Este texto foi divulgado há alguns meses no Orkut. Após uma revisão, vou publicar no blog onde ele poderá ter mais e novos leitores
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Uma das coisas que mais me surpreende no universo dos direitos animais, e seus defensores, é como ainda se vê, entre vegetarianos, especialmente os que conhecem a realidade da pecuária, quem defenda ou não veja problemas no consumo e produção de leite e ovos, e que hesite tanto antes de aderir definitivamente ao veganismo.
Eu só encontro uma justificativa aparente para isso: as pessoas não vêm essa produção como tão cruel como a de carne, por teoricamente – e apenas teoricamente – não envolver morte. No entanto, é fácil demonstrar que a realidade é muito mais complexa – e terrível – do que parece.
A primeira questão que gostaria de ressaltar é que o consumo de leite é muito mais antinatural que o consumo de carne. Segundo os biólogos, o ser humano evoluiu comendo carne. Na natureza, onde a alimentação é incerta, isso possibilitou a ele encontrar nutrientes concentrados importantes numa época em que não se sabia quando viria a próxima refeição. Além das vantagens que isso trouxe ao indivíduo, beneficiou também o desenvolvimento das coletividades, que puderam prosperar, crescer.
O consumo de leite veio muito depois, quando o homem descobriu que, ao invés de caçar, ele podia criar suas vítimas. Daí a vaca estava lá, prontinha pra ser comida, porque não tirar o leite dela primeiro? Ora, é possível comer carne de um animal livre. Tomar seu leite, nunca. Experimentem ordenhar um mamífero selvagem. Vocês vão descobrir que é mais fácil (e lógico) matá-lo e comer sua carcaça.
Com esta argumentação não estou defendendo o consumo de carne. Com a sedentarização e a agricultura, ela é totalmente desnecessária. Eu estou sim criticando o consumo de leite. Enquanto ordenharmos as vacas, elas nunca poderão ser livres, e esse é, na verdade, o ponto principal.
Isso vale também para os ovos. Na natureza era possível colher ovos de aves. Bastava espreitar seus ninhos. Mas estes eram ovos fecundados, que não entram numa dieta vegetariana. Os ovos que todos consumimos são ovos não fecundados. E para obtê-los, novamente, precisamos de animais domesticados – criados em cativeiro. "Cativo" é outra palavra para seres que são propriedade, que são escravos. Escravos são seres cuja existência é dependente de outro ser para o qual trabalham. É a condição à qual reduzimos vacas e galinhas. Mas voltando aos ovos... Ora, para a galinha dar ovos não fecundados ela não pode ter relações sexuais. Isso significa: nenhum galo por perto. A vaca tem o problema oposto: tem que estar sempre prenhe. Vidas totalmente dependentes e artificiais. Mesmo que sejam criadas soltas, elas continuam reduzidas à condição de coisas. De máquinas de dar ovos e leite.
A realidade das galinhas de granja e vacas de fazenda é mórbida: confinamento, mutilação, hormônios para aumentar a produção, antibióticos e posterior assassinato. Alguém duvida que essa linha de produção é ainda mais cruel que a da carne pura e simples? Seja por causa dos hormônios ou devido à manipulação genética, uma vaca é forçada a produzir artificialmente muito mais leite do que produziria naturalmente. Isso é doloroso. Imaginem uma mulher tendo que dar 12 vezes mais leite do que é capaz: ela ficaria com os seios inchados, teria risco de infecções, teria dores na hora em que fosse “ordenhada”. Agora imaginem que se faça isso sistematicamente com uma mulher, ano após ano. É o que acontece com a vaca – mesmo a que pasta solta. Por isso os bem-estaristas alegam que a vaca precisa ser ordenhada, senão morre – mas se o ser humano cometeu o erro de modificá-la em prejuízo da mesma, isso serve de licença para o ser humano de hoje persistir no erro? Existe mesmo alguma justificativa para isso?
Para concluir, o “argumento” definitivo dos ovo-lacto-vegetarianos e bem-estaristas: podemos ter leite e ovos sem matar vacas e galinhas. Se você continua achando que podemos ser bons senhores sem matar nossos escravos, eu quero dizer que matar é sim parte necessária do processo.
Hoje somos mais de 6 bilhões de pessoas. No mundo ocidental, o consumo de carne, leite e ovos é gigantesco. Para atender a essa demanda a produção tem de ser em escala industrial. A produção industrial não comporta o bem-estarismo.
Explico. Basta tentar estimar quantos litros de leite e dúzias de ovos se vê nos supermercados. Todos abarrotados de leite e ovos, de norte a sul do país, e no mundo inteiro. Milhões de toneladas de leite e ovos. Para termos tanto leite e ovos, precisamos de muitas vacas e galinhas. Para que a humanidade os tenha nessa quantidade absurda, vacas e galinhas, além de ser entupidas de hormônios e geneticamente manipuladas, precisam ser confinadas, para que caibam mais delas em menos espaço. Imaginem o efeito que os hormônios, o estresse, os antibióticos fazem no seu organismo. Será que elas levam uma vida saudável?
Não levam. E elas não consegue levar esse “estilo” de vida adiante por muito tempo. Vacas não são capazes de produzir leite 12 vezes mais do seu organismo fabrica naturalmente por toda a sua vida fértil. O mesmo vale para a quantidade de ovos que as galinhas são forçadas a pôr. Alguém acha que o produtor iria mantê-las vivas por mais 10, 15 anos, depois que não produzissem mais, ou sua produção caísse, sabendo que aquele espaço (ínfimo) que elas ocupam é necessário para obter o leite de outra vaca, e os ovos de outra galinha, ainda férteis? É por isso que, embora uma vaca possa viver mais de 20 anos, e uma galinha, mais de 10, elas são mortas muito antes disso: cerca de 4 anos, no caso das vacas; cerca de um ano e meio, no caso das galinhas. Mesmo que elas pudessem morrer “naturalmente”, o mais provável é que elas não sobrevivessem ao processo. E, se sobrevivessem, teriam uma existência miserável. A demanda nunca acaba.
Além disso, para termos uma nova geração de galinhas, precisamos fecundar os ovos às vezes. Temos mais galinhas do que galos... Alguém imagina o que acontece com os pintos machos, que como os bezerros machos não valem nada para o produtor? Se há alguém que não sabe a resposta, eu a antecipo: bezerros e pintos machos são descartados, isto é: mortos o mais rapidamente possível. Os pintos são triturados e vão parar na ração de animais domésticos. Os bezerros machos podem ser mortos ao nascer: esses são os sortudos. Os azarados irão viver 4 meses em confinamento, no escuro, amarrados, para não desenvolver músculos, e propositadamente subnutridos, para que da sua anemia e fraqueza o ser humano obtenha a carne macia, clara e de baixa gordura conhecida como carne de vitela.
Mesmo que o mundo fosse ovo-lacto-vegetariano, as vacas e galinhas continuariam sendo mortas – como são mortas a maioria das vacas e galinhas criadas soltas hoje. A única outra saída que eu encontraria para que elas tivessem uma vida mais longa seria se o consumo reduzisse drasticamente, a ponto de leite e ovos serem luxos a ser consumidos em datas e ocasiões especiais. Mas ainda assim, elas seriam escravas. E ainda haveria o dilema do que fazer com os machos – se não vamos comê-los, para onde eles irão?
A solução mais lógica e racional é o veganismo. Ser ovo-lacto-vegetariano não basta, se você acredita que os animais merecem respeito.
Mas então porque ainda existem tantos ovo-lacto-vegetarianos? Claro, ainda existem aqueles desinformados a quem escapa a realidade da produção de laticínios e ovos. Mas por experiência própria, como ativista, sei que muitos ovo-lacto-vegetarianos conhecem essa realidade, mas relutam e criam justificativas para não aderir ao veganismo. Infelizmente, eu só posso deduzir uma resposta que explique essa situação. A maioria dos vegetarianos, antes de respeitar os animais, tem natural repulsa pela carne, o que é explicável: é carcaça em decomposição, sanguinolenta e mal-cheirosa. Isso é ótimo para se dar o primeiro passo. Mas é insuficiente para dar o passo definitivo. Alimentos “disfarçados”, como gelatina, leite e ovos, ou alimentos que levam estes ingredientes, são bem tolerados por terem uma aparência menos (ou nada) repulsiva. As pessoas que se dizem vegetarianas pelos animais, mas não conseguem aderir ao veganismo, pelo jeito, têm mais repulsa aos animais mortos do que respeito pelos animais vivos...
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PREVISÃO PARA A PRÓXIMA POSTAGEM: 24 de Junho de 2008.
4 comentários:
Prezado Bruno,
Sempre devemos começar a nossa defesa do veganismo utilizando como exemplo o melhor cenário possível, mesmo que este seja absurdamente inverossímil.
Neste caso em questão, mesmo se nenhuma vaca leiteira ou galinha poedeira fosse morta, se os machos não fossem descartados, se os filhotes não fossem separados das respectivas mães, se os animais vivessem em um hotel cinco estrelas e não pudessem estar mais felizes, se a produção de ovos e leite fossem as atividades mais ecologicamente corretas do mundo e se o seu consumo fosse a coisa mais saudável do mundo e nos fizesse viver mais de duzentos anos, o uso de indivíduos sencientes como objetos é imoral e ponto final.
Isso não significa que a descrição do que acontece na vida real não seja útil, especialmente quando o paradigma atualmente vigente em relação aos animais não-humanos é o bem-estarista. Mas ela sempre deve servir como um gancho para a abordagem abolicionista, do mesmo modo que as questões relacionadas à saúde humana, ao meio ambiente e a ineficácia do modelo animal em experimentos científicos.
Para variar, o seu texto está primoroso e contundente na medida certa. Se bem que alguns, especialmente algumas, poderiam reclamar que a foto que você usou poderia ter conotações sexistas. Também nunca deveríamos incorrer na falácia naturalística, ou seja, usar o argumento de que o que é antinatural necessariamente é imoral. Muitas vezes ocorre exatamente o contrário.
Um grande abraço,
Cláudio Godoy
bem, curti o texto!
argumentação legal. as ressalvas do cláudio são interessantes, mas este é um caminho bom sim de raciocínio para persuasão: inclui o argumento de que de qq jeito os animais serão mortos e feitos propriedade e cativos deste jeito.
quanto à foto, achei muito bem selecionada/produzida. gostaria de saber mais sobre o histórico dela, sua origem, etc. não acho que seja sexista. faz uma metáfora inteligente.
Maurício:
Não sei a origem da foto. Achei no google... hehehehe... E tbm não acho sexista. É a analogia correta: ordenhar vacas é o mesmo que ordenhar mulheres.
Cláudio:
Eu entendo e concordo com sua opinião. Claro que mesmo que tudo fosse idílico na exploração animal, não seria ético explorá-los. A razão pela qual não insisti nessa linha de raciocínio é que o objetivo do texto é justamente contrapor essa aspiração idílica do bem-estarismo. Eu cansei de ver ovo-lactos se defendendo dizendo que tomam leite de vacas protegidas, ou que elas não precisariam ser mortas. Então meu objetivo foi explicar que na prática isso não é viável.
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