“I’ve
always been mad, I know I’ve been mad, like the most of us are”
Gerry O’Driscoll
O texto a seguir é
uma interpretação muito pessoal, um esboço de uma leitura não antropocêntrica
de uma obra prima da música popular contemporânea, o álbum Dark Side of the
Moon, da banda inglesa Pink Floyd, e também uma homenagem aos seus 40 anos de
existência, completos no dia Primeiro de Março de 2013. Pode ser melhor
definido como uma releitura ou reconstrução, não tendo, portanto, a pretensão
de oferecer uma análise literária, filosófica e conceitual nem rigorosa, nem
exaustiva. É, contudo, inspirado nas minhas leituras da Teoria Crítica, do
Esclarecimento (mais conhecido como Iluminismo) e, claro, dos Direitos Animais.
Tenho pensado no processo do esclarecimento
e na teoria crítica a partir de um ponto de vista “floydiano”. Mais
especificamente, a partir de questões levantadas pela a obra clássica do Pink
Floyd – o disco Dark Side of the Moon.
Meus pontos de partida foram, em primeiro lugar, a síntese que
seu principal autor, o baixista e letrista Roger Waters, ofereceu para os temas
suscitados pelo álbum. Ele é, nas suas palavras, uma afirmação da empatia,
sendo esta a premissa que
provê a integração temática entre as canções. Em segundo
lugar, a dimensão visual que sempre foi tão importante na concepção artística
da banda, partindo tanto da icônica capa do disco, o prisma que decompõe a luz,
e das imagens projetadas nas suas apresentações ao vivo em que o álbum era reproduzido
na íntegra. Em terceiro lugar, dos roteiros e esboços
extraídos de depoimentos da banda e versões anteriores, as quais podem servir
de complemento ou contraponto às ideias que seriam desenvolvidas no resultado
final.
Com base nesses elementos, tentei articular
a teoria crítica como um prisma que decompõe as diferentes dimensões da
realidade, sendo a luz solar uma metáfora para o esclarecimento, e o eclipse a
sombra que se projeta sobre a realidade, nos impedindo de apreendê-la na sua
plenitude. O prisma, por sua vez, pode servir como instrumento para a
reconstrução crítica e criativa, mas também como um fragmentador, que desvia a
luz em várias linhas crescentemente divergentes. Pode, assim, servir tanto ao
propósito esclarecedor da teoria crítica quanto aos fins enganosos da ideologia,
a partir das lentes do observador.
Speak
to Me
O primeiro ruído a abrir o álbum é o
batimento do coração. É um convite à disposição afetiva para o contato com o
mundo exterior. Ele nos leva a um estado anterior à razão. Estar vivo é
condição sine qua non para a
participação criativa nos processos da natureza, uma faculdade que não é
exclusiva do ser humano. A maioria dos animais, e somente eles, são dotados de
um coração, o órgão que bombeia o fluido vital que anima todos os demais órgãos.
Após esse sopro fundamental, porém, vem o discurso. A primeira faixa segue numa
amálgama dos depoimentos coletados pela banda, a partir de algumas perguntas
chave, apresentadas a diferentes pessoas que estiveram presentes no estúdio
onde o disco era gravado. Seu título seria a primeira pista do tema da empatia,
fundada no diálogo entre as partes, a comunicação, outro tema recorrente nas
músicas do Pink Floyd. O diálogo como requisito para o entendimento mútuo pode
ser ele mesmo entendido de modo restrito, cartesiano, antropocêntrico e
egocêntrico. Mas pode ser também reformulado como um diálogo entre o humano, a
sociedade, a natureza e o animal. Os três últimos “falam” com o ser humano,
embora numa linguagem que frequentemente não é compreendida. Compreender essa linguagem
é fundamental para estender, para além do círculo restrito das relações
pessoais, a empatia, de modo a expandir a nossa comunidade moral. Assim, o
contato com o outro, e a disposição para o diálogo nos tem permitido, em teoria
– mas constantemente não na prática – ampliar nossa consciência ética para além
dos laços tradicionais da família e da comunidade local para contextos cada vez
mais amplos da humanidade, os demais animais e a natureza.
Breathe
A primeira exposição direta da filosofia
subjacente à obra pode ser entendida como um convite ao exercício da empatia
diante do mundo que nos cerca:
Breathe, breathe in the air
Don’t be afraid to care
O verso a seguir é interessante na medida
em que a exaltação ao engajamento afetivo não se dá pela anulação individual. É
também uma exortação para ir além dos afetos: requer discernimento – Look around – e traz consigo não só a
possibilidade, mas a responsabilidade da autonomia moral – Choose your own ground
– para agir sobre a realidade. A liberdade implica, assim, direitos e
deveres – ecos de Rousseau e Kant podem ser encontrados nesta primeira estrofe.
A referência, na segunda estrofe, à
percepção da experiência, num sentido quase empirista – And all you touch and all you see/ Is all your life will ever be
– é, a seguir, complementada pelo imperativo da ação sobre a realidade:
Run, rabbit, run
Dig that hole, forget the Sun
When, at last, the work is done
Don’t sit down, it’s time to dig another one
Impossível não recordar da famosa assertiva
de Karl Marx: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão,
porém, é transformá-lo”.
Percebe-se, nesta passagem, porém, a influência mais ampla da ética do trabalho
que inspira ideologias de outro modo tão diferentes quanto o liberalismo e o
marxismo.
A estrofe final encerra, porém, uma
advertência aberta a múltiplas interpretações:
For long you live, and high you fly
But only if you ride the tide
And balance on the biggest wave
You race towards an early grave
O trecho foi frequentemente entendido com
uma referência à ambição. Outras leituras, entretanto, são cabíveis e talvez
mais adequadas. O “equilíbrio sobre a onda mais alta” é precedido pela
passividade diante da vida – “somente seguir a maré”. Essa qualificação
reinsere, de modo mais adequado, a linha mestra da empatia como a participação
criativa e afetiva no mundo, em contraste daqueles que vêm ao mundo “a passeio”
e navegam com indiferença (e imprudência), sem consciência do que está no seu
entorno. No fim, “não ter medo de se importar” é a atitude mais prudente diante
de um mundo cujos perigos nos amedrontam e paralisam nossa capacidade de agir e
arriscar. Pode ser incluída também uma metáfora ainda mais ampla sobre a
própria vida e a morte, a linha tênue que as separa, a fugacidade da existência.
A canção cria então o contexto, a fundação
sobre todos os temas subsequentes. A linha descendente em que ela é concluída é
também uma descendente sobre o lado obscuro da existência – o “dark side”. Em vez da estrutura
narrativa clássica, que apresenta as conclusões após o desenvolvimento do
conjunto da obra, Dark Side of the Moon
já se abre com a chave do enigma para o problema do esclarecimento, do pleno
desenvolvimento de nossas capacidades morais.
On
the Run
Originalmente intitulada “The Travel Sequence”, essa música
instrumental foi a princípio concebida a partir da experiência da banda, na
corrida frenética dos concertos e no medo de voar do próprio Roger Waters,
exacerbado pela exposição contínua ao risco, devido às viagens constantes. A
fobia é manifesta no clímax, onde se ouve o ruído de uma explosão. O título
final é mais instigante, porém. “On the
Run” significa “em fuga”, e pode referir de modo mais abrangente e sugestivo
à fuga da realidade, o nosso desligamento do mundo, enclausurados na corrida
frenética da sobrevivência, dos imperativos da vida profissional, da busca pela
satisfação pessoal. Enfim, da alienação. Pode, assim, ser interpretada também
como uma crítica social, sutil mas contundente, ao desapego afetivo e moral
imposto pela disciplina e pela exploração do trabalho. Impossível não
associá-la à crítica socialista do capitalismo industrial, que acelera a vida e
aprofunda a alienação. Mas, saindo do óbvio, compreendemos que este processo é
contínuo, dado que a história humana é uma linha constante de exploração,
opressão e destruição, com o qual nenhum sistema social, antes ou depois,
conseguiu romper. Isso nos afasta da idealização do passado e das utopias simplistas.
Transformar a realidade é um projeto para o futuro, e requer uma teoria crítica
da realidade, composta pela constante reflexão autocrítica.
Time/ Breathe Reprise/ The Great Gig in the Sky
A seção seguinte, que toma o restante do que
era o Lado A do LP pode ser integrada como uma sequência sobre a temporalidade
e a mortalidade, que inclui referências à religião. Os carrilhões e
despertadores retomam, de modo mais explícito, a fugacidade da existência cujas
pistas foram intuídas nas faixas anteriores. Mas o tema da alienação também
está manifesto em largas pinceladas: a indolência que serve de contraponto à
vida moderna acelerada, os planos que não dão em nada, a “espera em quieto
desespero” (Hanging on in quiet
desperation) que, no entanto, não deixam ao observador muito mais o que
dizer (Thought I’d something more to say).
O único conforto parece vir da familiaridade do lar, e da fé, apresentados em Breathe Reprise. Trata-se, porém, de um
breve interlúdio, um mero escapismo que não oferece segurança efetiva aos
golpes da vida.
Isso se demonstra pela análise da faixa
seguinte, The Great Gig in the Sky,
em que não há muito espaço para confortos sentimentais ou espirituais. Originalmente
intitulada The Mortality Sequence (e adornada,
a princípio, por citações bíblicas, que felizmente não chegaram à versão
definitiva), não possui letra, apenas as vocalizações que exprimem o sofrimento
e a morte, complementados nas apresentações ao vivo por um vídeo em que a
vastidão e violência das ondas do mar parecem afogar a audiência nas dores da
existência, até o vazio da não-existência. Há uma sensação de vulnerabilidade e
pequenez diante dos processos que não conseguimos efetivamente compreender ou
controlar.
Money/
Us and Them
A sequência que abre o Lado B é a que fala
mais diretamente das relações de poder, exploração e opressão que parasitam a
vida social. Não é de admirar que “Money” seja a letra mais direta do álbum,
bastante afim à crueza do materialismo das relações de produção, que substituem
os laços simbólicos pela exploração crua e direta.
New car, caviar, four-star daydream
Think I’ll buy me a football team
(…)
Money, it’s a hit
Don’t give me that do-goody good bullshit
I’m in the high fidelity first class traveling
set
And I think I need a Lear Jet
A ganância pode ser entendida como outra
dimensão da fugacidade e alienação. A busca da felicidade se dilui na acumulação,
a busca de prazeres materiais, insaciáveis, incessantes, crescentes, no qual
não há espaço para a empatia, senão manifesta num sentido muito superficial,
abstrato e hipócrita, constituído por lugares comuns e frases de efeito, sem
nenhum efeito prático ou profundidade filosófica:
Money, it’s a crime
Share it fairly but don’t take a slice of my
pie
Money, so they say
Is the root of all evil today
But if you ask for a rise,
It’s no surprise that they’re giving none
A abstração superficial e desconectada da
prática é o complemento coerente da materialidade suprema da acumulação de
riqueza. Ela nos remete, mais uma vez, à futilidade da separação entre teoria e
prática. Separadas, elas reforçam os grilhões que nos acorrentam, ao invés de
servir à emancipação e pleno desenvolvimento das nossas faculdades, sobretudo
as morais.
Fazendo a ponte entre as esferas econômica
e política das dimensões de poder está a violência direta que é o tema dos
fragmentos de depoimentos que liga Money à faixa subsequente. As questões que se propõem são:
“Quando foi a última vez que você foi violento? Você estava com a razão?”. Ao
que os depoentes respondem unanimemente de forma afirmativa.
A canção que se segue fora anteriormente,
ainda sem letra, denominada “The Violence
Sequence”, e gravada para a trilha sonora do filme Zabriskie Point, de Michelangelo Antonioni. Belíssima, se destaca
não por fanfarras e explosões, mas pela melancolia ímpar, sendo ainda mais
pungente que a melodia de The Great Gig
in the Sky (ambas compostas ao piano por Richard Wright).
A violência física é, talvez, a forma mais
clara e radical de negação da empatia. Essa separação está explicitada no
título da canção, Us and Them – nós e
eles. A referência mais óbvia é a guerra – a violência sistemática, coletiva,
que engolfa sociedades inteiras e que, no mundo moderno, apresenta-se da forma
mais totalizante: mobiliza a todos os membros da coletividade envolvida, entre
soldados, vítimas civis e força de trabalho. É também a radical negação da
alteridade e da individualidade. Somos apenas “nós” e “eles” – duas entidades
perfeitamente homogêneas e separadas, sem espaço para o florescimento do
indivíduo e do contato com os diferentes.
Contudo, não é só isso. A dualidade também
serve para demarcar as hierarquias políticas, sociais e militares – os homens comuns dos
líderes (And after all, we’re only
ordinary men)
e comandantes das batalhas e soldados. Aqueles indivíduos despersonalizados,
feitos instrumentos, meios-para-fins alheios, representados apenas por linhas
num mapa, que o general move de um lado a outro.
Forward!, he cried, from the rear
And the front rank died
And the general sat, and the lines on the map
No vídeo que era projetado nos shows, a
relação com a perda da individualidade é assim feita de modo mais explícito a
partir da multidão de homens e mulheres sem rosto que se movem anonimamente
pelas ruas movimentadas da metrópole moderna.
As questões são resumidas com sagacidade na
última dualidade apresentada, que atesta:
With. Without.
And who’ll deny it’s what the fighting’s all
about?
Trata-se de mais do que apenas os saques, a
despossessão, o desalojamento, os armados e desarmados ou até a distinção entre
vivos e mortos – com vida, sem vida. Trata-se das vidas com valor, sem valor. Vidas
com individualidade, sem individualidade. A guerra, enfim, como a manifestação
máxima da redução do sujeito à condição de objeto. Uma guerra que, encenada
pelos seres humanos de tempos em tempos, em cenários selecionados, é, contudo,
reproduzida cotidianamente, sem pausa, na exploração da vida social e,
sobretudo, na relação de completa despersonalização que o ser humano mantém com
os demais animais, instrumentos autômatos, relógios animados da racionalidade
cartesiana, com os quais estamos permanentemente em batalha.
Any
Colour You Like
Instrumental, essa faixa está mais aberta à
especulação – como o próprio sentido do prisma que adorna a capa. A
decomposição da luz branca põe à disposição do observador todas as possibilidades
do espectro cromático. Cabe-lhe escolher a que mais lhe apraz (Any colour you like – “Qualquer cor que
te agrade”). São as mais variadas ideologias, filosofias, interpretações,
métodos de análise, segmentos e fragmentos da realidade.
A decomposição da luz altera o ângulo da
onda. Este fenômeno nos alerta que a escolha singular apenas daquela cor que
nos agrada redunda, necessariamente, numa percepção distorcida, sectária. Esse
é, na teoria crítica, o papel da ideologia. Ela não revela a realidade tal como
ela é, mas oferece uma versão alienante que atende aos interesses restritos
daqueles que a ela aderem. Não é uma escolha arbitrária, exceto para os ingênuos que
se deixam seduzir. Mas tampouco é de uma escolha da razão meramente
instrumental. A ideologia é uma manifestação do olhar enviesado de um
observador que, pelas circunstâncias da vida, das relações sociais, da sua
própria posição na hierarquia social, inclina-se a analisar o mundo apenas por
uma fração do espectro cromático. É assim que o capitalista afirma, de modo
obtuso, mas sincero, à reivindicação do trabalhador: “Mas é impossível atender
à sua demanda; uma redução na jornada de trabalho comprometerá a produção; o
aumento de salário quebrará as finanças; a democratização da fábrica violará a
racionalidade produtiva, e tudo isso arruinará a competitividade da empresa. A
divisão igualitária da riqueza solapa as bases das leis do mercado que
possibilitam o progresso da sociedade. Somente lhe resta trabalhar duro, para
talvez poder usufruir dessa promessa de prosperidade”.
O pensador efetivamente crítico, ciente da força da ideologia, deve buscar desvelá-la onde quer que ela se esconda, mesmo onde pareça mais natural. E vale ressaltar, aqui, a advertência de António Gramsci: mesmo o marxismo (ou a “Filosofia da Práxis”, como ele a chamava, era uma ideologia no sentido marxista clássico, isso é, restrita pelas condições históricas, sociais, econômicas. Apenas com a superação da sociedade de classes poderíamos aspirar a uma visão da mundo genuinamente universal. Sé é que isso é possível. Mas, enquanto não é, podemos continuar nosso questionando as ideologias dominantes e construindo uma teoria crítica e reflexiva, que, neste espaço imperfeito, abra caminhos de emancipação.
Brain
damage
Oprimido pela exploração, separado de seus
semelhantes, desconectado da natureza pela artificialidade do trabalho
mecânico, seduzido pela ideologia, e por fim despersonalizado, nada resta do
indivíduo.
A canção coloca, enfim, uma questão nada
nova e bastante familiar ao pensamento crítico nos campos da psicologia e da
teoria social: quem são, afinal, os insanos? Os que se conformam à realidade
alienante, ou os que insistem, apesar dos letreiros em contrário, a pisar na
grama (The lunatic is on the grass)?
Os que recordam a interação lúdica e despreocupada da infância (Remembering games, and daisy chains and
laughs), ou os que aceitam se manter no caminho que lhes é ordenado? É preciso mantê-los no caminho certo, adverte a
canção (Got to keep the loonies on the
path). Esse é o papel daqueles que comandam a
sociedade, e daqueles que cuidam dos casos patológicos. A conformação não é, na
prática, uma opção. É um imperativo:
You raise the blade, you make the change
You rearrange me till I’m sane
You lock the door, you throw away the key
And there’s someone in my head, but it’s not me
A interpretação fácil e tentadora, feita ad nauseam, é que Brain Damage fala da loucura. Mas ela se torna mais instigante ao
refletirmos que a loucura é ela mesma uma forma de alienação, e os muros da
instituição que aprisionam os insanos são da mesma natureza daqueles muros
invisíveis que constituem as sociedades humanas, que contêm todos aqueles que
ousam questionar, discordar e não se conformar. É uma canção, portanto, sobre
todos nós.
Enfim, novamente, o outro lado da alienação
é a perda da individualidade. Assim, a crítica subjacente da sociedade
industrial, das instituições, da guerra, é a denúncia da redução do sujeito à
condição de objeto.
Eclipse
A faixa final provê a síntese dos temas
abordados ao longo da obra. Numa listagem simples dos componentes que conformam
a totalidade da vida, forma-se um ciclo contínuo que também se manifesta na
arte gráfica que embala os sons. Na contracapa, o espectro novamente se funde
no facho de luz branca – apenas para se decompor, outra vez.
Enfim, os intérpretes
declaram:
And everything under the Sun is in tune
But the Sun is eclipsed by the Moon
Esses versos finais podem ser lidos como
uma representação simbólica do caráter iluminista da obra.
Interessante ressaltar que a frase que
melhor sintetiza a ambição artística e poética de Dark Side of the Moon vem de um homem simples, na base da
hierarquia social.
There is no dark side of the moon, really
As a matter of fact, it’s all dark
Afirmação do porteiro do
estúdio Abbey Road, o irlandês Gerry O’Driscoll, que pode ser ouvida
antes que também a música forme um ciclo completo, encerrando-se com o pulsar
do coração, a vida. Sua declaração na íntegra, registrada no estúdio, dá a
dimensão final da obra:
The only thing that makes it look light is the Sun
A luz que dá sentido e harmonia ao planeta
não é uma deidade metafísica, mas o corpo estelar que, em última instância,
possibilita toda a vida terrestre. Sobre este, projeta-se a sombra que forma o
véu que deixa passar apenas fragmentos da realidade. É a sombra da ideologia,
da alienação, da reificação, da objetificação. É apenas a luz projetada pelo
sol que confere sentido pleno à existência, revelando aquilo a que nós, de
outro modo, seríamos cegos para perceber – a realidade em todas as suas cores.
O sol opera, assim, como uma bela metáfora para as luzes do esclarecimento.
Conclusão
– o método do prisma como esclarecimento floydiano
A análise integral da obra remove qualquer possibilidade
de crítica pós-moderna que se lhe queira atribuir. A empatia que é o tema unificador de Dark Side of the Moon representa o equilíbrio distante, porém
necessário, dos imperativos éticos da vida social como condição do
florescimento individual. O ser humano pleno é aquele que compreende que o
respeito pela dignidade de cada um, inclusive os indivíduos de outras espécies,
como fim em si mesmo que é, é condição inseparável para a preservação do meio
social e natural no qual todos subsistem.
O prisma floydiano corresponde, na interpretação
aqui provista, ao método da teoria crítica, esta própria uma exortação à crítica
reflexiva, sem a qual o pensamento crítico que foi o Iluminismo torna-se
estéril, suas promessas de emancipação perdidas nas trevas da escravização. A
teoria crítica, tal qual o prisma, decompõe e revela as diferentes dimensões da
realidade.
Contudo, o método também pode ser usado num
sentido muito distinto, da pós-modernidade, que fragmenta a realidade de modo a
distorcê-la e tornar qualquer unificação impossível. A este corresponde a
distorção operada, no pós-guerra, à crítica do projeto do Esclarecimento, como discutida
pelos filósofos Adorno e Horckheimer
que, não obstante, oferecem a alternativa do exercício da crítica da própria
teoria crítica (que foi a princípio o Esclarecimento), como meio de preservar
seu potencial emancipador, não nos deixarmos cegar pela luz, nem tampouco pela sombra
que se projeta sobre ela.
O processo da teoria crítica, semelhante ao
prisma floydiano, não opera num sentido único, mas recompõe as cores do espectro numa luz universal, formando um ciclo
completo:
É uma licença artística, não é fisicamente
possível. Ela nos recorda da necessidade de reconstrução e inconformismo,
motivada pela empatia e a racionalidade que se integram para transformar a
realidade, ao invés de naturalizá-la.
É o Esclarecimento floydiano.
ADORNO, Theodor,
HORCKHEIMER, Max. Dialética do
Esclarecimento. Tradução de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor, 2006.