quarta-feira, 20 de agosto de 2008

O Abatedor (Adaptação)



Hoje vou postar uma adaptação de um conto de Isaac Bashevis Singer. Não fiz alterações no texto, apenas condensei-o para caber numa postagem.

Isaac Bashevis Singer (1902-1991) foi um judeu polonês, filho de rabino, que emigrou para os Estados Unidos em 1935, fugindo do anti-semitismo. Consagrou-se como contista. Escrevia em iídiche, idioma dos judeus da Europa central que combina elementos de hebraico, alemão e idiomas eslavos. Foi laureado com o Nobel de Literatura em 1978 e é considerado um dos maiores escritores de tradição judaica.

Bashevis Singer era também um adepto e entusiasta do vegetarianismo, que definiu como "a questão moral de nosso tempo".

Foi dele - um judeu - a famosa frase: "Em seu comportamento com os animais, todos os homens são nazistas".

A íntegra do conto pode ser encontrada na coletânea "47 Contos de Isaac Bashevis Singer", da Companhia das Letras.

* * * * *

O Abatedor

Isaac Bashevis Singer

Yoineh Meir devia ter sido o rabino de Kolomir. Seu pai e seu avô tinham ambos sentado na cadeira rabínica de Kolomir. Porém, os seguidores da corte de Kuzmir tinham assumido uma teimosa posição: dessa vez não iam permitir que um hassidista de Trisk fosse rabino da cidade. Subornaram um funcionário distrital e mandaram uma petição ao governador. Depois de demorada contenta, os hassidistas de Kuzmir finalmente conseguiram o que queriam e instalaram seu próprio rabino. Para não deixar Yoineh Meir sem uma fonte de rendimentos, nomearam-no abatedor ritual da cidade.

Quando Yoineh Meir soube disso, ficou ainda mais pálido que o normal. Protestou que abater animais não era coisa para ele. Que tinha o coração mole; que não suportava a visão de sangue. Mas todo mundo se juntou para convencê-lo: os líderes da comunidade; os membros da sinagoga de Trisk; seu sogro, Reb Getz Frampoler; e Reitze Doshe, sua esposa. O novo rabino, Reb Sholem Levi Halberstam, também insistiu com ele para aceitar. Reb Sholem Levi, neto do rabino de Sondz, estava incomodado com o pecado de tirar o meio de vida de outrem, não queria que o homem mais novo ficasse sem sustento. O rabino de Trisk, Reb Yakov Leibele, escreveu uma carta para Yoineh Meir dizendo que o homem não pode ser mais compassivo que o Todo-Poderoso, fonte de toda compaixão. Quando se mata um animal com uma faca pura e com piedade, libera-se a alma que nele reside. Pois é bem sabido que as almas dos santos muitas vezes transmigram para os corpos das vacas, aves e peixes para se penitenciar de alguma ofensa.

Depois da carta do rabino, Yoineh Meir cedeu. Tinha sido ordenado muito tempo antes. Então se pôs a estudar as leis do abate conforme explicadas no Natureza do boi, no Shulchan Aruch e nos Comentários. O primeiro parágrafo do Natureza do boi dizia que o abatedor ritual tem de ser um homem temente a Deus, e Yoineh Meir dedicou-se à Lei com mais zelo do que nunca.

Yoineh Meir, pequeno, magro, rosto pálido, uma rala barba amarela na do queixo, nariz adunco, boca caída e olhos amarelos apavorados muito juntos, era famoso por sua religiosidade. Quando rezava, usava três pares de filactérios : os de Rashi, os do rabino Tam e os do rabino Sherira Gaon. Logo depois de completar sua estada em casa do sogro, começara a respeitar todas as datas de jejum e a acordar para os serviços da meia-noite.

Sua esposa, Reitze Doshe, reclamava sempre que Yoineh Meir não era deste mundo. Reclamava com a mãe que ele nunca lhe falava uma palavra e que nunca prestava atenção nela, nem em seus dias puros. Só ia a ela nas noites depois que ela visitava o banho ritual, uma vez por mês. Disse que ele não lembrava os nomes das próprias filhas.

Depois que concordou em ser o abatedor ritual, Yoineh Meir impôs a si mesmo novos rigores. Comia cada vez menos. Quase parou de falar. Quando um mendigo vinha à porta, Yoineh Meir corria a lhe dar boas-vindas e entregava-lhe seu último groschen . A verdade é que transformar-se em abatedor mergulhou Yoineh Meir na melancolia, porém ele não ousava opor-se à vontade rabino. Era para ser assim, Yoineh Meir dizia a si mesmo; era seu destino provocar tormento e sofrer tormento. E só o Céu sabia o quanto Yoineh Meir sofria.

Yoineh Meir temia que pudesse desmaiar ao abater sua primeira ave, que sua mão não ficasse firme. Ao mesmo tempo, em algum lugar do seu coração, esperava cometer um erro. Isso o liberaria da ordem do rabino. Porém, tudo correu de acordo com as regras.

Muitas vezes por dia, Yoineh Meir repetia para si mesmo as palavras do rabino: “Um homem não pode ser mais compassivo que a Fonte de toda compaixão”. A Torá diz: “Deves matar teu rebanho e tua manada conforme te ordenei”. No monte Sinai, a Moisés foram ensinados os modos de matar e abrir o animal em busca de impurezas. É tudo um mistério de mistérios: vida, morte, homem, animal. Os que não são abatidos morrem de qualquer forma, de doenças variadas, muitas vezes sofrendo semanas ou meses. Na floresta, as feras se devoram umas às outras. Nos mares, peixe engole peixe. A casa dos pobres de Kolomir está cheia de aleijados e paralíticos que ali ficam anos, se sujando. Nenhum homem escapa às tristezas deste mundo.

E, no entanto, Yoineh Meir não encontrava consolação. Cada tremor da ave abatida provocava em Yoineh Meir um igual tremor nas entranhas. A morte de cada animal, grande ou pequeno, causava-lhe tanta dor quanto se estivesse cortando sua própria garganta. De todos os castigos que podiam se abater sobre ele, matar era o pior.

*****

Mal haviam se passado três meses desde que Yoineh Meir se tornara abatedor, porém o tempo parecia esticar-se, sem fim. Sentia que estava mergulhado em sangue e linfa. Seus ouvidos eram atacados pelo cacarejar de galinhas, pelo canto dos galos, pelo grasnar dos gansos, pelo mugir dos bois, pelo bramir e blaterar de novilhas e cabritos; asas adejando, garras batendo o chão. Os corpos se recusavam a aceitar qualquer justificativa ou desculpa, cada corpo resistia a seu jeito, tentava escapar, e parecia discutir com o Criador até o último alento.

E a cabeça de Yoineh Meir se enchia de questões. Verdadeiramente, para criar o mundo, Aquele que é Infinito teve de encolher Sua luz; não podia haver livre-arbítrio sem dor. Mas uma vez que os animais não eram dotados de livre-arbítrio, por que tinham de sofrer? Yoineh Meir observava, tremia, enquanto os açougueiros esquartejavam as vacas com seus machados e pelavam as carcaças antes de elas terem exalado o último suspiro. As mulheres depenavam as galinhas ainda vivas.

É costume o abatedor receber o baço e o bucho de toda vaca. A casa de Yoineh Meir ficou cheia de carne. Reitze Doshe fazia sopas em panelas grandes como caldeiras. Na grande cozinha havia um constante frenesi de cozinhar, grelhar, fritar, assar, mexer e cozer. Reitze Doshe estava grávida de novo e sua barriga projetava em ponta. Grande e atarracada, tinha cinco irmãs, todas tão volumosas quanto ela. As irmãs vinham com os filhos. Todo dia, a mãe de Reitze Doshe trazia novas pastelarias e quitutes feitos por ela. Uma mulher não devia fizer ouvir sua voz, mas a criada de Reitze Doshe, filha de um aguadeiro, cantava, andava por todo lado descalça, com os cabelos soltos, e ria tão alto que o barulho ressoava por todos os quartos.

Yoineh Meir queria escapar do mundo material, mas o mundo material o perseguia. O cheiro da casa de abate não saía de suas narinas. Tentava esquecer-se na Torá, mas descobriu que a própria Torá estava cheia de assuntos terrenos. Interessou-se pela Cabala, embora soubesse que nenhum homem deve mergulhar nos mistérios antes de chegar à idade de quarenta anos. Mesmo assim, continuava a folhear o Tratado do hassidismo, O pomar, O livro da Criação, e A árvore da vida. Lá, nas altas esferas, não havia morte, nem abate, nem dor, nem estômagos e intestinos, nem corações, pulmões ou fígados, nem membranas, nem impurezas.

Nessa noite em particular, Yoineh Meir foi à janela e olhou o céu. A lua espalhava sua radiação em torno dele. As estrelas brilhavam e cintilavam, cada uma com seu segredo celestial. Em algum lugar acima do Mundo dos Atos, acima das constelações, Anjos voavam, e Serafins e Rodas Sagradas e Animais sagrados. No Paraíso, os mistérios da Torá eram revelados às almas. Todo zaddick sagrado herdava trezentos e dez mundos e tecia coroas para a Divina Presença. Quanto mais perto do Trono de Glória, mais brilhante a luz, mais pura a radiação, menos numerosas as hostes profanas.

Yoineh Meir sabia que o homem não pode pedir pela morte, mas no de si mesmo ansiava pelo fim. Tinha desenvolvido uma repugnância por tudo o que tinha a ver com o corpo. Não conseguia nem forçar-se a ir ao banho ritual com os outros homens. Debaixo de toda pele via sangue. Cada pescoço fazia Yoineh Meir se lembrar da faca. Seres humanos, como animais, tinham lombo, veias, entranhas, nádegas. Um corte com a faca e esses sólidos chefes de família tombariam como bois. Como diz o Talmude, tudo o que se destina a ser queimado já está queimado. Se o fim do homem é a corrupção, os vermes, o fedor, então ele nada mais era que um pedaço de carne pútrida já de início.

Yoineh Meir entendia agora por que os sábios de antigamente comparavam o corpo a uma jaula, uma prisão onde a alma está cativa, ansiando pelo dia da libertação. Só agora entendia verdadeiramente o sentido das palavras do Talmude: “Muito bem, isto é morte”. Porém o homem estava proibido de escapar de sua prisão. Tem de esperar que o carcereiro remova as correntes, abra o portão.

Yoineh Meir voltou para a cama. A vida inteira havia dormido em uma cama de penas, debaixo de um acolchoado de penas, a cabeça repousando sobre um travesseiro; agora, de repente, dava-se conta de que estava deitado sobre penas e penugem arrancada de aves. Na outra cama, junto à de Yoineh Meir, Reitze Doshe roncava. De quando em quando, saía um assobio de suas narinas e formava-se uma bolha em seus lábios. As filhas de Yoineh Meir iam ao penico, os pés nus correndo pelo chão. Dormiam juntas e às vezes cochichavam e riam metade da noite.

Yoineh Meir havia desejado filhos que estudassem a Torá, mas Reitze Doshe produzia menina após menina. Enquanto eram pequenas, Yoineh Meir de vez em quando lhes beliscava a bochecha. Sempre que comparecia a uma circuncisão, trazia-lhes um pedaço de bolo. Às vezes, até beijava na cabeça uma das menores. Mas agora estavam crescidas. Pareciam ter puxado à mãe. Tinham se expandido em largura. Reitze Doshe reclamava que comiam muito e estavam ficando gordas. Roubavam lambiscos dos potes. A mais velha, Bashe, já recebera proposta de casamento. Num momento, as meninas brigavam e se insultavam, no momento seguinte uma penteava o cabelo da outra e fazia tranças. Estavam sempre matraqueando sobre vestidos, sapatos, meias, paletós, calcinhas. Choravam e riam. Catavam piolhos, brigavam, lavavam-se, beijavam-se.

Quando Yoineh Meir tentava ralhar com elas, Reitze Doshe gritava: “Não se meta! Deixe as meninas sossegadas!”. Ou ralhava: “Melhor seria você cuidar que suas filhas não saíssem por aí descalças e nuas!”.

“Por que precisavam de tanta coisa? Por que era preciso vestir e adornar tanto o corpo?”, Yoineh Meir pensava consigo mesmo.

Antes de ser abatedor, raramente estava em casa e mal sabia o que acontecia. Mas agora começara a ficar em casa e via o que elas estavam fazendo. As meninas corriam para apanhar frutinhas e cogumelos; juntavam-se às filhas das casas comuns. Traziam para casa cestos de gravetos secos. Reitze Doshe preparava geléia. Costureiras vinham fazer provas. Sapateiros mediam os pés das mulheres. Reitze Doshe e a mãe discutiam por causa do enxoval de Bashe. Yoineh Meir ouvia falar de um vestido de seda, um vestido de veludo, toda sorte de saias, mantos, casacos de pele.

Agora que ficava acordado, essas palavras todas ressoavam em seus ouvidos. Elas rolavam em luxos porque ele, Yoineh Meir, tinha começado a ganhar dinheiro. Em algum lugar no útero de Reitze Doshe, uma nova criança estava crescendo, mas Yoineh Meir sentia claramente que seria outra menina. “Bom, é preciso receber bem tudo o que o Céu mandar”, aconselhava a si mesmo.

Tinha se coberto, mas agora estava quente demais. O travesseiro sob a cabeça ficara estranhamente duro, como se houvesse uma pedra entre as penas. Yoineh Meir era ele próprio um corpo: pés, barriga, peito, cotovelos. Sentiu uma pontada nas entranhas. A boca seca.

Yoineh Meir sentou-se. “Pai do Céu, não consigo respirar!”

II.

Elul é um mês de arrependimento. Em anos passados, Elul trazia uma sensação de exaltada serenidade. Yoineh Meir adorava as brisas frescas que vinham da floresta e dos campos colhidos. Ficava olhando longo tempo o céu azul-pálido com as nuvens esgarçadas que lembravam o tecido em que eram embrulhados os limões para a Festa do Tabernáculo . No ar voejavam fibras. Nas árvores, as folhas ficavam amarelo-açafrão. No trinar dos passarinhos ouvia a melancolia dos Dias Solenes, quando o homem faz uma avaliação de sua alma.

Mas, para o abatedor, Elul era outra coisa muito diferente. Muitos animais eram abatidos para o ano-novo. Antes do Dia da Reconciliação, todo mundo oferecia uma ave sacrificial. Em cada pátio, galos cantavam e galinhas cacarejavam, e todos tinham de ser mortos. Então chegava a Festa dos Caldos, o Dia dos Gravetos de Salgueiro, a Festa de Azereth, o Dia do Regozijo com a Lei, o shabat do Gênesis. Cada feriado trazia sua própria mortandade. Milhões de aves e gado agora vivos estavam condenados a ser mortos.

Yoineh Meir não dormia mais de noite. Se cochilava, era imediatamente assolado por pesadelos. Vacas assumiam forma humana, com barbas e cachos laterais e solidéus em cima dos chifres. Yoineh Meir estava matando uma vitela e ela se transformava em uma moça. O pescoço latejava e ela implorava ser poupada. Corria para a casa de estudos e salpicava o chão com seu sangue. Ele chegou a sonhar que estava matando Reitze Doshe no lugar de uma ovelha.

Em um de seus pesadelos, ouviu uma voz humana saindo de um cabrito abatido. O cabrito, com a garganta cortada, saltou sobre Yoineh Meir e tentou chifrá-lo, xingando em hebraico e aramaico, cuspindo e espumando em cima dele. Yoineh Meir acordou suando. Um galo cantou como um sino. Outros responderam, como uma congregação respondendo ao cantor. Para Yoineh Meir pareceu que as aves estavam gritando perguntas, protestando, lamentando em coro o infortúnio que pairava sobre elas.

Yoineh Meir não conseguia descansar. Sentou-se na cama, agarrou os cachos com as duas mãos e oscilou o corpo.

Reitze Doshe acordou. “O que foi?”

“Nada, nada.”

“Por que está balançando assim?”

“Me deixe.”

“Está me assustando!”

Depois de algum tempo, Reitze Doshe começou a roncar de novo. Yoineh Meir saiu da cama, lavou as mãos e se vestiu. Queria colocar cinza na testa e recitar a oração da meia-noite, mas seus lábios recusaram-se a pronunciar as palavras. Como podia lamentar a destruição do Templo quando uma carnificina estava sendo preparada ali em Kolomir e ele, Yoineh Meir, era Tito, era Nabucodonosor!?

O ar da casa estava sufocante. Cheirava a suor, gordura, roupa de baixo suja, urina. Uma de suas filhas resmungou alguma coisa no sono, outra gemeu. As camas rangeram. Do armário veio um farfalhar. Na gaiola debaixo do fogão, havia aves que Reitze Doshe tinha prendido para o Dia da Reconciliação. Yoineh Meir ouviu o raspar de um rato, o cricrilar de um grilo. Pareceu-lhe que conseguia ouvir os vermes cavando no teto e no soalho. Inúmeras criaturas cercavam o homem, cada uma em sua própria natureza, cada uma clamando ao Criador.

Yoineh Meir saiu para o quintal. Ali tudo estava fresco e frio. Havia sereno. No céu, as estrelas da meia-noite cintilavam. Yoineh Meir respirou fundo. Andou pela grama molhada, entre as folhas e os arbustos. Suas meias ficaram molhadas acima do calçado. Chegou a uma árvore e parou. Parecia haver alguns ninhos nos galhos. Ouviu o piar dos filhotes despertados. Coaxaram sapos no brejo além da montanha. “Será que não dormem nunca, esses sapos?”, Yoineh Meir perguntou a si mesmo. “Têm voz de homem.”

Desde que Yoineh Meir começara a abater, seus pensamentos eram obcecados por criaturas vivas. Lutava com todo tipo de pergunta. De onde vinham as moscas? Nasciam do ventre da mãe ou de dentro de ovos? Se todas as moscas morriam no inverno, de onde vinham as novas no verão? E a coruja que fizera o ninho debaixo do teto da sinagoga, o que fazia quando vinha a neve? Ficava lá? Ou voava para países mais quentes? E como podia qualquer coisa viver no gelo que queimava, quando mal era possível esquentar-se debaixo do cobertor?

Dentro de Yoineh Meir, cresceu um amor desconhecido por tudo o que rasteja e voa, procria e enxameia. Até pelos camundongos. Era culpa deles serem ratos? Que mal faz um camundongo? Tudo o que ele quer é uma casca de pão ou um pedaço de queijo. Por que o gato é tão inimigo dele?

Yoineh Meir balançava para frente e para trás no escuro. O rabino pode ter razão. O homem não pode e não deve ter mais compaixão do que o Mestre do universo. Ele, porém, Yoineh Meir, estava doente de pena. Como se pode rezar pela vida no ano que vem, ou por um registro favorável no Céu, quando se está roubando a outros o alento da vida?

Yoineh Meir achava que nem o próprio Messias podia redimir o mundo enquanto se praticasse injustiça contra os animais. O certo era que tudo pudesse renascer dos mortos: cada bezerro, peixe, mosquito, borboleta. Até no verme que rasteja na terra fulgura uma centelha divina. Quando se abate uma criatura, abate-se Deus...

“Ai de mim, estou perdendo a cabeça!”, murmurou Yoineh Meir.

Uma semana antes do Ano-Novo, houve um aumento nos abates. O dia inteiro Yoineh Meir passava ao lado de uma fossa abatendo galinhas, galo gansos, patos. Mulheres empurravam, discutiam, tentavam chegar primeiro ao abatedor. Outras faziam piadas, riam, brincavam; Voavam penas, o pátio cheio de grasnidos, de tagarelice, do canto dos galos. De vez em quando, uma ave gritava como um ser humano.

Yoineh Meir estava tomado por um aperto de dor. Até esse dia, ainda esperava que fosse se acostumar com o abate. Mas agora sabia que mesmo que continuasse durante cem anos seu sofrimento não cessaria. Seus joelhos tremiam. Sentia a barriga distendida. A boca cheia de fluidos amargos. Reitze Doshe e suas irmãs também estavam no pátio, conversando com as mulheres, desejando a cada uma um ano-novo abençoado, e formulando os piedosos votos de se reencontrarem no ano seguinte.

Yoineh Meir temeu não estar mais abatendo de acordo com a Lei. Num momento, um negror flutuava diante de seus olhos; no momento seguinte, tudo ficava verde-dourado. Testava constantemente a lâmina da faca na unha do indicador para ter certeza de que ela não estava cega. Tinha de ir urinar a cada quinze minutos. Mosquitos o picavam. Corvos crocitavam para ele entre os galhos.

Lá ficou até o pôr-do-sol, e o fosso se encheu de sangue.

Depois das preces da noite, Reitze Doshe serviu para Yoineh Meir sopa de trigo sarraceno com assado de panela. Mas embora não tivesse tocado em comida desde a manhã, não conseguiu comer. Sentiu a garganta fechada, tinha um pelote no esôfago e mal conseguiu engolir o primeiro bocado. Recitou o Shemá do rabino Isaac Luria, fez sua confissão e bateu no peito como um homem que está mortalmente doente.

Yoineh Meir pensou que não ia conseguir dormir essa noite, mas seus olhos se fecharam assim que tocou a cabeça no travesseiro e recitou a última bênção antes de adormecer. Pareceu-lhe que estava examinando uma vaca abatida em busca de impurezas, abrindo sua barriga, arrancando os pulmões e soprando dentro deles. O que queria dizer aquilo? Porque isso em geral era trabalho do açougueiro. Os pulmões foram ficando maiores e maiores; cobriram a mesa inteira e incharam para cima até o teto. Yoineh Meir parou de soprar, mas os lóbulos continuaram se expandindo. O lóbulo menor, que é chamado de “ladrão”, sacudiu e oscilou, como se quisesse escapar. De repente, um assobio, uma tosse, um grunhido de lamentação escapou da traquéia. Um dybbuk começou a falar, gritar, cantar, a derramar uma torrente de versos, citações do Talmude, passagens do Zohar . Os pulmões subiram e voaram, batendo como asas. Yoineh Meir queria escapar, mas a porta estava bloqueada por um touro negro de olhos vermelhos e chifres pontudos. O touro bufou e abriu uma bocarra cheia de dentes compridos.

Yoineh Meir estremeceu e acordou. Estava com o corpo banhado em suor. A cabeça inchada, cheia de areia. Os pés pousados na enxerga de palha, inertes com pau. Fez um esforço e sentou-se. Vestiu o robe e saiu. A noite estava pesada e impenetrável, grossa com a escuridão de hora antes do amanhecer. De tempo em tempo, uma lufada de ar vinha de algum lugar, como o suspiro de alguém invisível.

Um arrepio percorreu-lhe a espinha, como se alguém tivesse passado uma pena por ela. Algo dentro dele chorava e ria. “Bom, e daí que o rabino disse isso?”, falou a si mesmo. “E se o Deus Todo-Poderoso ordenou, o que é que tem? Posso passar sem recompensas no próximo mundo! Não quero nenhum Paraíso, nenhum Leviatã, nenhum Touro Selvagem! Eles que me deitem numa cama de pregos. Que me joguem no Vazio da Funda. Não quero nenhum dos Seus favores, Deus! Não tenho mais medo do Seu Juízo! Sou um traidor de Israel, um transgressor por vontade própria!” Yoineh Meir gritou: “Tenho mais compaixão que o Deus Todo-Poderoso, mais, mais! Ele é um Deus cruel, um Homem de Guerra, um Deus de Vingança. A Ele não sirvo! O mundo está abandonado!”. Yoineh Meir riu, mas as lágrimas correram por suas faces como gotas ferventes.

Yoineh Meir foi até a despensa onde guardava as facas, a pedra de amolar, a faca de circuncisão. Recolheu tudo e jogou na fossa externa. Sabia que estava blasfemando, que estava profanando instrumentos sagrados, que estava louco, mas não queria mais ser são.

Saiu e começou a caminhar para o rio, para a ponte, para a floresta. A estola de oração e os filactérios? Não precisava mais deles! O pergaminho era feito de couro de vaca. As caixas dos filactérios eram feitas de couro de vitela. A própria Torá era feita de pele de animal. “Pai do Céu, sois um matador!”, gritou uma voz dentro de Yoineh Meir. “Sois um matador e o Anjo da Morte! O mundo inteiro é um matadouro!”

Um dos sapatos saiu do pé de Yoineh Meir, mas ele deixou ficar para trás, andando só com um pé de sapato e uma meia. Começou a gritar, a barrar, cantar. Estou enlouquecendo a mim mesmo, pensou. Mas mesmo isso era sinal de loucura...

Tinha aberto uma porta em sua mente, e a loucura entrou, inundando tudo. De momento a momento, Yoineh Meir ficava mais rebelde, Jogou fora o solidéu, agarrou as franjas de oração e arrancou-as, rasgou pedaços do colete. Estava possuído por uma força, pela inquietação de alguém que se livrou de todas as cargas.

Cães o perseguiam, latindo, mas ele os afastou. Portas se abriam. Homens corriam para fora descalços, com penas grudadas nos solidéus. Mulheres saíam de combinação e touca de dormir. Todos gritavam, tentando impedir sua passagem, mas Yoineh Meir escapou de todos.

O céu ficou vermelho feito sangue, e um crânio redondo emergiu do mar de sangue como do útero de uma mulher ao dar à luz.

Alguém tinha ido contar aos açougueiros que Yoineh Meir enlouquecera. Eles vieram correndo com varas e cordas, mas Yoineh Meir já estava em cima da ponte, indo depressa para os campos colhidos. Corria e vomitava. Caiu e levantou, machucado pela grama. Pastores que levam os cavalos para pastar de noite caçoaram dele e jogaram esterco de cavalo em cima dele. As vacas no pasto correram atrás dele. Sinos tocaram como num incêndio.

Yoineh Meir ouviu gritos, berros, pés correndo. A terra começou a descer e Yoineh Meir rolou encosta abaixo. Chegou à floresta, saltou correndo tufos de musgo, pedras, ribeirões. Yoineh Meir sabia a verdade: aquilo não era o rio à sua frente; era um charco de sangue. Corria sangue do sol, manchando o tronco das árvores. Dos galhos pendiam intestinos, figados, rins. Os quartos dianteiros de animais se punham em pé e o salpicavam de bile e lodo. Yoineh Meir não podia escapar. Miríades de vacas e aves o cercavam, prontas para se vingar de cada corte, cada ferida, cada moela aberta, cada pena arrancada. Com os pescoços sangrando, todas entoavam: “Todos podem matar e toda matança é permitida”.

Yoineh Meir cau num choro que ecoou pela floresta em muitas vozes. Levantou o punho ao céu: “Demônio! Assassino! Fera devoradora!”.

***

Durante dois dias os açougueiros procuraram por ele, mas não o encontraram. Então, Zeivel, que era dono do moinho, chegou à cidade com a notícia de que o corpo de Yoineh Meir havia aparecido no rio, perto da represa. Tinha se afogado.

Os membros da Sociedade Funerária foram imediatamente buscar o corpo. Havia muitas testemunhas de que Yoineh Meir tinha se comportado como louco, e o rabino determinou que o falecido não era um suicida. O corpo do morto foi lavado e sepultado perto dos túmulos de seu pai e sua avó. O próprio rabino fez a apologia.

Como era a estação de festas e havia o perigo de Kolomir ficar sem carne, a comunidade despachou depressa dois mensageiros para trazer um novo abatedor.

* * * * *

PREVISÃO PARA A PRÓXIMA POSTAGEM: 1 de Setembro de 2008

Um comentário:

Anônimo disse...

Olá Bruno,


Deveras impressionante... Uma pena que o final esteve longe de ser feliz!

Sempre leio os seus textos e gostaria sinceramente de escrever extensos comentários no seu blog. O problema é que concordamos praticamente com tudo no quesito direitos animais e não sobra muito espaço para algo além de um "muito bem colocado, Bruno!" Parece que só escrevo com gosto quando tenho a oportunidade de ser do contra.


Um abraço,

Cláudio Godoy