Raposa ferida numa caçada. A tentativa de sua proibição, na Inglaterra suscitou debates sobre "direitos civis", "manejo ambiental" e "modos de vida tradicionais"
Assim como todo ser humano é passível de sofrimento, ele é passível de fazer escolhas morais para se abster de promover, ativa e conscientemente, o sofrimento alheio. É a esse bom-senso que os veganos apelam quando defendem que os animais sejam reconhecidos como indivíduos cuja vida, liberdade e integridades devem ser respeitadas. É possível viver bem e com saúde sem explorar animais. Portanto, não hesito em afirmar que viver de outra forma é pura e simplesmente errado. Todo ser que tem a capacidade de sofrer e sentir prazer deve ter sua dignidade respeitada. Os valores da vida, da liberdade e da integridade não podem ser menos importantes que uma tradição arraigada.
Diante de uma afirmação tão categórica, ressurge a questão do etnocentrismo e aparece também a do universalismo. Porque afirmar a prevalência de valores sobre a tradição não implica etnocentrismo? Vejamos separadamente cada uma destas questões.
Respeito aos animais: etnocentrismo eurocêntrico?
É comum, sendo que a defesa do veganismo é particularmente forte nos países ocidentais, sermos acusados de eurocentrismo. Essa acusação chega a ser risível. O consumo de carne é muito mais difundido no ocidente, um padrão cultural nascido na Europa e expandido para todos os países do mundo junto com a expansão capitalista - um dos indicadores usados para medir a prosperidade de um povo é sua ingestão de proteína animal. Logo, é o carnivorismo que pode ser mais associado à imposição de um padrão de vida e pensamento eurocêntrico (por "carnivorismo" me refiro à expansão do consumo de carne e sua centralidade na dieta humana; não uso o termo de forma irônica ou para ressaltar que haja algum tipo de carnivorismo estrito entre seres humanos). A maioria dos povos e religiões indo-asiáticos são muito mais próximos da cultura vegana, e há mesmo quem afirme que a filosofia do vegetarianismo chegou à Grécia Clássica por influência das religiões orientais. Budistas, hinduístas e jainistas estendem o princípio da não-violência aos animais, e por isso muitos deles são adeptos do vegetarianismo. Os jainistas, aliás, são a cultura onde o vegetarianismo estrito é mais praticado.
Também é importante notar que as culturas não ocidentais, mesmo produtoras de suas próprias barbaridades, têm uma visão muito mais integrada da natureza, o ser humano e os animais. Enquanto a sociedade industrial moderna vê os animais como máquinas de quem se extrair secreções e carne, as sociedades pré-modernas, mesmo quando fazem uso dos animais, reconhecem neles sujeitos merecedores de respeito. Em diversas culturas os animais podem encarnar divindades ou ser vistos como parte de um ciclo evolutivo espiritual (que, não obstante, coloca, naturalmente, o ser humano no topo do mesmo), enquanto a tradição religiosa ocidental afirma que os animais não têm alma, e que não lhes temos quaisquer deveres (pensamento herdeiro da escolástica medieval) e, na tradição secular, eles são autômatos desprovidos de sentimentos, interesses ou inteligência (pensamento herdeiro de Descartes). Percebe-se, portanto, que o pensamento moderno ocidental é um dos mais – senão o mais – nocivo à noção de respeito aos animais; que é o principal responsável pela difusão e expansão em escala industrial de diversas modalidades de exploração animal, muitas das quais não existiam em outras culturas – em países como o Japão até hoje não se tem o hábito de beber leite, por exemplo. Como ainda é possível sustentar a idéia de etnocentrismo eurocêntrico na defesa da libertação animal?
Solidariedade seletiva
A verdade é que todas as culturas têm alguma prescrição sobre o respeito que se deve dispensar aos animais. O problema é que o consumo de carne, leite e ovos, e a criação de animais para abate geralmente não entra nessa conta, muitas vezes por ignorância, outras por egoísmo. Matar animais para comer não é considerado cruel, numa demonstração de incoerência e cinismo comparáveis à aplicação da pena de morte nos Estados Unidos, apesar da condenação expressa de sua Constituição contra penas cruéis – a justificativa é que a pena de morte não seria cruel.
Os seres humanos costumam ser seletivos quanto a quem prestar solidariedade, e muitas vezes o fazem a partir de cálculos egoístas, não abrindo mão da menor comodidade, se isso for contribuir para a vida e a liberdade de outro ser senciente - isso é verdadeiro para outros seres humanos, não é surpreendente que o seja para outros animais. Eles também são seletivos quando a solidariedade se presta a indivíduos que não partilham de seus próprios princípios – os quais, por sua vez, muitas vezes mascaram interesses, de modo que a fronteira entre o primeiro e o segundo caso nem sempre é fácil de traçar.
Desse modo, os socialistas prestam solidariedade aos perseguidos políticos, torturados, executados e famintos vítimas do capitalismo. Subitamente, porém, pessoas que sofrem dos mesmos males em países socialistas não são dignas de solidariedade. Na China e na União Soviética, as tragédias não foram apenas políticas. Houve também fome e destruição do meio ambiente. Em conversa com defensores do socialismo real, os mesmos argumentos são brandidos: essas pessoas não são vítimas, mas inimigos de classe, que em circunstâncias excepcionais podem – e devem – ser sacrificados em nome da coletividade; essas tragédias são questões menores na construção da nova ordem justa e igualitária; elas foram amplificadas e exageradas pela “mídia burguesa”; esses países eram vítimas de campanhas e crises de desestabilização internacional, cujo gerenciamento exigiam atitudes excepcionais.
A direita não é pior: para preservar seus valores e interesses, promovem guerras, apóiam golpes de Estado e condenam populações à fome e à miséria. Também regimes conservadores sofrem do mesmo tipo de incoerência cínica: basta pensar em como o governo de George W. Bush viola direitos fundamentais, não apenas no Iraque, mas em Guantánamo e nos Estados Unidos, prendendo sem mandado, limitando o acesso a advogados, torturando – e ao mesmo tempo se diz defensor da liberdade e da democracia. Quando questionado, a resposta é parecida com a dos socialistas reais: os EUA vivem em estado de guerra e ataque do exterior, os quais forçam e justificam medidas de exceção.
Essa postura é o que eu chamo de “relativismo seletivo”: os erros do inimigo são absolutos e os direitos dos aliados, inegociáveis. Quando a situação se inverte, é porque bons motivos os justificam.
Você tem idéia da brutalidade necessário para domar um elefante?
Respeito aos animais: questão universal
Tratemos agora do universalismo.
Existem fenômenos universais: o amor, a dor, o prazer, a alegria, a tristeza, não são fenômenos culturais. Não são sequer fenômenos humanos. Um pequeno exemplo pode ser usado para ilustrar esse fato: elefantes que são capturados para “trabalharem” em circos ou no transporte em países asiáticos. Esses animais são submetidos a isolamento e maus-tratos para serem “domados”. Passam suas vidas distantes de seu habitat natural e separados de seus parentes – sendo o elefante um animal social. Podemos mesmo relativizar o sofrimento deste animal? Será mesmo que a crueldade intrínseca na exploração de sua força ou habilidades é relativa? Será que a tradição do uso de elefantes como transporte e arma de guerra – algo semelhante ao papel histórico do cavalo na Europa – é mais importante que o respeito à dignidade deste ser?
Tratar fenômenos universais como tal é entender que é possível compreender o outro, desenvolver empatia e, nesse processo, reconhecer sua dignidade e os direitos inalienáveis que esta lhe atribuir. Reconhecer a existência de fenômenos universais não precisa ser um signo da imposição de valores externos. Isso acontece quando se confunde a universalidade com o universalismo, a ideologia que promove a defesa de valores universais, a qual implica uma prescrição militante que resulta na separação do outro ou sua conversão.
Existe um elemento universalista na defesa do veganismo, da mesma forma que existe um elemento universalista na condenação unânime da escravidão humana. Todos os países condenam a escravidão humana como crime. Embora a escravidão tenha sido abolida por uma campanha ocidental, à qual podemos sem dúvida atribuir muita hipocrisia e muito etnocentrismo, seria hoje absurdo defender um retorno à época em que a escravidão humana era socialmente aceita em determinadas sociedades. Aqui, cabe ressaltar que a abolição da escravidão humana, não obstante os fins nada nobres que a motivaram, só foi possível justamente por haver esse ponto comum que possibilitou a tradução e reinterpretação do conceito de liberdade ocidental, iluminista, liberal e universalista. Algo que não foi possível, por exemplo, com as tentativas de supressão da religião na União Soviética ou China – idéias que não possuíam qualquer base social ou lógica, sendo a espiritualidade uma outra característica universal da humanidade.
Embora a filosofia dos direitos humanos seja ocidental, e dela derive em grande medida a filosofia contemporânea dos direitos animais, todas as culturas têm concepções que versam sobre a dignidade humana e, da mesma forma, sobre a relação com os demais animais, como vimos acima – muitas delas muito mais avançadas que a concepção ocidental dominante de matriz cristã-cartesiana.
O respeito aos animais é uma questão consagrada do mundo contemporâneo, embora de forma enviesada, tendenciosa, buscando preservar a exploração dos animais não-humanos. Mesmo onívoros militantes, a não ser que extremamente sádicos, concordam que não se deve tratar animais de forma cruel nem maltratá-los sem necessidade. A maioria se indignaria com casos flagrantes de injustiça contra animais vítimas de violência física ou assassinato por inanição – como aconteceu, respectivamente, com a cadela Preta, no Rio Grande do Sul e um cão numa exposição de "arte" na Nicarágua, casos que extrapolaram a comunidade vegetariana em termos de indignação.
Mas nem só fenômenos são universais. Todas as culturas têm suas concepções de dignidade e direitos. Vida, liberdade, integridade, dignidade não são conceitos puramente ocidentais – afirmar isso sim, seria etnocêntrico. São conceitos igualmente universais. Embora possam ser interpretados de formas distintas, são comuns ao ser humano. Dessa constatação é possível auferir a mesma conclusão: a universalidade não implica em imposição, mas em possibilidade de diálogo. Sua premissa: o respeito ao outro.
Tal diálogo não é apenas possível, mas igualmente necessário. Através do diálogo e da racionalidade, os seres humanos podem se entender e chegar a um acordo. Seria um diálogo intercultural que partiria, segundo o sociólogo Boaventura de Sousa Santos, de duas premissas: a tradução e a hermenêutica diatópica. A primeira afirma que as práticas e conhecimentos de diferentes culturas devem ser “traduzidas” para que sejam compreendidas em suas diferentes interpretações. A segunda afirma que idéias básicas de uma cultura – seus “topoi” – devem ser tratadas como premissas argumentativas, em vez de lugares-comuns inquestionáveis. A partir destas atitudes, pode-se encontrar zonas de contato que possibilitem o entendimento e o trabalho conjunto. Santos adverte, entretanto, que tal diálogo pode em nada avançar na compreensão e respeito pelo outro se não se observar um critério básico: “das diferentes versões de uma dada cultura, deve ser escolhida aquela que representa o círculo mais amplo de reciprocidade dentro dessa cultura, a versão que vai mais longe no reconhecimento do outro” (SANTOS, 2002). Ou seja: o estudo de Santos tem origem oposta ao do relativismo. Em primeiro lugar, ele rejeita a idéia de que as culturas sejam unívocas e imutáveis; rejeita que não se pode estabelecer um diálogo entre culturas; e, por fim, declara que é o pensamento mais abrangente no respeito à alteridade que deve ser buscado para o diálogo – o que implicaria dizer, é o pensamento que dá voz ao oprimido, não ao opressor; à adúltera, não ao apedrejador. Ao touro, não ao toureiro.
Mais uma cena da moderna exploração industrial: o descarte de vidas inúteis para o explorador
A resposta para a tensão entre relativismo e universalismo tentarei dar na parte final do texto:
Veganismo e Etnocentrismo - Final
Primeira parte do texto: Veganismo e Etnocentrismo - Parte I
3 comentários:
nossa bruno!! q textos!..
sou vegana e estou estudando bastante para virar uma ativista em tempo integral, municiada ate os dentes!
agora q descobri seu blog, vou divulgá-lo no meu, ta?!!
don't stop!
saudações abolicionistas querido!!!
V
Olá, V. Obrigado pelas considerações! E qual seria o seu blog?
axo q a ideia de difundir o veganismo eh boa, mas penso k ha um etnocentrismo sim e o ativismo de sua parte abarca um evolucionismo implicito,...me parece k os vegans sao mais avancados e k os restantes povos (principalmente os africanos -ah estes estao sempre a reboque do ocidente)do mundo deviam segui-los,eh isso? realmente eh frustrante falar de relativismo cultural mas feliz ou infelizmente as praticas existem e fazem sentido para akeles q as praticam,...nao nego k os animais tenham sentimento e sintam dor,mas comparar escravidao com carnivorismo me parece um exagero,...posso dizer k sou um ativista moderado,..axo k os maus-tratos aos animais deviam ser combatidos, mas se o veganismo eh sinonimo de avanco cultural, me parece k nao....
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