Ainda na seqüência dos mitos em torno do veganismo, hoje quero tirar o foco dos defensores do consumo de produtos de origem animal, tratar de nós mesmos, e indagar: será que o que dizemos às pessoas realmente ajuda os animais?
Essa questão não se refere tão somente ao debate abolicionismo X bem-estarismo. Sem querer desmerecer essa que é a clivagem fundamental na questão dos direitos animais, eu gostaria de avançar sobre questões que encerram semelhanças com este debate, mas não se resumem a ele.
Quero falar hoje de uma abordagem muito comum no discurso pró-vegetarianismo (não necessariamente pró-veganismo): a dos discursos transversais. Por "discursos transversais" entendo aquele discurso que usa de subterfúgios e mascara ou minimiza a motivação principal do vegetarianismo - a ÉTICA - para tentar ser mais palatável à audiência, conquistando assim mais adeptos. Quem dos vegetarianos já não viu inúmeros exemplos disso? Quantos de nós - eu inclusive, admito - já não perdemos nosso tempo lançando mão dessa estratégia?
A lista de razões não-relacionadas aos direitos animais para ser vegano é enorme, e todas elas bem fundamentadas.
Saúde. Os benefícios de uma alimentação vegetariano são bem documentados, e já têm o respaldo de profissionais e associações importantes - não necessariamente vinculados ao vegetarianismo. É o caso da Associação Dietética Americana, dos Estados Unidos, que declarou que a dieta vegana é segura e saudável, inclusive para crianças, idosos, gestantes e atletas. Eis o link:
www.adajournal.org/article/PIIS0002822303002943/fulltext
Além disso, há também muitos estudos vinculando o consumo de carne a diversos males de saúde, incluindo câncer, diabetes, hipertensão, doenças coronárias.
Meio Ambiente. A criação de animais para corte é ineficiente do ponto de vista econômico, insustentável do ponto de vista ambiental. Gera poluição do solo, da água, emissão de gases do efeito estufa e desmatamento, além de desperdício de recursos hídricos (i. e., água). Abaixo segue o extenso relatório sobre o impacto ambiental da pecuária, elaborado pela FAO, órgão da ONU que dificilmente poderia ser acusado de promotor e defensor do vegetarianismo:
http://www.virtualcentre.org/en/library/key_pub/longshad/A0701E00.pdf
Problemas sócio-políticos. Uma das conseqüências da ineficiência da pecuária, acima citada, é ter sérias implicações sócio-políticas: concentração de renda, super-exploração da mão-de-obra, dependência das importações de alimentos de países que poderiam ser auto-suficientes para alimentar sua população, conseqüente dependência das flutuações do mercado e seus fatores políticos, além do risco de escassez ao comprometer grande massa de recursos naturais na criação de animais. Alguns chegam mesmo a dizer que a pecuária provoca fome.
Espiritualidade. É comum igualmente alegar-se que o ser humano que come animais, come morte, dor, sofrimento, compromentendo a sua evolução espiritual.
Daí, lá na nota de rodapé, em geral, pode ser que o interlocutor venha a mencionar a preocupação ética com os animais. Depois de todas as explicações acima, não admira que então eles nos associem a "naturebas", "ecochatos" ou "crentes".
Existem alguns problemas estruturais com esta estratégia de abordagem. A primeira delas é que eles falham em seus próprios argumentos.
Saúde. Ninguém nega os benefícios que a dieta vegana pode trazer, menos ainda os riscos da carne. Mas será que a pessoa que consome carne ou produtos de origem animal uma vez por semana (por mês?; por semestre?; por ano?) não pode se manter saudável, assim não havendo necessidade de recorrer a medidas radicais? Se nosso interlocutor onívoro nos sacar uma bateria de exames demonstrando a perfeição do seu estado de saúde, o que poderemos argumentar?
Meio Ambiente. De novo, o problema pode ser de escala, mais que de estrutura. E se o consumo de animais fosse reduzido? Ou se a tecnologia e a seleção genética - que fatalmente causarão mais violações de direitos - resolverem ou mitigarem os problemas ambientais da criação de animais? O que poderemos dizer? Comer menos carne pode estar no horizonte de um onívoro. Mas do menos ele não vai passar para o zero, a menos que haja uma mudança estrutural na sua mentalidade.
Problemas sócio-políticos. Embora de fato a pecuária contribua para o problema da fome, sabemos que a quantidade de alimento produzida hoje no mundo é suficiente para alimentar toda a humanidade. A criação de animais não faz parte da estrutura do problema, é subsidiária. Todo o resto do discurso também seria comprometido, afinal, o que determina os problemas sócio-políticos é a estrutura de poder e o modo-de-produção. As pessoas não são pobres, desiguais, desprovidas de poder, por comerem carne. Embora, como qualquer outra atividade econômica, a pecuária encerre um elemento de criação de distinções de poder e riqueza, o problema é, aqui, estrutural do capitalismo, não de uma atividade específica. Se o capitalismo fosse vegano, ainda haveria fome, pobreza, desigualdade. Pois continuaria havendo distribuição desigual de riqueza e de recursos, além da assimetrias de poder entre os Estados.
Espiritualidade. Sem querer enveredar por um terreno em que não tenho nenhum conhecimento, quero apenas destacar o egoísmo intrínseco do argumento: quer dizer que só respeitamos os animais porque isso NOS prejudica espiritualmente? Como assim? E o prejuízo que NÓS causamos aos animais, não tem valor por si mesmo?
Mas o mais provável é que nem mesmo chegue a isso. Diversas religiões orientais, ou práticas como o yoga, fundadas na não-violência, foram domesticadas no ocidente, tornando a questão do respeito aos animais - mesmo que vista como "deveres indiretos" - em segundo plano. Alguns não mencionam propriamente o "karma", mas apenas o fato de a carne ser um alimento "pesado", que mantém o espírito preso ao corpo, quando haveria necessidade de um alimento mais "sutil" para poder meditar e conectar-se com esferas mais transcendentes. As restrições são tomadas apenas para as horas antes ou depois da prática de meditação, yoga, etc. Não deixa de ser sintomático que haja mesmo instrutures de yoga que ainda são onívoros.
Conclusões. A primeira conclusão a que podemos chegar é que não há razões fortes por trás desses argumentos. Mostre a um onívoro que ele pode ser saudável, próspero e viver em ambiente são, comendo só um pouquinho de carne ou produtos animais, e ele jamais irá contemplar ser vegano. Como já ouvi de um ex-amigo onívoro: "Eu não como bacalhau mais que uma vez por ano, mas não quero deixar de comer bacalhau. Gosto de saber que tenho esta opção." Algumas pessoas poderão até ser convencidas por estes argumentos. Porém, o mais provável não é que, através dele, elas subitamente despertem para as implicações éticas da exploração animal. É antes mais provável que ela desista do novo caminho tão logo cessem suas motivações, ou mostrem para ela que "não é bem assim" (apontando os exemplos acima) ou ela se desiluda com a nova descoberta - uma doença que rompa com o mito do vegetariano que nunca adoece - substituída, prontamente, por médicos e familiares, pelo mito do vegetariano eternamente sob o risco de adoecer; uma discussão sobre o uso de agrotóxicos na agricultura; exemplos de projetos de inclusão social que envolvam animais, etc.
A segunda conclusão é que, se torcermos todos os argumentos anteriores até extrairmos o essencial, veremos que nenhum deles é melhor do que o espiritual no quesito EGOÍSMO: todos eles apenas destacam o que há de ruim para o ser humano no hábito de comer carne. Tal discurso tem como único efeito reforçar o antropocentrismo que os defensores dos animais tanto criticam.
O que nos leva à terceira conclusão: como podemos esperar colher maçãs ao plantar bananas? Como podemos esperar que as pessoas se importem com os animais, e os respeitem, ao tirá-los de suas vistas na hora de defender o veganismo? Como podemos esperar derrotar o antropocentrismo reforçando-o com nosso discurso? Não há como.
Daí, claro, podem argumentar (e sempre argumentam) que o discurso ético é muito menos aceito, respeitado. Que o antropocentrismo é tão forte que temos que apelar para ele, pegando os seres humanos onde eles são sensíveis. A minha resposta é que em 20 anos de vegetarianismo vi muitas pessoas deixarem de comer carne por questões transversais - especialmente saúde. Não vi nenhuma delas perseverar. Para que uma pessoa desperte para as razões ÉTICAS do veganismo, ela precisará, em algum momento, confrontar-se com elas - JUSTAMENTE por causa do antropocentrismo, que funciona como um véu a encobrir a realidade e embotar o raciocínio.
O que não quer dizer que não possamos usar estes argumentos nunca. Podemos e devemos - como linhas de argumentação auxiliar. A ÉTICA deve ser sempre o fio condutor das nossas conversas sobre veganismo. Com algum tempo de experiência no ativismo pelos animais, posso garantir que consegui muito mais adeptos com o meu discurso ético, do que em anos tentando disfarçar minha preocupação central pelo medo de não ser ouvido ou aceito. Veganismo são os Direitos Animais na prática, nunca podemos nos esquecer disso. Uma vez que a pessoa rompeu com o padrão antropocêntrico, o retorno é muito mais difícil, bem menos provável. O caminho ético é o mais tortuoso, o menos popular, mas também o mais seguro e o mais coerente - e, portanto, o mais duradouro.
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PREVISÃO PARA A PRÓXIMA POSTAGEM: 21 de Julho de 2008
Um comentário:
Olá Bruno,
Parabéns pelo excelente texto!
Está tão de acordo com o meu ponto de vista que eu gostaria de tê-lo escrito.
Um abraço,
Cláudio
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