domingo, 30 de março de 2008

Veganismo e Etnocentrismo - Parte I

Cães criados por sua carne, na China: nem melhor, nem pior. Igualmente bárbaro.

Não é incomum nos depararmos com esta acusação, quando defendemos o veganismo: afirmam que comer carne é uma questão cultural, e que tentar mudá-la não é apenas autoritário, mas também etnocêntrico (ou seja, a imposição da própria cultura sobre as demais). Hoje gostaria de desmistificar essa idéia.

O buraco negro do relativismo

Essa questão incorre, inevitavelmente, na armadilha do relativismo cultural, o qual afirma que todas as culturas são relativas e se equivalem.

Respeitar as diferenças culturais não significa sacralizá-las nem considerá-las imutáveis - o que é uma interpretação conservadora que não combina com o discurso, em geral progressista, dos que apelam para o relativismo cultural como princípio, e não ferramenta de análise. O que os relativistas não entendem é que equivalência não exclui a incompletude. Todas as culturas são incompletas. Apontar tais incompletudes não é manifestação hegemonista ou preconceituosa.

O relativismo cultural se apresenta em círculos cada vez mais próximos do indivíduo. Consideram que não podemos criticar culturas de outra matriz civilizacional (ex: ocidentais não podem criticar orientais ou indígenas). Depois, consideram que não podemos criticar outros países, mesmo que da mesma matriz civilizacional (brasileiros não podem criticar, digamos, as touradas espanholas). Daí a coisa se estende para regiões do mesmo país, pessoas de outras classes sociais, outro sexo, outra geração até que, finalmente, talvez não tenhamos o direito de criticar ninguém além de nós mesmos, numa ditadura do acriticismo relativista politicamente correto.

O que tais pessoas não entendem é que é impossível viver sem fazer julgamentos, emitir opiniões. Fazemos isso o tempo todo, e não há nada de necessariamente errado nisso. Também não entendem que a cultura não é imutável, e que suas transformações muitas vezes se dão pela luta ativa por mudanças, não apenas por uma suposta evolução interior sem atropelos. Embora a cultura - como os indivíduos - só mude através da aceitação geral de novos paradigmas, diálogo e o convencimento são ferramentas necessárias no processo e que, aliás, são usadas por todos, o tempo todo.

Alegar que a carne deve ser respeitada por ser cultural equivale a dizer que devemos respeitar atrocidades do passado e do presente. Pena de morte, tortura, mutilação genital (masculina e feminina) são práticas existentes e socialmente aceitas ainda em muitas culturas. Isso sem mencionar questões como a opressão feminina, o racismo, a homofobia, que com variações, são provavelmente universais. Seria errado condená-las como bárbaras por acontecerem fora do meu círculo social?

Por fim, o relativismo é uma atitude que se auto-anula: se eu me declaro incapaz de julgar qualquer opinião, como posso condenar atitudes que considerar absolutistas? Se todas as práticas e opiniões são relativas, como eu posso condenar pessoas que lutam contra determinadas atitudes que elas consideram injustas (criação de animais, tortura de seres humanos, apedrejamento de adúlteras)? Afinal, se tudo é relativo, também a relatividade é relativa. Se devo respeitar toda e qualquer opinião, devo também respeitar a opinião de quem combate tais atrocidades. Então, o relativista se mostra, na melhor das hipóteses, incoerente.

Se a questão é tão somente se manifestar contra atitudes e opiniões expressas em outro tempo e outras culturas, deveríamos nos questionar se as culturas são estanques, incapazes de dialogar entre si – o que é, obviamente, uma mentira. Nenhuma cultura vive isolada. Deveríamos igualmente nos questionar sobre a adoção seletiva de idéias estrangeiras: se o capitalismo, o nacionalismo e o socialismo são adequados para outras culturas, por que não o respeito aos direitos individuais?

Dor e sofrimento não são relativizáveis

É comodismo e covardia apelar para o relativismo diante de violações flagrantes dos direitos individuais básicos - liberdade, vida, integridade. Dor é dor, não é algo relativizável. Quem o faz, geralmente faz com pessoas distantes, no espaço e/ou no tempo, o que nos desobriga do exercício da empatia. É muito fácil fechar os olhos para um injustiça praticada longe de nós, sem sequer sentir um pouco de culpa pela nossa indiferença.

Todos os seres humanos têm o mesmo interesse na sua dignidade e integridade, moral e física. Quem acha que não devemos criticar pessoas que apedrejam adúlteras e mutilam mulheres deveria imaginar como seria conversar com essas mulheres para saber o que elas pensam de seu destino. Mesmo se alguma delas se manifestar conformada, ainda devemos defender o seu direito, e também de todas as outras. E se apenas uma se mostrar inconformada – o que é inevitável –, é porque aquela experiência cultural não pode ser absolutizada, universalizada. A crítica torna-se, então, não apenas possível, mas justa e necessária.

Ave hiper-alimentada, à força, para produzir "iguaria" francesa: foie gras

Cito um exemplo de um caso que acontece numa cultura distante não porque não haja exemplos gritantes de injustiça e violência na nossa cultura ocidental judaico-cristã, e sim para demonstrar que violações de direitos básicos cometidas em outras culturas podem - e devem - ser criticadas. Os povos islâmicos que ainda praticam o apedrejamento e a mutilação genital feminina, igualmente, têm pleno direito de apontar injustiças nas sociedades ocidentais judaico-cristãs. Da mesma forma, nunca me sinto ofendido quando um estrangeiro denuncia violações de direitos fundamentais praticados no Brasil (trabalho escravo, prostituição e trabalho infantil, tortura, grupos de extermínio, dentre outros absurdos que infelizmente nos são comuns). O que não pode acontecer – mas geralmente é o que ocorre – é uma coletividade usar os erros de outra como álibi para desqualificar as críticas recebidas e se desobrigar de trabalhar por mudanças.

A radicalização do relativismo cultural nos levará, um dia, a afirmar a impossibilidade de criticar injustiças aberrantes e indiscutíveis, como os campos de concentração nazistas, os gulags soviéticos, os Campos da Morte do Camboja, o colonialismo e diversas outras modalidades de genocídio. Isso se torna uma atitude previsível, a continuar prevalecendo o relativismo absoluto (uma contradição em termos!), especialmente à medida que essas experiências mencionadas se distanciam no tempo e os relativistas ganham outro "argumento": o de que julgamos esses eventos com olhos contemporâneos, incorrendo em anacronismo.

O que fazer?

Os relativistas gostam de nos acusar de defender uma ditadura que apaga as diferenças culturais, quando na verdade são eles que partem do errôneo pressuposto da homogeneidade cultural de civilizações, países, classes sociais, etc. Visões divergentes sempre existirão. E nesse universo de inúmeras possibilidades, é o ponto de vista que demonstra maior empatia pela vida, dignidade, liberdade do outro que deve ser defendido. Nosso compromisso, portanto, não deve ser nunca com a absolutização da cultura - que é sempre, aliás, a cultura dominante - que justifica a opressão, mas sim com aqueles oprimidos, violentados, vulneráveis. O compromisso com a liberdade e justiça para quem sofre.

Claro que a ferramenta para lutar contra a opressão nunca passa pela simples imposição, até pelo fato de que ela não é uma forma de mudança efetiva. Empreender guerras preventivas ou "humanitárias" não é uma solução viável para mudar a realidade, inclusive do ponto de vista estratégico. Quando uma injustiça acontece sob nossos olhos, devemos intervir. Mas se ela acontece do outro lado do planeta, promovida por pessoas com outros valores e outro idioma, esse tipo de ação direta se mostra inadequado, ineficaz, perigoso. Mas isso não é uma licença para silenciar: os indivíduos têm sua voz, seu poder pessoal de boicotar, de dialogar, de irradiar, para combater injustiças cometidas por governos, corporações ou indivíduos; e pressionar seus governos para igualmente denunciar e boicotar as injustiças – como no caso atual das Olimpíadas de Pequim, que deveriam ser boicotadas pelos governos, atletas e pelo público. Neste último caso, medidas individuais fariam muita diferença: não comprar produtos chineses, não comprar de patrocinadores dos Jogos de Pequim, não assistir às competições, não viajar para a China, seja para turismo comum, seja para assistir aos Jogos (no caso daqueles que têm recursos e que planejam fazê-lo).

A melhor forma para se encarar as injustiças e as flagrantes violações de direitos individuais básicos não é nem o silêncio nem a imposição, mas o diálogo. Especialmente no caso de diferentes culturas. O diálogo intercultural permite explorar pontos de contato, apontar falhas e incoerências mútuas. Deve-se buscar a cooperação entre indivíduos cujos pensamentos se completam, independente das raízes culturais e fronteiras nacionais. Por isso os defensores dos direitos individuais básicos devem estabelecer canais de diálogo com os que lutam contra a opressão nas diferentes partes do mundo. E por isso os governos gostam de acusar grupos dissidentes de traição à pátria – especialmente os regimes autoritários.

Ocidentalíssima criação de porcos: por que só a estupidez pode ser universal?

Na próxima postagem, explicarei como esta lógica se estende ao veganismo e à libertação animal:

Veganismo e Etnocentrismo - Parte II

4 comentários:

Anônimo disse...

O que eu esperava ser uma desconstrução do argumento que relaciona o veganismo e o etnocentrismo, foi apenas uma apresentação caricatural do que vem a ser o relativismo cultural. Tal apresentação, aliás, que difere pouco das críticas conservadoras e desonestas feitas ao relativismo nos últimos anos. Aguardo a(s) outra(s) parte(s) do texto para tecer comentários mais aprofundados, já que também considero o veganismo que se propõe universalista, como essencialmente etnocêntrico. Do amigo, Fabiano C.

Bruno Müller disse...

Fabiano:

Fico contente com seu comentário pois me ajuda e aprimorar o debate. Gostaria de saber primeiro o q é exatamente conservador num discurso q não reifica as culturas, mas afirma sua transitoriedade - ao contrário do q geralmente sugere o relativismo - e entnocêntrico num texto q afirma, com todas as letras q: 1. não há cultura superior à outra e 2. não se pode impôr um modo de pensamento.

Dito isto, quero dizer q o texto não se propõe a criticar o etnocentrismo, e sim descolá-lo do veganismo, por isso não me ative a estes pontos. O descolamento virá na segunda parte.

E quero dizer tbm q não sou relativista de modo algum, mas isso não implica necessariamente em etnocentrismo, nem em admitir abusos contra a vida ou a liberdade alheia. Aliás, tanto universalismo como relativismo podem atentar contra a vida e a liberdade, só q o primeiro por ação e o segundo por omissão.

Etnocentrismo seria apelar para um discurso único - direitos humanos, por exemplo - sem tentar o diálogo com outras concepções do q seria o respeito a essas premissas básicas - vida, liberdade, integridade.

Seria eu um universalista? Pode ser. Ainda não resolvi essa questão, filosoficamente, na minha cabeça. Já fui anti-universalismo e ainda tenho críticas ao mesmo. Mas atualmente me ofenderia mto mais em ser xingado de relativista...

Em todo caso, no lugar de "universalismo", prefiro usar o conceito de "cosmopolitismo" e ressaltar q existe relatividade e universalidade no mundo, e q a síntese dialética de ambos reside justamente nesse cosmopolitismo.

Existem, indiscutivelmente, experiências universais - dor, prazer, vida, liberdade - as quais, justamente por serem comuns a todas as matrizes civilizatórias, são canais de DIÁLOGO propícias ao intercâmbio, e não ao silenciamento respeitoso e conformista q existe no relativismo.

Se o relativismo não é isso, eu gostaria q vc me apresentasse a versão "complexa" do mesmo. Isso pode até qualificar minha crítica, mas não inviabilizá-la, pois o q domina no relativismo é a versão grosseira q expus em meu texto, e q é partilhada por pessoas das mais diferentes matizes ideológicas. Ressaltando ainda q eu não sou contra a relatividade (conceito), mas sim contra o relativismo (ideologia). Algo q não ficou mto claro, por isso vou retomar, a partir das suas críticas.

Mais q isso, eu gosto de trabalhar com a idéia - q vou expor melhor adiante - de "relativismo seletivo" - q implica em relativizar os erros próprios ou dos aliados, e apelar para o universalismo na hora de criticar os inimigos.

Só a título de esclarecimento, até agora espero divulgar o texto em 3 partes - se eu não acrescentar mais nada... hehehe.

;)

Lêh disse...

Na minha opinião todos nós deveriamos ter uma visão Etnocentrica sobre tal absurdo de comer cães.
Um animal tão adorado e lindoo..ser morto para consumo de gente...como se fosse carne de boi..
Isso não é cultura.
Se no Brasil e em vários outros Paises é crime matar cães..
Por que na China não é?
Pelo Amor de Deus.
Onde Vamos Parar??..
Estou Indignada com tal absurdo..
Para eles não é absurdo..Mais para a gente É UM ABSURDO INEXPLICAVEL

El Zorro disse...

Achei incrivel essa leitura, muito bom!