, hoje elas são acontecimentos pontuais destinados a obter concessões pontuais da classe dominante, ou questionar injustiças mais flagrantes. Foi assim que, graças à social democracia e domesticação do pós-Guerra, à qual apenas os Partidos Comunistas opunham resistência, a luta por justiça social passou a viver numa estéril e falsa dicotomia entre legalismo e revolução violenta. A esquerda radical vive de pregar a revolução armada, mesmo que jamais tenha as condições ou disposição de fazê-lo, alienando-se completamente da classe da qual diz ser vanguarda. Os grandes sindicatos e partidos “dos” trabalhadores, por sua vez, jamais ousam questionar a legalidade, mesmo que por meios pacíficos e de modo não-violento. O princípio da não-violência e da resistência pacífica foi completamente abandonado e esquecido.

No governo do PT, nem mesmo o reformismo tem espaço. Por mais lesados que possam ser, os trabalhadores reféns da estrutura de poder sindical petista se vêem absolutamente impotentes diante do atual governo. Apenas alguns questionamentos pontuais são possíveis, como no combate ao fator previdenciário e a defesa da redução da jornada de trabalho. Mas são estas mais peças de retórica do que efetivas bandeiras, pois as grandes mobilizações estão de lado, a pressão sobre o governo é tímida, quase envergonhada. Nenhum questionamento estrutural, enquanto o governo segue com uma política francamente elitista e se apóia sobre as forças mais conservadoras e antipopulares. Isso ficou nítido na defesa do ex-presidente Sarney, mesmo diante de repetidas acusações de corrupção, mesmo diante da sua prática inquestionavelmente antidemocrática no seu feudo particular que é o Maranhão, onde a imprensa é amordaçada e a população vive na miséria. E o mesmo governo que dá guarita a este tipo de política tem o disparate de afirmar que é defensor dos excluídos e da democratização da imprensa. Mentira que é ratificada pelas grandes centrais sindicais e lideranças de movimentos sociais, o que prova que, longe de serem comprometidos com a classe trabalhadora, estes são cúmplices e sócios minoritários de um projeto de poder de elite.

E é esta a conclusão que podemos chegar: as ditas lideranças populares da classe trabalhadora há muito deixaram de fazer parte da mesma, para se transformarem elas mesmas numa fração da classe dominante, parte da elite. O confronto entre PT e PSDB reproduz não um confronto ideológico, nem tampouco um confronto de classes, mas um confronto entre facções da elite, fenômeno também descrito por Karl Marx já no século XIX e que define a política dos países ocidentais altamente industrializados, na Europa e América do Norte. Assim o Brasil entra na “modernidade” política...