Hoje gostaria de discorrer um pouco sobre o princípio fundamental da igualdade de consideração de interesses. Que, em miúdos, significa que interesses iguais ou semelhantes devem ser tratados de modo igual ou semelhante, independentemente de quem seja o titular dos interesses em questão. Certamente não é nenhuma lei da física, mas todos aqueles que se consideram minimamente civilizados deveriam se importar com sua aplicação racional. E para demonstrar que este princípio está longe de ser aplicado em toda a sua plenitude em nossa atual sociedade, nada melhor do que nos voltarmos para os direitos humanos.
O conceito universal de direitos humanos não comporta nenhum tipo de relativismo moral nem admite a menor concessão em nome da tradição, dos costumes e da emoção. Os direitos básicos à vida, à integridade física e à liberdade se aplicam a todos os seres humanos, independentemente de suas características individuais. No entanto, a observância destes direitos admite algumas exceções, como no caso em que uma pessoa ameaça violar qualquer um desses direitos e é devidamente impedida de consumar o seu intento pelos meios estritamente necessários, que podem inclusive resultar em sua morte, em ferimentos ou na perda de sua liberdade. Na verdade, o direito mais fundamental que possuímos e que não admite nenhuma exceção é o de não sermos usados instrumentalmente sem o nosso devido consentimento para satisfazer às necessidades alheias, mesmo se em alguns casos estas necessidades forem legítimas e se muitas pessoas se beneficiarem com o nosso uso instrumental. É por esta razão que a escravidão, o estupro, a pedofilia, a doação de órgãos não consentida e a vivissecção estão entre o que há de mais odioso.
E por que este direito básico se aplica a todos os seres humanos, sem nenhuma exceção? De acordo com o atual paradigma, este direito se aplica exclusivamente aos animais humanos devido ao fato de que somos os únicos a possuir agência moral, ou seja, podemos conceber, compreender e aplicar conceitos abstratos como os de direito e de justiça e somos plenamente responsáveis pelas conseqüências de nossos atos. No entanto, muitos seres humanos não são agentes morais, e nem por isso são menos merecedores do direito de não serem tratados como recursos pelos outros. Em alguns casos, a ausência de agência moral é temporária, como no caso de bebês e dos comatosos, mas existem vários exemplos de seres humanos que carecem permanentemente deste atributo. Para justificar o motivo pelo qual estes chamados casos marginais também teriam os mesmos direitos básicos que os seres humanos normais, costuma-se recorrer a um sofisma artificioso denominado argumento da normalidade da espécie. De acordo com este argumento, os casos marginais entre os seres humanos teriam direitos básicos porque pertenceriam a uma espécie cujos membros normalmente são agentes morais. Na verdade, o argumento da normalidade da espécie nada mais é do que um nome pomposo para discriminação, pois trata os indivíduos de acordo com o grupo ao qual eles pertencem ao invés de tratá-los de acordo com as suas características individuais. E podemos aplicar este mesmo argumento tanto para o bem como para o mal. Com certeza, todos nós somos favoráveis a instalações para deficientes físicos em locais públicos, mas de acordo com o argumento da normalidade da espécie, estas instalações deveriam ser abolidas, pois normalmente os seres humanos são capazes de andar sem ajuda. Também seria um absurdo considerar penalmente imputáveis doentes mentais que cometeram algum crime, mas de acordo com o princípio da normalidade da espécie, eles deveriam ser julgados como se tivessem plena posse da razão, pois normalmente os seres humanos são plenamente responsáveis pelos seus atos.
Na verdade, o próprio argumento dos casos marginais é irrelevante para se determinar a razão pela qual todos os seres humanos possuem direitos básicos, pois mesmo se todos os seres humanos fossem agentes morais, não seria esta a razão pela qual eles teriam estes direitos. Temos o direito à vida, à integridade física e à liberdade pela simples razão de que temos o interesse de continuarmos a viver, de não sermos feridos e de não sermos mantidos em cativeiro, mesmo se alguns de nós fossem momentânea ou permanentemente incapazes de conceber os conceitos abstratos de “vida”, “integridade física” e “liberdade”. E de acordo com o princípio da igualdade de consideração, fundamental no combate ao racismo e à discriminação sexual, estes direitos básicos não poderiam ser negados a nenhum ser humano e a nenhuma outra criatura capaz de ter os mesmos interesses, exceto em um contexto de legítima defesa. Do mesmo modo que os racistas e os machistas discriminam com base em características biológicas em questões onde estas características são completamente irrelevantes para defender privilégios inaceitáveis, o mesmo fazem os especistas ao desdenhar dos interesses básicos dos animais que tiveram a infelicidade de serem explorados pelos seres humanos.
O atual paradigma que rege as relações entre os seres humanos e os outros animais se baseia em uma construção social que deixou de ter qualquer respaldo científico desde a publicação da “Origem das Espécies”. Sua premissa fundamental é a da superioridade dos seres humanos sobre todos os outros animais. É claro que o termo “superioridade” pode ser empregado em um sentido mais específico, quando diz respeito a uma maior complexidade morfológica, habilidade, capacidade de empatia ou a um grau de adaptação a um determinado ambiente. Mas não existe superioridade alguma no sentido lato e todas as afirmações em contrário não pertencem à esfera científica. Fundamentalmente, esta “superioridade” se baseia no nosso poderio esmagador sobre todas as outras espécies. Só que o poder nem sempre caminha de mãos dadas com aquilo que é justo.
As nossas obrigações morais para com os outros animais são de ordem eminentemente negativa, ou seja, não deveríamos tratá-los como recursos à nossa disposição. Isso não significa abrir mão do nosso direito de existir como espécie. Ao exercer legitimamente o nosso direito à autodefesa, podemos matar tanto gafanhotos, mosquitos e leões quanto outros seres humanos. O que é bem diferente da utilização de ratos para a cura do câncer em humanos, pois, neste caso, o seu único “crime” é o de pertencer a uma espécie diferente, considerada “inferior” e descartável.
Atualmente, podemos viver perfeitamente sem consumir qualquer produto de origem animal e a abolição destes produtos também resultaria em benefícios adicionais à nossa saúde e à preservação do planeta. E mesmo se pudéssemos auferir imensos benefícios com o uso de animais não humanos em experimentos biomédicos, devemos ter em mente que já abrimos mão de benefícios ainda maiores por razões exclusivamente morais, que, no caso, seriam advindos da vivisseção humana, muito mais eficiente em termos estritamente científicos. Até mesmo em casos de extrema necessidade, como é o das pessoas que estão prestes a morrer na fila de espera dos transplantes de órgãos, jamais passaria pela nossa cabeça matar uma pessoa órfã com deficiência mental profunda para doar os seus órgãos a outra pessoa cuja vida supostamente teria “muito mais significado”.
Em resumo, todos aqueles que são capazes de ter sensações jamais deveriam ser usados exclusivamente como meios para satisfazer os fins alheios, pois a sua senciência é uma característica suficiente para que todos eles sejam um fim em si mesmo, independentemente do grau de utilidade que possam ter para os outros.
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